Próximo do meio da década de 1950, a 20th Century Fox estava procurando uma alternativa, em filme 35 mm único, para o Cinerama de três filmes, em tela panorâmica, e o achou na invenção do professor francês Henri Chrétien, que tinha desenvolvido e patenteado o anamorfismo e as primeiras lentes anamórficas. A lente “hypergonar” desenvolvida por Chrétien, foi a base usada nos primeiros filmes em CinemaScope da Fox, a partir de 1952.
Trazendo a lente anamórfica para Hollywood, a Fox produziu o filme “Como Agarrar um Milionário”, com a atriz Marilyn Monroe, mas, por vários motivos, resolveu filmar e lançar primeiro o épico “O Manto Sagrado” (“The Robe”), provavelmente pela força do apelo popular, dentro do tema de fundo bíblico.
O processo foi batizado de CinemaScope (com “S” maiúsculo no meio da palavra), com fotografia 35 mm ultra-larga na proporção de 2.55:1, e ainda mais importante, com a adoção do som estereofônico em quatro canais, três para cobrir a extensão da largura da tela e um outro, surround, para dar ambiência nas salas de exibição.
A adoção do CinemaScope obrigou os exibidores a fazer modificações nas salas de projeção. As principais mudanças foram a aquisição de novas lentes, a implementação das cabeças de leitura Westrex ou similares, de 4 canais, com seus respectivos amplificadores e caixas e, naturalmente, uma tela adequada para acomodar o novo formato.
No início do CinemaScope, os estúdios rodavam o mesmo filme duas vezes, uma delas com fotografia plana, para evitar que os exibidores sem tela panorâmica ficassem sem poder exibir o filme. A propósito, O Manto Sagrado foi feito desta maneira.
O CinemaScope era particularmente correto para as grandes salas de exibição, e portanto não foi à toa que o filme abriu, em meados de 1954, no cinema Palácio no Rio de Janeiro. As melhores salas da época foram equipadas com três projetores, dois dos quais adaptados com lentes anamórficas, enquanto que o terceiro era usado para a projeção de cine jornais, trailers ou outros filmes em lentes esféricas convencionais.
Além do impacto do tamanho da imagem, o som de O Manto Sagrado levou, pela primeira vez, a dimensão, a fidelidade e o realismo do som estereofônico, para uma parcela significativa da platéia. O diálogo mudava entre os três canais da tela, de modo a dar a impressão de que o personagem estava de fato falando naquele ponto da imagem.
A trilha sonora era gravada em fita master de 3 canais, em equipamento posteriormente adotado até por estúdios de gravação de música. Depois da mixagem pronta, o resultado era passado para uma cópia com 4 bandas magnéticas, e enviada aos exibidores. Uma cópia com banda ótica mono convencional podia ser enviada aos cinemas que não tinham instalação estereofônica, e eventualmente uma cópia única, com bandas magnética e ótica foi usada para distribuição. Mas, nesta altura, a relação de aspecto mudou em definitivo para 2.35:1, de modo a acomodar a fotografia e o som, em um único filme.
Leitora Westrex R10, de 4 canais em filme 35 mm com banda magnética, adaptada no topo dos projetores, para a projeção de filmes em CinemaScope.
Lentes CinemaScope Bausch & Lomb, para projetores 35 mm.
A introdução do CinemaScope como método de filmagem e linguagem de cinema trouxe consigo também uma série de problemas para os cineastas da época, alguns dos quais não gostaram ou não conseguiram se adaptar ao método de filmagem. Um deles era a própria largura da tela, que obrigava o diretor a manter a câmera imóvel por um tempo mais prolongado do que o habitual, tornando às vezes o ritmo da edição demasiadamente lento ou monótono. O outro, correlato ao primeiro, era a mudança da estética e da composição da fotografia, quando então muitos diretores tinham dificuldade para imaginar como “preencher” a tela com personagens suficientes, para evitar desperdício de espaço. Como o cinema é totalmente baseado no processo de montagem (edição de planos um atrás dos outros), o CinemaScope evoluiu de forma muito lenta, até chegar ao ponto de se tornar um padrão aceitável por muitos diretores da época.
Apesar dos entraves de filmagem e roteiro, o CinemaScope evoluiu assim mesmo e trouxe com ele uma legião de fãs. Junto com a logomarca da Fox, Alfred Newman, o maestro e compositor, que havia escrito a fanfarra original com o logotipo da Fox, compôs também uma extensão da mesma, que ficou famosa ao longo dos anos, e que foi posteriormente ressuscitada por George Lucas, no filme Star Wars, em 1977. Nesta época, a Fox já não rodada filmes em CinemaScope por cerca de dez anos, e o processo foi paulatinamente substituído pelo Panavision, onipresente nas produções da década de 1970, a maioria com som mono!
Durante os seus anos de glória, não só a Fox como principalmente Metro e Columbia, tiraram grande vantagem deste processo de filmagem. A MGM, em particular, que havia desenvolvido diversos métodos de captação de áudio em estúdio, pode mostrar às platéias da época o enorme potencial para orquestração de cinema, que o som estéreo oferecia.
Mas o CinemaScope deixou nos exibidores um rastro de problemas. Um deles foi a alteração das telas para 2.35:1 (padrão depois usado no Panavision), e um outro foi a decadência do som estereofônico com o uso de banda magnética. O uso da faixa magnética nos filmes em CinemaScope acarretava problemas sérios de manutenção, que iam desde o depósito de óxido nas cabeças de leitura, como o constante desalinhamento das cabeças, com distorção na reprodução dos canais na tela.
Este último problema levou ao abandono do som estéreo no cinema por quase uma década, com raras exceções. E a solução do mesmo foi a introdução do Dolby Motion Picture (Dolby MP©), conhecido como Dolby Stereo, pelos laboratórios Dolby. Neste processo, a antiga banda ótica, de baixa fidelidade, foi modificada, por um método sofisticado, para a reprodução dos mesmos 4 canais, só que através de dois canais óticos, gravados no filme 35 mm.
A edição em Blu-Ray
Uma parte dessa história é contada na edição em Blu-Ray do filme ?O Manto Sagrado?. Para chegar ao disco de alta definição, a cópia original do negativo sobrevivente foi submetida a um processo de restauração, distanciando ainda mais o filme da sua versão anterior em DVD, pobre tanto em áudio quanto em imagem!
A edição em Blu-Ray revela todos os problemas inerentes à produção original, como por exemplo, distorções óticas nas primeiras lentes anamórficas, uso de Technicolor de um só negativo (a cor não seria tão vibrante como o tradicional de 3 negativos), mas por outro lado, mostra uma nitidez na fotografia, sem qualquer traço de redução de ruídos ou outros artefatos digitais indesejados.
Na realidade, o foco das lentes CinemaScope era particularmente problemático, pelo fato de que o adaptador anamórfico propriamente dito exigia uma segunda focalização e ajuste de campo. Então, durante a filmagem, quando a câmera precisava se movimentar, o duplo foco representava um obstáculo e um incômodo a mais para o diretor de fotografia.
Na edição em Blu-Ray é possível notar as distorções geométricas das primeiras lentes anamórficas: personagens ao centro da tela têm uma tendência a aparecerem um pouco mais ?gordos? do que aqueles que se posicionam nas laterais. Em muitas cenas, entretanto, este problema é sequer percebido.
O som no Blu-Ray, também recuperado pelo estúdio, mostra, infelizmente, alguns sinais da idade, mas é possível ouvi-lo no original de 4 canais bem como o da nova masterização em DTS HD MA de 5.1 canais, com uma qualidade nunca alcançada pela edição em DVD. Naturalmente, que o impacto original da apresentação do cinema não pode ser recriado, nem seria o caso, por se tratar de um formato que deixou de ser novidade há mais de cinqüenta anos atrás.
Com o passar dos anos, muitas dessas mixagens em três canais frontais do CinemaScope, quando então era possível se ouvir o som do diálogo passar de um lado para o outro na tela, foram modificadas para o padrão do Dolby MP©, que centraliza o diálogo completamente. Para sorte nossa, a Fox tem preservado a mixagem original, apesar de a mídia ser dedicada aos home theaters, e no caso de O Manto Sagrado o cinéfilo poderá constatar a fidedignidade da transcrição original de áudio, até mesmo na trilha em DTS HD MA, de 5.1 canais.
A restauração da fotografia, totalmente preservada no disco Blu-Ray, foi feita nos estúdios da Fox e posteriormente nos laboratórios da Lowry Digital, com telecinagem em 4K (4 mil linhas de resolução) pelo processo de varredura em meio aquoso do equipamento Imagica©.
A evolução e a análise desta história
A era CinemaScope foi um dos melhores momentos para as salas de exibição, só superado com a introdução dos filmes rodados e/ou apresentados em 70 mm, anos depois. Com o fim do CinemaScope, em meados de 1967, houve um hiato nas trilhas de áudio estereofônicas, somente atenuado com as telas de 70 mm em muitos cinemas.
Por fim, essa era marca também o início de um processo de desaparecimento das tradicionais salas de exibição pelo mundo afora. Só no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, onde eu nasci e cresci, foram mais de treze salas de cinema que fecharam as portas, se transformaram em magazines, farmácias ou igrejas evangélicas. Nem o cinema Palácio, onde O Manto Sagrado foi exibido, resistiu a esta destruição. Embora o Palácio esteja tombado, ele fechou suas portas recentemente, para provavelmente nunca mais abrir. Uma tristeza!
O fechamento das salas de cinema foi precedido pela destruição pura e simples dos métodos teatrais de exibição oriundos dos grandes espetáculos da década de 1950. Coisas como a música de introdução e de intervalo, a abertura sincronizada das cortinas, e o obscurecimento paulatino da sala de exibição, foram abolidas, com a imediata perda da magia da apresentação dos filmes pelos exibidores.
O som estereofônico ganhou enorme impulso com o CinemaScope, muito mais até do que com o Cinerama ou o Todd-AO. Não foi por acaso que o Dolby MP© seguiu à risca este formato, até que finalmente ele fosse substituído pelo Dolby Digital em definitivo.
A grande verdade é que a largura das telas de CinemaScope ainda é o principal parâmetro das instalações de cinema e a referência nunca totalmente igualada, para as instalações domésticas de home theater, mesmo com a adoção de projetores e lentes especiais, desenvolvidas para mimetizar o processo.
Para quem viveu pelo menos parte desta época, resta a saudade das grandes salas dos palácios de cinema, das telas e do som. Me arrisco a dizer, sem medo de errar, que talvez seja esta saudade o motivo maior para que muitos de nós queiramos ter em casa um pouco da magia do cinema que nós perdemos lá fora! [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
3 respostas
continuando…
qual era o modelo. Os outros Metro usavam Simplex E-7, 35 mm, todos eles demolidos.
Abraço do
Paulo Roberto Elias.
Oi novamente, Celso
Aqui no Rio Grand Prix foi projetado numa tela Todd-AO correta, no cinema Roxy. Este cinema, aliás, é um poucos abertos, mas do jeito que as coisas aqui andam, não ficaria surpreso se fechasse amanhã. De qualquer modo, o Roxy já foi dividido e não é nem sombra do que foi, infelizmente.
Grand Prix foi apresentado em 70 mm a 2.20:1, 6 canais de áudio (5 na tela e um surround). A propósito, a apresentação em DVD está correta, na relação de aspecto do negativo.
O Todd-AO era chamado de pseudo-cinerama. Cinerama mesmo, só num cinema de São Paulo, capital, que os meus foram. Acho que o nome era Comodoro. Depois foi convertido para 70 mm, igual ao Roxy.
Nós aqui iríamos ter uma tela nova de Todd-AO, num cinema perto da minha casa, que se chamava Madrid, bem mais amplo que o Roxy. Os projetores chegaram a ser instalados, mas o cinema pegou fogo e foi desativado. Até hoje, acho que aquele incêndio foi criminoso!
Como já te coloquei, em outro comentário, até hoje eu não sei que projetores esses cinemas usavam. Só consegui descobrir que o antigo Metro Boavista, que projetava em Dimensão 150, usava máquinas modernas fabricadas pela italiana Cinemecannica, mas não sei .
Olá Paulo,
Não vi a cópia em Blu-Ray do Manto Sagrado.
Vou procurar vê-la. Vi só a normal.
Você falou dos cinemas que fecharam aí no RJ.
Eu frequentei muitos aqui em SP(capital) na década de 60. Bons tempos! A maioria também fechou.
Existiu o Cine Majestic, esquina da Av. Paulista com Rua Augusta. Lá ví Grand Prix, de John Frankenheimer, de 1966 em Super Panavision 70mm-metrocolor(2.40:1?) com som esteriofônico. Quantos canais? Ignoro. Era um espetáculo monumental, colossal naquela tela côncava. O envolvimento era extraordinário. Nas sequências mais movimentadas de corridas (e eram tantas) tínhamos que nos agarrar nos espaldares das poltronas para manter o equilíbrio. Penso que se ficasse em pé olhando para a tela, seria tombo na certa.
Possuo uma cópia original em DVD Edição Especial- Dois Discos. Entretanto, cadê o encanto daqueles tempos naquelas telas magistrais?
Grande abraço.