Eu não me lembro mais quando foi que eu tomei conhecimento da expressão “Golden Ears”, ou “Ouvidos de Ouro”, literalmente traduzido entre nós. Mas, certamente o foi na literatura americana de áudio.
Durante anos a fio eu fui leitor fiel de três publicações americanas sobre áudio e equipamentos, que foram a Stereo Review (hoje em dia Sound and Vision), High Fidelity e Audio Magazine. No Rio de Janeiro desta época existiam várias bancas de jornais especializadas em revistas importadas, por onde se nutriam hobistas de todos os tipos. Perto da minha casa existia a conhecida “Banca do Mario”, da qual me tornei cliente assíduo.
Essa leitura foi importante para mim, no momento em que o regime militar brasileiro havia decidido proibir a importação de equipamentos eletrônicos de áudio. Anos atrás, eu achei em casa o número de dezembro de 1982 da Stereo Review, que havia guardado com carinho, por ter sido a primeira vez que se anunciou o lançamento do Compact Disc, apelidado mais tarde pela imprensa americana como “CD”, e ficou assim no mundo todo. Os americanos tem este hábito estranho de falar ou se referir a alguma coisa por siglas. Não demorou quase nada e o apelido CD apareceu e todo mundo aceitou.
A expressão “ouvidos de ouro” já constava de todas as publicações que eu lia, mas ela se revestiu de singular importância quando o jornalista americano Harry Pearson abriu a revista especializada conhecida como “The Absolute Sound”, que era vendida por assinatura. Eu nunca assinei, mas a vi depois na casa de um amigo.
Harry Pearson, que se auto apelidou HP e era assim que os leitores o conheciam, fazia questão de não ter anúncios na revista, situação bem diferente da mostrada no site atual da publicação. O que tornou HP conhecido entre adeptos do áudio foi a sua maneira inusitada de fazer análises dos diversos equipamentos, sem nunca, até onde eu saiba, recorrer a qualquer tipo de medida na bancada.
HP, quando não gostava de algum equipamento, partia para comentários sarcásticos, na base da anedota, e isso divertia ou irritava quem lia, mas a revista não se recusava a publicar cartas dos leitores enfurecidos.
A definição mais ampla do que é ter golden ears pressupõe que o dono deste tipo de ouvido seja capaz de lidar com vários fatores que afetam a audição. Entre elas, a capacidade de discriminar diminutas variações na qualidade do áudio, nem sempre perceptivas aos ouvidos do resto dos mortais. E como esta habilidade é rara, admite-se que alguém possa ser “treinado” ou ter aprendido a ouvir por conta própria, para fazer um julgamento pertinente sobre a qualidade do áudio.
O problema é mais complexo do que parece, mas de qualquer forma, nascido com este dom, treinado ou não, a audição de qualquer coisa é puramente subjetiva, e se fosse feito um levantamento rigoroso em laboratório de dezenas de ouvidos, fatalmente se concluiria que é difícil, talvez impossível, achar um ouvido igual ao outro, incluindo os ouvidos de uma só pessoa!
Por isso, as opiniões de Harry Pearson careciam do leitor da revista ter total confiança no que ele afirmava, com ou sem as anedotas de costume.
Na prática, porém, esta confiança poderia mudar de um momento para o outro, dependendo de quem lia a revista. Em uma das famosas listas de elepês da Absolute Sound, feitas com gravações excepcionais, HP incluiu a trilha sonora de Hatari, composta por Henry Mancini e prensada pela RCA, e outra trilha, do filme Casino Royale, composta por Burt Bacharach, lançada pela Colgems. Eu comentei com este amigo que assina a revista que embora as duas gravações sejam interessantes, de excepcionais não têm nada!
Por coincidência, em épocas recentes eu comprei a edição de Casino Royale em DVD-Áudio/Video, lançada pelo selo Classic Records, um lado do disco com 192 kHz e 24 bits de resolução (HDAD) e no outro lado a versão em 24 kHz e 24 bits (DAD). Comparando as duas com a versão em CD feita pela Varèse, com excelente transcrição, a diferença entre todas as versões é praticamente nenhuma, o que evidencia as limitações da fonte.
As disputas entre audiófilos
Audiófilos deveriam ser pessoas amantes do áudio, mas infelizmente muitos desses amantes colocam o ego acima do gosto pelo som ou pela música, o que os torna pessoas difíceis de lidar, quando o assunto gira em torno de opiniões sobre qualidade de equipamentos.
Nas poucas vezes em que eu adentrei em casas de audiófilos com certas peculiaridades, eu o fiz através de um amigo, que circulava no ambiente de um monte deles e que assistiu reuniões com comparações, seguidas de debates acalorados, de todo tipo de componente.
Não foi o meu caso, mas algumas dessas visitas acompanhadas, algumas coisas inusitadas e reveladoras aconteceram: em uma delas, quando eu fui com este amigo na casa de um senhor que havia montado todo o equipamento no sobrado da casa. Depois de algum tempo ouvindo o que ele estava nos mostrando, ele se dirige a mim e diz “Pode malhar!”. Eu, que até então estava sentado quieto no meu canto, perguntei “Como assim?”. Ele retruca algo do tipo “Fica a vontade para falar o que quiser!”. Eu??? O homem mal acabara de me conhecer, e pressupôs que eu era do nível de pessoa que frequentava a casa dele. Diante disso, eu me desviei instintivamente do assunto, e não tive a paciência de explicar àquele senhor que não participava de disputa de egos ou de opiniões sobre áudio. Se tivesse dado a minha opinião a ele, provavelmente seria jogado do sobrado para fora da casa. Mas é claro que ele não era pessoa capaz de fazer isso, talvez ficasse um tanto ou quanto chateado, e isso é muito desagradável para quem fala ou para quem ouve.
Um outro episódio foi ainda mais estranho. Saímos esse amigo e eu pela porta do elevador direto na sala do imenso apartamento. O dono, próximo da minha faixa etária, dirige-se ao meu amigo, aponta o dedo para mim e pergunta: “Quem é?” E este amigo, acostumado com essas coisas e experimentado na vida, responde imediatamente: “Este é o Paulo, um amigo meu, professor no Fundão”, e aí o homem relaxa.
Passamos parte da noite vendo e ouvindo equipamentos esotéricos, com o nosso interlocutor falando de si próprio. Lá pelas tantas, ele me anuncia que também era professor na UFRJ, o que evidenciou que o meu passaporte pela porta do elevador se chamava “comunidade acadêmica”. Uau, me safei por pouco.
Infelizmente, um alto nível de educação formal, treinamento ou capacidade de ouvir não credencia ninguém para se achar Ouvidos de Ouro. Eu tenho a sorte de conhecer duas pessoas amigas que são altamente criteriosas e treinadas para saber ouvir. Todos dois capazes de lidar com eletrônica analógica sofisticada, de montar ou calibrar equipamentos de toda sorte. Sempre que eles me diziam qualquer coisa interessante, eu ouvia com atenção. Depois, tentava fazer o meu próprio juízo, porque isso foi uma das coisas mais importantes que a ciência me ensinou: ler ou ter contato com fontes confiáveis, para estabelecer comparações e raciocinar com clareza.
Ouvidos que mudam com o tempo
Nem sempre é possível ter clareza de raciocínio no áudio, em função da subjetividade da análise!
Por outro lado, equipamentos de medida são às vezes incapazes de revelar as bases eletrônicas que mudam a reprodução do som para pior ou melhor. E nesses casos, a experimentação em campo acaba mostrando efeitos que os aparelhos de medição não conseguem revelar.
Esse foi o caso altamente debatido no passado, quando em circuitos eletrônicos analógicos demonstrou-se que alguns tipos de capacitores deterioravam consideravelmente a qualidade do som reproduzido. Até então, nenhum equipamento poderia detectar este tipo de alteração. Mas, com o seguimento das observações, o resultado foi que capacitores considerados ideais para as linhas de áudio passaram a ser utilizados na montagem de circuitos sem questionamento!
O impedimento maior do ser humano não está somente no uso de componentes eletrônicos. Nenhum benefício conquistado será notado, se a pessoa que ouve tem algum tipo de deficiência auditiva.
É inevitável que a curva de resposta de frequência do ouvido mude, inicialmente de acordo com a idade e o sexo, depois com o envelhecimento natural de qualquer ser humano.
As mudanças no avançar da idade ou ocasionadas por estados de doença podem afetar um ou os dois ouvidos simultaneamente. De longa data a medicina mostra que mulheres e crianças ouvem frequências mais elevadas (sons agudos) com mais facilidade do que os homens adultos.
E independente do sexo, ambos homem e mulher tem uma tendência a perder a percepção dessas mesmas altas frequências com o tempo de vida. Não sou nem de perto especialista neste assunto, mas sei que com o tempo o audiófilo adquire uma memória auditiva extraordinária, o que permite que pessoas com mais idade, e que sabem o que ouvem, possam reter a capacidade de discriminar equipamentos diversos, e de forma confiável, diga-se de passagem.
É bem possível que a explicação esteja no fato singular que a distribuição de frequências na faixa audível tem importância prática muito abaixo de 20 kHz, eu diria até bem abaixo dos 12 a 13 kHz. O envelhecimento normal de uma pessoa limita a percepção de frequências desigualmente. Sendo o caso, por exemplo, de uma limitação à faixa de uns 8 a 10 kHz, o que não é nada absurdo, a percepção de praticamente todos os instrumentos está virtualmente garantida. Se não fosse assim, o idoso teria que abdicar de ir à sala de concerto ou de ouvir música em casa.
A maioria dos instrumentos musicais emite som no primeiro harmônico na faixa de frequências médias, e se quisermos tirar como exemplo um instrumento que tem faixa ampla de emissão, este instrumento é o piano, que muitos consideram uma orquestra por si próprio.
Se um instrumento tem um primeiro harmônico algo em torno de 4 kHz, o segundo harmônico ficara próximo de 8 kHz, que até um indivíduo mais idoso pode ouvir com conforto, mesmo em amplitude mais baixa.
Quando o Compact Disc foi projetado, os engenheiros fizeram testes com amostragens, até concluir que 44.1 kHz eram factíveis com os microchips da época, e abrangia toda a faixa necessária a uma audição completa do conteúdo orquestral. Neste valor de amostragem, a faixa de reprodução de um CD vai até 22.05 kHz, portanto dá e sobra para grande maioria dos segundos harmônicos.
No entanto, Ouvidos de Ouro arrasaram o CD quando este foi lançado. Termos como “mid-fi” e som picotado foram lançados de forma maldosa pela imprensa no mundo todo.
Entre meus amigos, esta estória de que “o CD não reproduz harmônicos” acabou virando anedota. Toda vez que a gente não gostava do que ouvia dizia logo “faltam-lhe os harmônicos”.
Se existe uma coisa da qual nunca me arrependi foi a de evitar discutir áudio. Na década de 1980 eu me reunia toda semana na casa de um amigo, com uma roda de pessoas ligadas ao áudio, às vezes vídeo ou informática. O ambiente saudável do grupo me mostrou que o principal interesse em todos nós era ouvir música, e não perder tempo discutindo áudio. Não que a discussão fosse evitada, mas era ocasional, porque todo mundo ali tinha consciência de que qualquer discussão sobre áudio implica na capacidade de ouvir, que varia de pessoa para pessoa. Não há mal nenhum em se ouvir ou debater opiniões sobre qualidade, mas manda o bom senso que esta discussão tenha limites e relação de respeito entre os seus interlocutores.
Este foi, diga-se de passagem, um bom momento do áudio na minha vida. Infelizmente, com o tempo o grupo se dissolveu, faz parte. As boas lembranças ficaram, e ninguém ali, muito menos eu, precisou ter ouvidos de ouro! [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.