No jogo entre Hollywood e os músicos de jazz, compositores em geral, clássicos ou populares, a derrota destes últimos sempre foi acachapante. Uma vergonha, se vocês querem saber! Mas, justiça seja feita, foram partidas desiguais. Hollywood sempre teve o controle do jogo, os roteiros costurados ao seu gosto e dispor, enquanto que do lado dos músicos e associados, só restou perder de alguma maneira honrosa, quando possível.
Ainda por esses dias, eu estava lendo uma entrevista concedida por Dena Kaye, filha do lendário ator-comediante Danny Kaye, ao site Blu-Ray.com, e me ocorreu entrar lá para perguntar aonde é que estava a edição em Blu-Ray de “The Five Pennies” (no Brasil, “A Lágrima Que Faltou”), produção de 1959 da Paramount, em glorioso Technicolor e magnífica fotografia VistaVision.
Não que Five Pennies seja brilhante ou imperdível. É que o filme é um desses raros momentos onde é possível ver o meu ídolo Louis Armstrong mais de perto. Em uma das tomadas em plano próximo é possível notar o jeito que o grande músico tocava: olhar para cima, procurando inspiração nos céus!
E não que a passagem de Armstrong fique incólume. Os roteiristas decidiram que logo o primeiro confronto entre Loring “Red” Nichols e o mestre terminasse com a vitória do primeiro. No DVD mesmo, a cena aparece em um capítulo, que fala na palavra “upstage”, que seria literalmente “roubar a cena”. Diante de uma afirmação categórica dessas, só rindo! Para aliviar um pouco a depressão da bobagem encenada, lá pelo meio do filme o personagem de Red Nichols declara ser Louis Armstrong o maior dos trompetistas. E a gente, assistindo, se imagina jogando uma casquinha cheia de sorvete contra a testa.
Na vida real, são os historiadores que contam que Red Nichols e Armstrong eram amigos, e talvez por isso o revolucionário músico jazzista tenha decidido dar uma “canja” no filme sobre Nichols, por “conta da casa”.
Five Pennies deveria estar contando a real trajetória do trompetista Red Nichols, mas o estúdio resolveu arregimentar o seu contratado Danny Kaye para fazer o papel do conhecido músico de dixieland. E mesmo que Nichols não tivesse concordado, ele iria fazer o quê? Dizer que não queria ser lembrado, ou que o roteiro passava longe da sua verdadeira história? Na verdade, o que ele fez foi dublar o ator Danny Kaye em todos os solos do filme.
O filme foi planejado e executado como um melodrama familiar. Os americanos chamam este tipo de filme de “tearjerker” (o que faz rolar lágrimas), mas a gente pode chamar mesmo é de “dramalhão”.
Na suposta biografia de Red Nichols, o músico se casa com uma corista, tem uma filha, não consegue mantê-la em constantes viagens e turnês, termina por interna-la em uma escola, mas aí a menina, debaixo de grande depressão provocada pela ausência dos pais, contrai poliomielite e quase morre.
Nichols teria então jurado que abandonaria tudo, se a filha se recuperasse. Manteve a promessa até o fim do filme, quando então a própria filha pressiona o pai para que ele volte aos seus dias de fama e glória.
Na vida real, Red Nichols nunca parou de tocar, segundo historiadores, embora haja um breve hiato durante parte da segunda guerra mundial. Aparentemente, Nichols não era o “show man” que a interpretação de Danny Kaye dá a entender. A maior parte de sua vida musical é passada em estúdios. E até a década de 1960, Red Nichols ainda estava em plena atividade, como mostra este vídeo do YouTube.
Danny Kaye, como todo comediante, não resistiu à ideia de tornar uma pilhéria as passagens de Nichols pelos vários estágios de suas supostas agruras de vida. O filme começa como uma comédia e lá pelo meio embarca no melodrama que só terá um clímax na sequência final. Se quem assiste não se comoveu até então, dificilmente deixará de deixar as lágrimas rolarem na última cena, tamanha a manipulação emocional dos cineastas. O que, aliás, justifica o título em português, e neste ponto parece que os nossos tradutores caíram na realidade do que pretendiam os cineastas propriamente ditos.
Na história de Glenn Miller o roteiro é bem mais ameno
A Universal contratou Anthony Mann para dirigir “The Glenn Miller Story” (no Brasil, “Música e Lágrimas”), lançado em 1954, e talvez tenha sido a mão do diretor que livrou o filme de outra pasmaceira melodramática.
No filme, vários músicos aparecem, fazendo papel deles próprios. Mesmo em sequências super breves é ainda assim possível enxergar na tela artistas do calibre de Louis Armstrong, Gene Krupa, Cosy Cole, Barney Bigard e outros. Em uma dessas cenas, o então “All Stars” de Louis Armstrong aparece tocando em um clube noturno, em uma “jam session” animada. Uma profusão de filtros coloridos, entretanto, distrai o espectador e arruína o que seria o melhor momento do filme. Mas, no cômputo geral, a quantidade de trechos musicais é bem maior do que na maioria dos seus congêneres. Só que quem assiste e acredita no roteiro, vai achar que Glenn Miller achou o som que faltava à sua orquestra (e que se tornou “marca registrada” da banda) acidentalmente.
Todo mundo sabe que Glenn Miller desapareceu no mar, viajando de avião da Inglaterra para a França, durante o fim da segunda guerra mundial. Mas, o filme não faz nenhuma tragédia disso, dando à plateia um final razoavelmente sóbrio.
Os contemporâneos
Os filmes falsamente biográficos ou exageradamente lacrimejantes são, por coincidência, egressos do studio system, época em que os roteiristas eram vigiados de perto pelos seus respectivos produtores.
É provável ter sido este o grande diferencial entre este período e do moderno cinema americano. Na obra “Bird”, do ator/cineasta Clint Eastwood, a preocupação central é tentar cercar as causas da derrocada do saxofonista Charlie Parker, diante do sucesso e do consumo exagerado de drogas. A abordagem se justifica, frente às incertezas do histórico do músico, contada de forma às vezes conflitante, em diferentes relatos. Uma parte da vida de Parker ainda é cercada de mistério. Depois que ele foi humilhado em público, ainda jovem, com um prato jogado no chão por um baterista irritado com a sua suposta má performance, Parker sumiu de vista por algum tempo, e quando voltou ele já tocava com um estilo (chamado mais tarde de “Be-bop”), que a maioria dos seus colegas da época não entendiam. Na verdade, até músicos da estatura de Louis Armstrong demonstraram revolta pela maneira como o jazz havia sido alterado (ou “deturpado”), segundo os reclamantes.
Em “Bird”, Clint Eastwood usa a imagem do prato de bateria lançado ao ar e caindo no chão com estardalhaço como a marcação dos momentos de grande depressão emocional de Charlie Parker. Mesmo que a estória do prato seja lenda, como sugeriram no passado alguns historiadores, ela serve para tornar o momento da humilhação uma visão clara das raízes dos traumas e fracassos sofridos por Parker durante a vida.
Quando a preocupação do cineasta de pensamento independente é de avaliar o valor do músico ou deslindar aspectos de sua vida e sucesso, a produção cinematográfica revela-se de grande respeito com o artista de importância para os fãs de cinema e de música.
É hoje historicamente lamentável que uma parcela enorme dos grandes músicos do passado tenha recebido um desserviço dos estúdios norte-americanos. Afinal, o jazz nasceu neste país e passou a ser admirado no mundo todo, como um legado legítimo da cultura musical. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
4 respostas
Oi Nolan,
Obrigado. Saí do Facebook faz tempo, só assim mesmo que eu volto…
Só me resta passar o link no Facebook,dada a excelencia do artigo.Mais uma vez,parabéns,Paulo
Oi, Tresse,
Sem dúvida. O Rio é hoje uma pilha de contradições neste respeito. Com as administrações públicas fanaticamente voltadas ao interesse turístico, o cidadão que mora aqui o que menos vê é estrutura para assistir alguma coisa. Ou você paga os tubos, ou vai parar em um desses locais gratuitos ou de baixo preço, onde não se encontra vaga para estacionamento ou onde o transporte público não funciona, principalmente na volta para casa.
Paulo, uma das maiores atrações de New York é ouvir Jazz nos bares das redondezas. Infelizmente copiamos isso muito pouco por aqui.
Parabéns pela iniciativa. Não pare de escrever.