Na área de tecnologia da informação o exercício da previsão do futuro é muitas vezes fadado ao fracasso. Mas, para quem convive com o setor, não resta outra opção a não ser fazer da futurologia um aprendizado e acrescentar mais um erro na grande lista de insucessos.
A perspectiva de que existe um potencial para alterações radicais nas relações sociais, com alicerce no mundo virtual, impõe a necessidade de delinear cenários. Atividade inglória, mas fundamental para criar as possibilidades de como essas relações serão construídas no futuro (já quase presente). Uma das apostas surge na formação de gigantescas redes de colaboração, com sustentação nas comunidades virtuais, com poucos níveis hierárquicos e grande dispersão geográfica.
Para início do exercício de futurologia com relação às comunidades virtuais, é necessário compreendê-las melhor. As comunidades virtuais aproximam, com emprego da tecnologia digital e das redes de comunicação, indivíduos os quais, ainda que geograficamente distantes, possuem interesses comuns em temas sociais, culturais, profissionais ou de entretenimento. Com a aproximação desses atores, em ambientes virtuais, há uma renovação da linguagem, dos hábitos, dos costumes e da própria tecnologia, numa espécie de mescla cultural.
Aos poucos parece ocorrer no ciberespaço o renascimento da solidariedade e da cooperação, caracterizando uma restauração da ação coletiva, com menor presença dos partidos e outras agremiações políticas. Tal espírito, pode ser observado na maioria dos grupos formados pela rede, seja na agilidade para troca de opiniões, informações, serviços e produtos, seja em intervenções específicas, voltadas para auxiliar outros membros da comunidade virtual. Fato que aumenta a resistência às estruturas culturais e sociais pré-estabelecidas e geram, por outro lado, novas formas de ação social e de relações de poder.
Um exemplo de mobilização pode ser verificado no caso da modelo Cicarelli. Sem nenhum tipo de organização prévia chegaram mais de 80 mil mensagens para a administração do Youtube contra o cerceamento dos conteúdos decorrentes do caso da modelo [1].
A ação provocou um recuo do provedor. Isso demonstra que as redes se movem sem a real mensuração de suas influências. Uma espécie de massa de modelar social onde muitas vezes, e ainda que sem intenção, toma contornos por ora incompletos, outras vezes com perfeição, mas é capaz de ganhar solidez em suas ações.
Nesse sentido, as formas de organização tradicionais passam a ser inadequadas para representarem as demandas do novo mundo que surge – incapazes de se adaptarem à pluralidade de atores e temas que incorporem as ações individuais e coletivas. A fragmentação da ação coletiva passa a exigir uma forma de representação política que traduza as necessidades individuais e converta-as em decisões políticas. Dentre as dificuldades a serem enfrentadas pela organização das redes de colaboração verifica-se o espírito imediatista das mesmas.
O sentimento de integração, cooperação e projeto comum nas comunidades virtuais contemporâneas se reformula diante da predisposição dos atores para ações voltadas apenas para o presente, o que provoca uma crise na idéia de futuro. Em paralelo ao imediatismo destas Comunidades, outras dificuldades tornam-se latentes:
(1) o costume à estrutura hierárquica existente na sociedade, que muitas vezes impede os membros das comunidades vislumbrarem a flexibilidade e os recursos de comunicação da internet;
(2) o comportamento procrastinador, pelo qual sempre se aceita que alguém vai fazer o que precisa ser feito, sendo que este “alguém” nunca “sou eu”;
(3) a fragilidade na organização de ações coletivas, bastante explorada por Ignacio Ramonet, quando afirma que “a ideologia anarco-liberal fabrica uma sociedade egoísta, priorizando a fragmentação, a divisão. Torna-se indispensável, portanto, reintroduzir a noção de coletivo, pensando no futuro.”[2]
A superação lenta das dificuldades nos ajudarão a acelerar os processos de organização das comunidades virtuais, que poderão certamente influenciar nas estruturas de poder e nas relações tradicionais da sociedade. Estas novas comunidades obrigam antigos aparatos de poder a justificar-se, a fazer pública a sua lógica e expõem a debilidade de suas razões – tornam visível a sua força, como no caso Cicarelli.
Esse novo quadro exige redirecionar o olhar analítico sobre as formas de sociabilidade engendradas pelas mídias digitais. A inscrição social múltipla passa a assumir proporções nunca antes imaginadas, demandando que a nova sociabilidade ciberespacial seja levada a sério e seja estudada com mais profundidade.
A internet, diante das circunstâncias, transforma-se no possível espaço de resistência global. O processo em desenvolvimento aponta para o renascimento de um ativismo político, desacreditado nas últimas décadas, capaz de reorganizar segmentos sociais como, por exemplo, os ambientalistas.
Observa-se, então, a movimentação de uma rede que articula diferentes atores sociais, os quais se unem em torno de uma possível conformidade de objetivos, ainda que essa unidade seja provisória, contingente. E, antes que muitos tomem consciência, o que antes parecia um exercício de futurologia incorreto se torna uma análise simplista do presente.
Assim um conjunto “mesclado” de relações sociais se instaura nas comunidades virtuais. Uma parte delas vem de práticas herdadas dos movimentos sociais tradicionais, com a forte hierarquização, a apatia coletiva e a crise das instituições; outras são proporcionadas pela própria tecnologia da internet, com a superação das fronteiras físicas, a aproximação instantânea das pessoas e a planificação dos contatos e; por último, as novas relações virtuais, que resultam no sistema de produção colaborativa, em novas formas de empoderamento e na propagação da liberdade do conhecimento como princípio.
O mundo das comunidades e das suas redes de colaboração no espaço virtual é o resultado do antigo e do novo, ambas tendo em comum um conjunto de aparatos tecnológicos digitais, cujo impacto ainda não pode ser mensurado, mas que se sabe, serão capazes de gerar grandes transformações sociais. [Webinsider]
[1] O caso ficou conhecido como “Boicote a Cicarelli”, Portal
[2] A necessidade da Utopia, Ignacio Ramonet, editor do Le Monde Diplomatique, traduzido por Jô Amado, Jornal do Brasil, 20 de novembro de 2000.
Este texto foi publicado no Jornal Monitor Campista, com o título Relações no Mundo Virtual, em 20 janeiro de 2008, na seção de Tecnologia, página B3.
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6 respostas
muito grande
Achei o artigo do Corinto bastante interessate e sintetiza bem essa coisa maluca chamada de redes virtuais.
Só não concordo com a citação que joga uma problemática devido ao carater anarco dessas redes. Na minha opinião, essa característica é o grande diferencial para ter dado certo as redes virtuais. Portanto acredito que apesar dessa mudança social ser real (e bem-vinda) ela é bem mais sutil devido as suas características distintas da sociedade de verdade. Por exemplo, algo que cataliza essa união entre as comunidades virtuais são sustentadas em um interesse comum o que torma mais fácil a organização e reivindicação destas.
Sou envolvido com a comunidade de Software Livre e vejo o debate sobre liberdade do conhecimento como uma mudança cultural real, mas acredito que as vezes falta as pessoas sairem do virtual e levarem a cultura para o concreto, ou seja, esse debate (e todos as demais comunidade virtuais) deve ser encarado conjuntamente virtual e real e quebrar aquela idéia de o que é virtual não necessariamente deve ser aplicado no concreto.
Bom, é isso ai…
Abração,
Roberto Parente
A pergunta que não quer calar é: como o governo em todas as suas instâncias irá trabalhar com tal anarquia organizada? Estará aceitando o PL do Azeredo ou manterá a liberdade tal qual é hoje?
Hoje existe muitas comunidades virtuais e não estamos falando somente de Orkut
gazaag
entre outros
tem umas interessantes iguais ao via6
dentre as que eu participo e sao bem colaborativas e ativas
e a do joomla.org
(Joomla software CMS open source)
e a do joomlaclube.com.br
Meio que concordo com o Vinícius, redes boas ou ruins não se aplicam. As comunidades virtuais e redes sociais funcionam como extensão da sociedade, e como tal assume suas partes boas e ruins.
Achei bastante interessante o texto, mas não acho que a internet está criando qualquer tipo de anarquia 2.0, também sou cético quanto até que ponto são reais as mudanças sociais promovidas pelas comunidades virtuais. É claro que as relações sociais estão mudando como um todo, mas que isso vá atingir o mundo real (embora seja tudo a mesma coisa), tenho minhas dúvidas.
Em grande parte porque ainda não são todos os brasileiros que têm acesso à internet, e dentre os que acessam, ainda é uma fatia que desliza com facilidade entre os variados meios.
Discordo mais desta parte: Aos poucos parece ocorrer no ciberespaço o renascimento da solidariedade e da cooperação. Acho que não gostei da palavra renascimento, porque ao meu ver a solidariedade e a cooperação nunca desapareceram. Sim, a internet permite a cooperação em grande escala, mas basta um pouco de atenção para ver que grupos dos mais diversos em cidades grandes e pequenas sempre colaboraram, solidarizaram, e produzem e distribuem de tudo!
Feitas as minhas considerações, gostei bastante do artigo! É bom quando é capaz de sucitar o debate!
Abraços!
O cenário social está mudando tanto, devido à invasão tecnológica, que hoje as pessoas assistem mais à internet do que à televisão![1]
Além do ponto positivo a respeito da ajuda mútua que o anonimato parece potencializar, os organismos governamentais devem se ater mais ao ponto negativo, que temos visto ocorrer com frequência, envolvendo principalmente jovens e adolescentes.
Até a pouco tempo, pessoas não se encontravam para conhecer técnicas de suicídio, como vimos na reportagem entitulada Suicídio.com da revista Época de 11/02/2008. [2]
Portanto, as comunidades virtuais são boas sim, mas vale o velho ditado de nossa mãe: não fale com estranhos.
[1] www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u21087.shtml
[2] http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81603-6014-508,00.html