O cinema fez as suas primeiras experiências com o formato 3D através do uso de duas cópias monocromáticas com emulsão sensível para vermelho e verde. O método anáglifo, usado naquela época para fotografia convencional, consiste da captura de duas imagens em duas cores distintas e o uso de óculos com dois filtros, para permitir ver a diferença de paralaxe entre elas. As cópias anáglifas podem ser exibidas por um único projetor e não são necessariamente “em cores”, como aconteceu naquela época.
A M-G-M lançou Audioscopiks em 1935 na forma de um curta-metragem, usando este processo. O curta foi indicado ao prêmio da Academia no ano seguinte. O filme foi feito para a demonstração do processo estereoscópico no cinema. Em 1941, o estúdio fez nova tentativa com o filme “Third Dimensional Murder” ou “Murder in 3-D”, mas logo a seguir abandonou o formato.
O tempo passou e a Polaroid desenvolveu um método de percepção 3D que é usado até hoje: duas películas fazem a tomada da cena em uma câmera com dois rolos de filme ou duas câmeras acopladas, cada uma delas com a inserção de um filtro polarizado, criado pela empresa. Na exibição, óculos com lentes polarizadas permitem a distinção entre o lado esquerdo e direito da imagem e assim o efeito de paralaxe 3D é percebido.
N.B.: a luz é um tipo de energia que vibra em todos os planos. A polarização é a separação do feixe de luz com a vibração em apenas um plano. Óculos polarizados são usados hoje nas TVs com 3D passivo.
“Kiss Me Kate” (no Brasil, “Dá-me Um Beijo”) foi feito assim. Duas versões foram distribuídas aos cinemas, uma no pretendido em 3D e a outra normal (2D). Agora que é possível revisitar a cópia original em 3D a gente consegue entender porque os atores jogam adereços para a câmera em muitos momentos do filme.
O interessante é que no Brasil os filmes 3D da Metro nunca foram exibidos, segundo me relata Ivo Raposo, criador da réplica do Metro-Tijuca e detentor do acervo dos cinemas. Eu também não me lembro de nada 3D nos Metros. Mas, parte do equipamento necessário, que consiste de magazines de 24 polegadas, foi importado na época. O objetivo do uso desses magazines era o de permitir que dois projetores pudessem exibir metade filme 3D, paravam para um intervalo, e posteriormente os rolos são trocados para que a exibição continuasse. Abaixo se pode ver os magazines 3D fabricados pela Westrex:
Curiosamente, os motores de sincronização (motores Selsyn) nunca foram achados, provavelmente não foram importados.
Diferenças de relação de aspecto nas reedições em vídeo
A primeira versão em DVD, lançada inclusive no Brasil, mostra uma transferência equivocada do filme, na relação 1.33:1, o formato da academia. Quando na realidade o filme foi enquadrado para a exibição nos cinemas no formato widescreen plano, a 1.75:1. A edição em Blu-Ray mostra o filme neste aspecto. Como se trata de imagem 16:9 (1.78:1), o usuário será incapaz de perceber a diferença nas telas de TV atuais.
A passagem do formato de academia para o widescreen plano foi uma maneira encontrada de adaptar a projeção de filmes convencionais para a tela mais larga do CinemaScope, e o estúdio, que havia remodelado os seus cinemas, passou a incentivar a exibição de filmes neste formato.
A seguir, são mostradas dois fotogramas, dos créditos e de uma cena do início do filme, primeiro do DVD depois do Blu-Ray (3D capturado em 2D):
Note-se que para apresentar os créditos sem corte em tela standard (4:3) foram introduzidas barras pretas nas laterais.
Nos dois fotogramas acima se pode perceber a diferença de enquadramento, ao lado do aumento de nitidez e da melhoria da cor.
A restauração e o Blu-Ray
Kiss Me Kate foi filmado em duas câmeras separadas. Detalhes sobre o projeto podem ser vistos em uma página dedicada a arquivamentos de filmes 3D, mantida pelo historiador Bob Furmanek. Uma das câmeras, provavelmente a da visão esquerda, segundo opinião de arquivistas, foi usada para a versão em 2D.
No entanto, a versão 2D é um pouco mais curta em duração do que a de 3D. O estúdio providenciou para este projeto um rolo separado de filme 3D com cenas a serem fisicamente incluídas (isto é, montadas pelo operador), de modo a contornar problemas de consistência de cor. E, aparentemente, todas essas cenas extras foram restauradas para a cópia em Blu-Ray.
A cópia em 3D apresenta também um crédito de “’Intervalo” (“Intermission”), mas não existe música acompanhando o mesmo. E eu fui informado tratar-se de uma estratégia da operação da projeção na época: como dois projetores são ocupados simultaneamente, os projetores eram alimentados com dois rolos contendo a metade do filme. Durante o Intervalo, os rolos são então trocados pelos operadores por outros dois rolos contendo o resto do filme. A edição em Blu-Ray, é claro, mostra apenas o slide, e o filme continua.
Não há que eu tenha visto, informações sobre a resolução da restauração, mas é bastante provável ter sido feita em 4K e convertida para 1080 p/24.
Uma coisa que me causou surpresa foi a quantidade de grãos presente na cópia 3D, pouco usual para filmes M-G-M desta época. Na versão em 2D vê-se infinitamente menos grão fotográfico, mas em contrapartida a imagem perde em alguns momentos a nitidez da versão em 3D.
Kiss Me Kate foi lançado em uma época em que já existia som estereofônico magnético nos estúdios e aqui se pode ver o magnífico estereofônico frontal da M-G-M. O estúdio vinha experimentando com a captura de áudio, e neste particular foi o maestro Johnny Green quem conseguiu significativos resultados.
Na edição em Blu-ray, a trilha sonora foi completamente retrabalhada, com um detalhamento e ambiência superior ao já ótimo som conseguido no DVD.
Kiss Me Kate marca o fim de um período de excitação sobre o 3D. O filme é uma verdadeira aula sobre o processo, de tão moderno que ele é. Adeptos do 3D irão notar uma riqueza de efeitos, com primeiro, segundo e terceiro planos. É como se a gente estivesse dentro do estúdio!
Kiss Me Kate é um filme que merece a consideração do colecionador, seja ele fã de 3D ou não. Ele exibe a opulência da música de Cole Porter, junto com um elenco de primeira qualidade, em uma estória leve e um roteiro bem estruturado. Uma produção feita exclusivamente para o entretenimento, mas que nos enriquece musicalmente e encanta com o bom humor e otimismo. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
2 respostas
Oi, Fabio,
Em épocas passadas, a maioria dos musicais da Metro saíram aqui em DVD pela Warner, mas quanto a Blu-Ray só saíram alguns poucos. Infelizmente, eu fui obrigado a importar Kiss Me Kate, porque não há nem sombra de que possa sair por aqui em algum momento.
Não lançado na Terra da Dilma eu imagino?!? Somente BD importado?