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Uma das poucas vantagens (talvez a única) de uma pessoa passar de uma certa idade é a de não ter mais receio de declarar o que pensa ou de fazer afirmações impopulares a respeito de algum assunto. Pois impopular seria, durante a década de 1960, um cinéfilo dizer qualquer coisa negativa a respeito do cinema francês de vanguarda, conhecido como “nouvelle vague”.

Passados quarenta anos de qualquer coisa, a visão das pessoas muda com a idade e com a experiência de vida. Já é possível fazer análises do recordatório de forma menos emocional e mais objetiva. E se, depois deste tempo todo, ainda sobrarem admiração e fascínio, tanto melhor. Quando não é o caso, se algum tipo de obrigação se tem com o avançar da idade é o de sermos realistas e não fantasiosos com relação ao passado distante.

A eclosão da nouvelle vague nos cinemas cariocas aconteceu precocemente, em grande parte pela presença da Cinematográfica Franco-Brasileira no mercado exibidor. E os seus dois principais cinemas foram, respectivamente, o Paissandu, e depois o Tijuca-Palace. Este último, bem mais amplo e com aparelhagem mais moderna, ainda abrigava as sessões do Museu de Arte Moderna (MAM), às quintas-feiras o dia todo.

Neste período da minha vida eu ainda tinha mais interesse em jogar futebol do que outra coisa, e as constantes idas aos cinemas não passavam pelas salas de arte. Eu tinha contra mim uma aversão a estudar, certamente provocada pelos meus anos seguidos de educação em colégio Marista, lugar onde eu tive bons professores ao lado de outros que insistiam em olhar os estudantes como capazes ou incapazes. Tudo isto, é claro, teve fortíssima influência na minha vida de magistério anos mais tarde, quando então eu decidi reagir com o vigor das minhas forças contra este tipo de preconceito.

Aliás, nos meus últimos anos de profissão, eu tive chance de comentar tudo isto com estagiários do nosso laboratório de pesquisa, e eles acharam engraçado, na verdade nem acreditavam, que eu era um cara que não gostava de estudar, e vivia jogando bola onde fosse possível. Apesar de estudantes da área médica, nenhum deles se lembrou de levar em conta que um dia eu era imaturo e adolescente, como qualquer um. E aí reside também um outro preconceito equivocado por parte dos estudantes universitários: o de que um indivíduo maduro intelectualizado nunca se interessou ou tem tempo para frivolidades.

Mas, no momento certo o futebol acabou, e não por opção minha, em torno dos meus dezessete anos de idade. E sem que ninguém me sugerisse nada (a aversão pelo estudo continuou ainda por muitos anos) eu comecei a olhar a vida com outros olhos! E uma das coisas que me veio à mente foi tentar me conhecer a mim mesmo e saber quais as coisas do cotidiano que de fato me despertavam algum interesse. Uma delas foi o cinema. E foi fácil descobrir que aquilo que a gente assiste por tantos anos seguidos tem muito mais em si do que aparenta.

A tentativa de descoberta do desconhecido é extremamente penosa. Eu comecei estudando as bases do cinema. Um dos meus professores (a maioria jornalistas reunidos pelo agora lendário Cineclube Nelson Pompéia da PUC-Rio) dizia que a gente tinha que ver tudo. E eu precisei me munir de extrema paciência para encarar o assim chamado “cinema de arte”. E levei vários anos para admitir comigo mesmo que “cinema de arte” não é necessariamente um filme hermético, dirigido a uma plateia de meia dúzia de iluminados.

O “cinema de arte” nem sempre é de boa qualidade também. Assim como filmes “classe B” acabaram por se tornar clássicos, filmes intelectuais acabaram por afugentar plateias, por não conseguirem transmitir mensagem alguma!

Foi preciso deixar passar estes quarenta anos para que eu pudesse revelar aos amigos que muito do que eu vi na gloriosa época da nouvelle vague era mesmo algo que os meus humildes sensores não suportavam, nem tanto por causa da minha imaturidade adolescente, mas principalmente porque aqueles filmes eram simplesmente chatos demais. E, convenhamos, chatice gera automaticamente antipatia e reação psicológica negativa. Diga-se de passagem, no elenco dos diretores mais chatos que eu assisti se destacou com honras e glórias, o cineasta Jean Luc Godard, endeusado até hoje por hordas de exegetas, cuja inteligência eu não ouso contestar. Filmes como “Made in USA”, “La Chinoise”, e outros, não escaparam ao tédio dentro da sala de exibição naquela época e certamente não suscitariam em mim hoje o desejo da revisita.

 O cinema francês de vanguarda era pobre!

A nouvelle vague (ou “a nova onda”) francesa começou a tomar forma com cineclubistas, jornalistas e escritores, a maioria egressa do periódico Cahiers du Cinéma (Cadernos de Cinema). Novos cineastas se propõem a aumentar o escopo da linguagem cinematográfica, acrescentando temas abstratos, semi-documentários (tendência depois conhecida como “le cinema vérité” ou cinema verdade) e fortemente ancorados em um discurso ora político (Jean Luc Godard), ora religioso (Éric Rohmer), ora psicossocial (François Truffaut).

A base do movimento foi a ênfase no chamado “cinema de autor” (“cinéma d’auteur”), raríssimamente praticado em outros países fora da Europa, notoriamente em solo norte-americano, em função da mordaça do chamado studio system.

Traçando um paralelo não tão absurdo como parece com os dias de hoje, estes cineastas seriam “bloggistas”, usando câmeras e som como mídia de divulgação de suas opiniões e visões do mundo e do ambiente. Basta olhar a imensa filmografia do cineasta François Truffaut com a inclusão do personagem “Antoine Doinel”, espécie assim de alter ego do diretor. Ou então “Ma nuit chez Maud”, de Éric Rohmer, o filme todo passado em um lugar só, em uma discussão só, sobre os assuntos existenciais e potenciais conflitos dos dois personagens.

Mas as resistências ao movimento apareceram. Uma delas foi o pouco dinheiro para produções mais ambiciosas. Os cineastas responderam a isto com a participação de equipes minimalistas, negativo preto-e-branco, som direto, e principalmente fotografia com lente esférica. Ou seja, na terra onde o anamorfismo foi inventado, os filmes “scope” eram fotografados com hard matting, uma máscara colocada na janela da câmera para simular a relação de aspecto desejada. O método, ótimo para economizar filme, é chamado de Techniscope, mas tem outras variações similares.

Em outros casos, como o de Claude Lelouch, era ele mesmo quem fotografava o filme. A gente assiste hoje o badalado “Um homem, uma mulher” e se nota que a sujeira nas lentes da câmera não impedia o cineasta de usar uma determinada tomada, ou seja, o filme ficava sujo assim mesmo.

 Quem não tem cão…

Apesar do anti-conservadorismo, a maioria dos cineastas da nova onda não virou as costas para Hollywood. Jacques Demy, por exemplo, entrou de corpo e alma no filme musical, e foi ajudado com a classe do genial compositor Michel Legrand. Temas musicais recorrentes vão de Lola até Les parapluies de Cherbourg, por exemplo, junto com o tom moralista que o cineasta pretende imprimir na tela.

A obsessão de Demy com o musical americano chega ao ponto de convidar Gene Kelly e George Chakiris para uma participação no belíssimo “Les demoiselles de Rochefort”, cujos diálogos são elaborados em poesia pelo diretor.

Em Les parapluies de Cherbourg (no Brasil, “Os guarda-chuvas do amor”), o personagem Roland Cassard (Marc Michel) traz de volta o trauma da rejeição afetiva que havia conseguido em Lola. No entanto, o desenrolar da estória faz com que ele se envolva e se case com Geneviève (estreia de Catherine Deneuve), anteriormente apaixonada por Guy (Nino Castelnuovo), a quem acaba traindo com Cassard.

As semelhanças com Hollywood não param por aí: todos os atores são dublados por cantores profissionais, vários deles do grupo The Swingle Singers, como a própria irmã de Legrand, Christiane. Jacques Demy dá uma de Hitchcock e aparece em uma ponta, na pele de um cliente que entra na loja de guarda-chuvas, para perguntar onde fica a loja de tintas. E o carteiro que entrega a correspondência é dublado por Michel Legrand ele mesmo!

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Les Parapluies de Cherbourg fala com notável moralismo sobre a vida de Geneviève, tomando a personagem como base para a discussão sobre a infidelidade dos apaixonados. E de fato, a frase “Je t’aime” (“Eu te amo”) é repetida à exaustão, por culpa da letra das canções criada por Demy, que insiste em afirmar que a paixão tem sobrevida curta. O cineasta ainda introduz na personagem Madeleine o seu alter ego, quando a mesma dá uma dura em Guy, que vive pelos cantos se lamentando da má sorte com a ex-amante.

 

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Captura da capa do roteiro do filme, onde o título “A infidelidade” ainda estava em cogitação.

Apesar dos cuidados e do controle, a filmagem de Parapluies é pobre. O cineasta usa negativo Eastmancolor, bem mais barato do que se o filme fosse feito em Technicolor, e tenta compensar o potencial desastre com cenários em cores de fundo saturadas, aliás, bem parecido com West Side Story, lançado uns dois anos antes.

Seria no mínimo injusto e incorreto comparar Parapluies com o filme de Robert Wise. Este é rodado em Super Panavision 70 mm, som estereofônico de seis canais e uma parafernália de equipamentos e técnicos. O filme de Demy é aquele som mono horroroso, típico dos filmes franceses daquela época.

A propósito, outro dia mesmo, eu comentei com um amigo sobre a qualidade do som dos filmes franceses daquela época, a meu ver indesculpável, perante os recursos já existentes. Eu entendo que mesmo que o filme fosse para apresentação convencional (banda ótica monaural), a trilha propriamente dita poderia ter sido gravada em estúdios de música estereofônicos franceses. Se isto tivesse sido feito, nós hoje poderíamos ver recuperados os magníficos arranjos do compositor Michel Legrand, com a dinâmica com que eles merecem ser ouvidos, e não impregnados com distorção e desequilíbrio tonal. A restauração provocou a remixagem da trilha sonora para 5.1 canais, a maioria mostrando o manjado “mono alargado”.

O moralismo conservador de Jacques Demy não lhe impediu de fazer uma obra de arte. Les Parapluies de Cherbourg se afasta do convencional, transformando diálogos em música, e tornando assim o filme em uma ópera. O filme ganha prêmio no Festival de Cannes de 1964, e continua como referência da criatividade dos jovens cineastas da nouvelle vague, ao tentar vencer dificuldades com a produção. Demy, entretanto, nunca dirigiu em Hollywood, embora o seu trabalho não deixasse de ter uma correlação com o local, além de uma mera coincidência.

 O atraso na recuperação deste legado

Com a decadência das salas de exibição e com o movimento preservacionista que vem se avolumando ao longo dos últimos anos, é de se lamentar que os franceses tenham começado a agir tão tarde.

Na última edição em Blu-Ray do acima mencionado Lola, a produtora revela que o negativo original de câmera havia sido perdido em um incêndio, e a recuperação só foi possível através de uma cópia bem preservada achada no British Film Institute (BFI), da qual foi retirado um internegativo. Melhor do que nada, sem dúvida, mas não o suficiente para nos brindar com uma imagem satisfatória de uma obra clássica.

A nouvelle vague deixou marcas até mesmo no cinema americano, que no final dos anos 60 se libertou dos grilhões do studio system e saiu em busca do cinema de autor esposado pelos franceses.

Ignorar a contribuição do movimento ao cinema mundial é imprudente, e seria arriscado demais retira-la do currículo de formação de novos cineastas. A meu ver, toda biblioteca pública ou universitária que se preze deveria ter uma cópia que fosse, liberada ao público para empréstimo, de preferência junto com obras literárias que permitissem trazer luz e didatismo aos que assistem. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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2 respostas

  1. Oi, Tresse,

    O único “Mestrado” que me interessou e pelo qual eu lutei muito foi aquele que eu consegui no Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da UFRJ.

    É muita generosidade sua, mas eu não sou e nunca pretendi ser mestre em áudio, vídeo ou coisas correlatas.

    Acho, por outro lado, um desperdício de vida, já que hoje eu sou oficialmente velho (ou próximo de) não compartilhar experiência ou conhecimento adquirido, e tenho certeza de que conhecimento em ambiente acadêmico é sinônimo de poder. Portanto, eu estou abrindo mão deste “poder”, e tentando me comunicar de forma direta e academicamente limpa com quem se dá ao trabalho de ler o que eu escrevo. Se a mensagem que passo for útil, a minha meta está cumprida.

    Teria sido sim mais um perna de pau, até porque eu jogava bola para me divertir. Dei sorte, sabia? A realidade do futebol hoje é outra. Acabou aquela coisa lúdica, dos atletas de antigamente, que suavam sangue pela camisa do clube. E muitos deles acabaram sem proteção social nenhuma, um vexame!

    O esporte, de uma forma geral, se tornou hoje um meio onde classes mais pobres se agarram para se livrar de miséria, e um bando de atletas com potencial são cercados por empresários oportunistas. Quando eu trabalhei em um estudo sobre overtraining lá no fundão, ouvi várias vezes de colegas estórias sobre as entranhas do futebol, que são um verdadeiro circo de horrores!

  2. Paulo, parabéns por nos lembrar a história da evolução do cinema. Ainda bem que você não seguiu o futebol, porque a classe ganharia mais um perna-de-pau (um amigo que entende de futebol fêz a seguinte profecia – Nunca mais veremos o Brasil ser campeão do mundo. Temos hoje 72 anos)e nós perderíamos um Mestre na mixagem de tecnologia, arte e cultura.

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