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1. Recuerdos

Quase tudo que tenho de Cortázar comprei em sebos. Somente Os Prêmios (o primeiro livro dele que li, adquirido pelo outrora muito bom Círculo do Livro) e O Jogo da Amarelinha (um dos meus clássicos de cabeceira e fonte de inspiração nas coisas que escrevo) não foram encontrados em prateleiras empoeiradas.

Não importa: de Cortázar tudo se recomenda, mesmo os livros considerados menores. Enquanto digito estas linhas, tenho à minha frente O Exame Final, seu primeiro romance, escrito em meados de 1950 mas só publicado muitos anos depois (e incrivelmente não consta da bibliografia do site oficial de Cortázar). Os diálogos e pensamentos de Juan, Andrés e Clara antevêem o Oliveira e a Maga de Rayuela, estimulam a idéia, atiçam o paladar. Agora está claro: em breve lerei a Amarelinha novamente.

Depois de Os Prêmios, lembro agora, li Bestiário, numa velha edição de bolso que não possui mais e cuja editora a memória insiste em não me ceder (mas que também publicou 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Arthur C. Clarke, que li anos antes de ver o filme de Kubrick), e fiquei arrepiado com a sensação de desamparo e finitude de A Casa Tomada.

Foi com Bestiário (e Ficções, de Borges, mas esta é história para outra ocasião) que tomei gosto pela literatura latino–americana, pela estrutura narrativa diferente da americana com a qual estava acostumado na adolescência, pela construção frasal elegante e precisa, sucinta sem ser seca, erudita sem ser pedante, elaborada sem ser barroca.

Histórias de Cronópios e de Famas. Sou um cronópio, claro. Com todas as idiossincrasias, a meticulosidade dos hábitos e a distração de um DDA. As diversas instruções – para subir uma escada rolante, por exemplo, ou para dar corda a um relógio – são fundamentais. Pena que Cortázar não deixou as instruções para escrever bons contos. Dá uma inveja do cão.

Da mesma forma A Volta do Dia em Oitenta Mundos. Cortázar era mestre de escolher títulos para seus livros. Quem pensaria em subverter Verne dessa forma? Bastaria ler Do Sentimento do Fantástico para valer a compra. Mas não é assim que funciona com Cortázar: é preciso ler Da Seriedade nos Velórios, Do Sentimento de Não Estar de Todo, e o importantíssimo Volta ao Dia no Terceiro Mundo. No mínimo.

Todos os Fogos o Fogo. Todas as discussões jamais tidas e havidas entre esquerda e direita (ou entre as várias esquerdas) empalidecem diante do impacto de um conto como Reunião. A simplicidade aparente da narrativa desmonta por completo o leitor, que se perde em Sierra Maestra num tempo em que éramos tão jovens e os sonhos eram sólidos mas ainda não se desmanchavam no ar. Da primeira vez em que li este conto, chorei.

E me perdi na vastidão da autopista Paris–Marselha que Cortázar e sua última esposa, Carol Dunlop, percorreram comme il faut: devagar, sem pressa, quase na contramão. Os Autonautas da Cosmopista é, tanto quanto Histórias de Cronópios… (ou mais até) um manual de instruções de como viver a vida. Uma vida que Julio Cortázar viveu bem, mesmo tendo partido tão cedo, na flor dos setenta anos.

2. Motivos

Alguns leitores devem estar se perguntando: mas por que falar de Cortázar numa coluna de Conteúdo para Web? Respondo: é fundamental lembrar de Cortazar. Não só porque em 2004 se completam vinte anos de sua morte, mas também porque, juntamente com Jorge Luis Borges, Cortázar resgatou o idioma espanhol do gongorismo que o assolava há séculos. Esse adjetivo se refere a um dos principais poetas espanhóis de todos os tempos, Don Luis de Góngora y Argote (1561–1627), famoso por seus sonetos trabalhados e rebuscados. Poemas que até hoje encantam e comovem – mas que são datados, ou seja, retratos de uma época. Tentar escrever poemas gongóricos hoje não daria certo.

No entanto, era o que se almejava nas letras hispânicas até o início do século vinte. Um dos primeiros a articular a mudança para um espanhol literário menos barroco e mais coloquial foi Macedonio Fernández, não por acaso um dos autores prediletos de Borges, que tomaria como modelo de prosa a emoção de Macedonio e o estilo seco e direto dos verbetes da Encyclopaedia Britannica. Daí para Cortázar, foi um pulo.

Acho que todo candidato a webwriter deveria ler pelo menos O Jogo da Amarelinha. Por dois motivos: o estilo direto (que parece casual, quase uma conversa com o leitor) e a construção labiríntica do texto, que antecede de algumas décadas o que hoje conhecemos por hipertexto. Ler Cortázar (as traduções brasileiras são ótimas, podem ler sem susto) é uma aula. De vida, de literatura, e até mesmo de conteúdo para a web. [Webinsider]

Avatar de Fábio Fernandes

Fábio Fernandes é jornalista, tradutor e escritor. Na PUC-SP, é responsável pelo grupo de pesquisa Observatório do Futuro, que estuda narrativas de ficção científica e a forma como elas interpretam e são interpretadas pelo campo do real.

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