A última vez que eu vi cenas de Spartacus no cinema foi no falecido Cinema Madrid, da Rua Haddock Lobo na Tijuca, Rio de Janeiro. O Madrid já estava com projetores para 70 mm instalados (soube depois que eram Incol 70/35), quando o trailer foi exibido. A tela seria trocada por outra enorme de Super Cinerama 70, e Spartacus seria o filme escolhido para lançamento.
Spartacus teve vida no cinema através de uma produção independente dentro do estúdio da Universal, algo insólito para a época. Kirk Douglas havia fundado a Bryna Productions (nome tirado da sua mãe) e com ela financiado projetos do seu agrado e que normalmente não seriam endossados pelos grandes estúdios. A história de Kirk Douglas se confunde com a história da velha Hollywod: filho de imigrantes judeus vindos do leste europeu, e que depois se transferiu de Nova York para a Califórnia, em meados dos anos de 1940, lá trabalhando como ator e depois estabelecendo a sua produtora.
O mérito de Douglas, se é que se pode dizer assim, foi ter decidido investir no livro do novelista Howard Fast, que havia sido denunciado como membro do partido comunista e colocado na lista negra pelo Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso Americano. Na realidade, Spartacus foi escrito no período em que Fast tinha sido preso por se negar a colaborar com o Comitê.
E se isso não bastasse Kirk Douglas ainda convidou Dalton Trumbo, igualmente vítima da famigerada lista negra do mesmo Comitê. Trumbo fez parte do grupo dos 10 listados e banidos de Hollywood. Inicialmente, os roteiros eram distribuídos com nomes fictícios, para evitar problemas com a censura do Comitê. Mas, a produção foi andando, e não sem ter alguns problemas internos insuperáveis, só que de outra natureza.
Um deles, talvez o mais importante, foi o da direção do filme, confiada a Anthony Mann. E foi dele a realização de um número considerável de cenas que permaneceram no filme mesmo depois de ele ser demitido por Kirk Douglas. Mann e Douglas discordaram intensamente sobre como o filme deveria ser feito. Insatisfeito, Douglas chutou Mann para fora do set e contratou o então jovem diretor Stanley Kubrick, com quem havia feito “Paths of Glory” (no Brasil, “Glória Feita de Sangue”) alguns anos antes. Em outras circunstâncias Kubrick, que ainda não tinha o seu nome estabelecido como diretor, jamais seria admitido em uma produção desta estatura.
A restauração original da película e a nova
Detalhes sobre a batalha pela nova restauração de Spartacus estão no press-release da Universal publicado pelo in70mm em 2009.
Sucintamente, o que aconteceu no passado foi a perda parcial de segmentos, anotações de produção, ou cenas inteiras sem som. O projeto da restauração da película foi entregue ao arquivista Robert A. Harris, que foi obrigado a pesquisar todas as fontes de material e informação disponíveis. Contou na época com a ajuda de Stanley Kubrick.
Para complicar um pouco mais tudo isso, o filme havia sido rodado com 197 minutos de duração, mas os cinemas exibiram apenas 182 min, por precaução contra potenciais entraves com a censura. Além disso, o negativo de câmera exibiu um monte de problemas, entre os quais indícios de que havia sido cortado mais de uma vez. Negativos deteriorados tornam a restauração da película complicada. As armas que se dispõe hoje em dia implicam em fazer a varredura do original em meio líquido de lavagem (“wet gate”) e depois submeter o material digitalizado para a eliminação de artefatos e recuperação da cor. Mas, tudo indica que isto não foi feito naquela época.
Spartacus foi fotografado no processo Super Technirama 70, anteriormente usado pelos estúdios Disney para “A Bela Adormecida”. Trata-se de negativo horizontal 35 mm, com compressão anamórfica de cerca de uma vez e meia, o suficiente para possibilitar a migração ampliada para uma cópia positiva esférica de 70 mm. Tal conversão torna o fotograma compatível com outros formatos de 70 mm, como por exemplo, o Todd-AO, com relação de aspecto 2.20:1, e que é posteriormente projetado tanto na tela ultra curva de Cinerama 70 como na tela de 70 mm convencional.
Sem querer usar o negativo de câmera, Robert Harris e colaboradores lançaram mão das cópias em preto e branco feitas para preservação do negativo. São cópias monocromáticas CMY (Ciano, Magenta e Amarelo), chamadas de “cópias de separação”, que poderão reverter para a formação de um novo negativo. Foi trabalhando nestas cópias que a restauração de 1991 foi concluída e imediatamente transformada em cópia 70 mm com som Dolby Stereo para exibição em alguns cinemas.
Este trabalho foi também aproveitado para as edições em DVD da Universal e da Criterion, esta última, que exibe um enquadramento diferente, com a aprovação do restaurador. Assim, quando do primeiro lançamento em mídia de alta resolução, a Universal insistiu em usar este material para o disco de 50 anos do filme, infelizmente, sem passar o conteúdo por um processo de recuperação digital e infligindo à imagem sinais de redução de ruído (DNR), o que gerou várias críticas.
A versão atual, em disco Blu-Ray, usa métodos mais modernos
A diferença para o recém-lançado disco da comemoração dos 55 anos do filme, é que a restauração é feita no domínio digital, com softwares mais modernos, diretamente em cima do negativo original de câmera, ao invés das cópias monocromáticas de separação. Foi usado um scanner Northlight, com varredura de 6K (ver abaixo), que produz uma cópia com 4K, fazendo desta resolução o fluxo de trabalho do restante do processamento, como retirada de débris e demais danos do negativo, e também correção de contraste e cores, entre outros.
O resultado é compatível com os recursos de hoje em dia, dando ao filme um brilho e uma definição de contraste e cores que a edições anteriores não conseguiram alcançar. E é compreensível, por se tratar do uso do negativo original e não de uma cópia do mesmo.
Comparação dos fotogramas entre as duas edições em Blu-Ray
Uma imagem às vezes vale mais do que mil palavras!
Nos créditos:
Em uma cena do início do filme, onde se pode notar a diferença enorme do ajuste de cores e na resolução da transcrição:
A nova trilha sonora
A gravação em filme magnético de 6 canais para Spartacus estava bem preservada nos arquivos da Universal, e foi usada para a restauração de 1991 e agora para a nova edição em Blu-Ray. O restaurador afirma que adaptou o original para remixagem em 7.1 canais, chamando a atenção para o fato de que filmes em 70 mm desta época o surround é necessariamente mono e teve, neste caso, que ser retrabalhado para o surround em vários canais. Não que isto faça muita diferença, mas de qualquer forma a qualidade alcançada é, no total, suficiente para convencer qualquer incrédulo, do que é possível se fazer hoje com este tipo de material.
Para a restauração de 1991, uma cena sem som, entre os personagens Antoninus (Tony Curtis) e Crassus (Laurence Olivier) teve o áudio do diálogo recuperado pela dublagem feita pelo próprio Curtis e por Anthony Hopkins, que se propôs a substituir Olivier, então já falecido.
Os diálogos bem como a trilha musical estão muito bem preservados, e agora com a limpeza e remixagem para o cinema e o home theater moderno. A trilha de 1991 foi transcrita para 5.1 Dolby Digital e a da versão de 55 anos para DTS HD MA de 7.1 canais.
O score musical, que na minha opinião é brilhante, foi composto por Alex North. Ele pontua cenas de revolta e batalha e as cenas do amor entre Spartacus e Varinia com inigualável beleza, dando um realce ao filme com grande impacto musical.
Comentários finais
Mesmo não sendo hoje considerado 100% um filme de Stanley Kubrick, Spartacus foi coincidentemente realizado com duas pessoas perseguidas pela intolerância política norte-americana, e aí o filme pode ser visto como uma espécie de libelo a favor da liberdade de expressão e da preservação da individualidade do cidadão. Kirk Douglas no final acabou tendo o restante da coragem depositada nos autores colocando nos crédito o nome de Dalton Trumbo como roteirista e mencionando o livro de Howard Fast, no qual ele se baseia.
A estória do personagem mostra um escravo que se revolta contra a opressão de seus dominadores e a luta pela liberdade contra um império que na época dominava grande parte do planeta. Mostra também a tentativa de preservação da democracia no senado romano, frente ao iminente golpe de estado militar pela continuidade do poder pela força.
Spartacus morre na cruz, cerca de 70 anos antes do aparecimento de Cristo. O império romano ainda iria experimentar a sua queda, décadas mais tarde, tendo deixado bons e maus exemplos de cidadania.
Spartacus o filme é épico, longo e apesar das trocas de diretor, muito bem conduzido. E merece a sua presença na filmoteca do entusiasta fã de cinema como peça importante de uma época onde grandes atores eram chamados para emprestar os seus talentos na construção de uma obra destinada a ser preservada por muitos anos. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
3 respostas
Olá Paulo,
Eu vi a nova restauração de Spartacus, e ficou excelente mesmo como muitas vem sendo feitas, os estúdios estavam empurrando e ainda o fazem, muitos filmes com masters datadas, o engraçado, existem filmes sem alarde de restauração e foram restaurados, acho que algum executivo de dentro deve gostar muito do mesmo para bancar esse restauro, só tenho uma crítica para algumas restaurações, eles usam magenta demais, ou seja, uma pele meio que vermelhada, não é o caso de Spartacus, pra terminar, acho que todo filme que fosse autorado para o Blu-ray, deveria passar por escaneamento do zero, e o restauro em geral, como foi o caso de Ben-Hur e Tubarão, ficaram sensacionais.
Fabio,
Obrigado pela mensagem e pela lembrança.
Quando muita gente pela Internet começou a cobrar a autoração de DVDs com imagem anamórfica, o nosso brioso Kubrick entrou em uma briga impondo aos estúdios continuar usando 4:3 “Full FRame”, acredite se quiser, e eu até hoje não entendi por que.
Por causa dessa bobagem que o grande cineasta encampou aparentemente sem entender patavinas de tecnologia de vídeo, nós ficamos (e eu os tenho até hoje) filmes neste formato horroroso, e sem necessidade. Um deles, o do filme Barry Lyndon, é penoso de assistir, e como acontece nessas situações, o disco acaba encostado na prateleira.
A propósito, Barry Lyndon foi reeditado em Blu-Ray, sem a imposição do diretor daquela época, e não sei se foi a má impressão que o DVD me deixou eu acabei não importando. Um amigo meu, que é fanático pelo filme comprou e me disse que está muito bom. No Brasil, Barry Lyndon saiu dentro de uma caixa, e como todo o resto eu já tenho em Blu-Ray desisti de comprar também.
Eu tenho em DVD nacional, não lembro em que versão nem quando foi lançado, e não estou em casa pra dar uma espiada agora, mas lembro de ter adorado o filme(não tinha ainda assistido quando comprei apenas por ser do Kubrick) e ter achado a imagem “meio cachorra”.