A vida de João Donato, músico e importante compositor da Bossa Nova, tem sido explorada pela Internet afora, o que tem o lado positivo de as pessoas poderem conhecer melhor sua trajetória de vida e ter noção como foi “fácil” para ele ser o grande artista que é.
É notável o número de vídeos com shows e entrevistas existentes no YouTube do quase lendário músico João Donato, nascido em 1934, tendo completado agora 87 anos.
Quando o disco Muito à Vontade foi relançado pela etiqueta Dubas em 2002, resgatou-se uma joia da época de ouro da Bossa Nova. E, por sorte nossa, logo a seguir foi resgatado o álbum subsequente A Bossa Muito Moderna de João Donato e Seu Trio, gravado na Philips, com o selo Polydor, em 1963.
Ambos esses discos são, sem dúvida, importantes, mas ainda assim dão uma pálida ideia da discografia do compositor. Na realidade, Donato começou a compor desde criança, com o encorajamento da família. Tocou acordeão e depois piano, quando se fixou na maior parte da sua obra. Em entrevista, ele fala que o piano o deixara “muito mais à vontade para tocar do que o acordeão”, daí o título da sua gravação de 1963, na Polydor (leia-se Companhia Brasileira de Discos). Se ele se sentiu “à vontade” com o piano, que diríamos nós ouvintes, amantes da sua música!
João Donato viveu grande parte da vida nos Estados Unidos, mas não só para a sua emancipação financeira ou profissional, porque lá ele teve a chance de expandir os seus contatos com grandes músicos e o seu conhecimento da música a que ele aspirava. Suas composições foram extensamente gravadas por lá. Um dos músicos com quem conviveu e gravou com ele foi o grande saxofonista Bud Shank, que veio ao Rio de Janeiro em 2006, para gravar um show no falecido Mistura Fina, e que foi depois lançado em DVD:
João Donato não foi só um músico prolixo, ele foi um dos artífices da Bossa Nova, tendo-a seguido desde o início, tocando e compondo junto com seus pares. Quando jovem no Rio ele foi morar na Tijuca, e fez parte do lendário Clube Sinatra-Farney, local mais provável do início da Bossa Nova.
A intolerância descabida
A Bossa Nova, e isso eu já repeti várias vezes nos meus textos, foi vítima da intolerância de pessoas diante do seu movimento de criação, várias delas ligadas à mídia jornalística, que nunca entenderam ou aceitaram o que eles chamavam de influência estrangeira no samba. E essa alegada subversão da música até então tocada aqui foi publicada de forma execrada e com veemência, às vezes até na televisão ou nos jornais. O que eu tenho 99.99% de certeza é de que quem fez estes tipos de crítica jamais compreendeu as raízes do processo criativo transformador!
Qualquer um que amadurece e depois almeja crescer e evoluir precisa de dois importantes componentes na sua trajetória de vida: primeiro, conhecimento do assunto, e segundo, experimentar, se entregar àquilo que aspira. Em se tratando de música, é também importante deixar o processo de criação se materializar espontaneamente, porque ele acontece em algum momento, é só esperar.
É um fato histórico, já relatado e confirmado, que jovens músicos e compositores da Bossa Nova tiveram a sua fase de conhecimento através da música erudita, e este conhecimento se reflete nitidamente na maneira de tocar e nas composições.
A Tom Jobim se atribui a influência de Debussy nas suas músicas, segundo um amigo meu, que o conhecia. Clare Fischer, também músico e compositor, disse em entrevista que tinha certeza de que Jobim tinha forte influência de Chopin.
Luiz Eça, que fez arranjos memoráveis para o Tamba Trio, estudou na Europa, com formação erudita, que pode ser sentida nas harmonias da sua música. Além disso, ele incorporou elementos jazzísticos em vários dos seus melhores arranjos.
Pegar emprestado de outros compositores ou de outras tendências musicais não é nenhum crime, pelo contrário, o processo de formação e depois de criação passam necessariamente pela fase do conhecimento, acima mencionada.
Por causa disso, culpar a Bossa Nova de não ser autêntica porque pegou emprestado de outros gêneros de música, é não querer admitir a influência de um estilo de música sobre outro. E, por ironia do destino, a Bossa Nova acabou por influenciar músicos e compositores de Jazz e de outros gêneros, no resto do mundo!
As influências na música são ilimitadas e favorecem o processo criativo
O próprio Jazz passou por processo idêntico de criação, provocado por forte influência da música erudita na área de New Orleans. Teóricos atribuíram a Bach uma das suas principais influências. Na década de 1960 Ward Swingle levou esta teoria adiante gravando o disco Jazz Sebastian Bach, com o seu grupo Les Swingle Singers. A música jazzística passou por um monte de transformações, todas elas de forma evolutiva, e sofreu notória influência da música latina, bem antes da Bossa Nova ser vista por lá.
O que, neste particular, a Bossa Nova trouxe e depois acrescentou ao Jazz foi a estrutura melódica nova, com um pronunciado e quase místico lirismo, cercado de sentimento acentuado pela flexibilização da sua batida sincopada, que tanto atraiu os músicos que estiveram aqui no final da década de 1950 e no despertar de 1960, já em solo norte americano.
Até hoje se pode ver no YouTube análise do pessoal mais jovem de lá, tentando entender como Garota de Ipanema e outras músicas foram criadas. Wave foi analisada por Henry Mancini como impossível, mas com uma beleza extraordinária.
Veja como um analista encara e tenta dissecar Garota de Ipanema, uma das músicas mais gravadas na América do Norte e no resto do mundo:
Por que então o assombro? Porque nada igual tinha sido ouvido até então! A simples constatação da complexidade estrutural, associada a uma simplicidade da melodia, ou seja, a música é simples, mas com estrutura ambígua, no final lindíssima, ao mesmo tempo complexa e difícil de ser avaliada por scholars ou analistas.
Mas, isso aconteceu de propósito? A mim me parece óbvio ate hoje, que Tom e seus contemporâneos se inspiraram nos próprios sentimentos no ato da composição, e não em complexidade melódica, que se tornou apenas uma consequência do processo criativo. Por isso, a Bossa Nova é o resultado de uma mistura de sentimentos, a cada música composta. Ela pode misturar alegria, tristeza, paixão, perda, ou o que for, em uma mesma composição. No caso acima, Garota de Ipanema mostra, antes de mais nada, a contemplação da beleza, ou racionalização da tristeza, se quiserem. E a contemplação, para quem viveu no Rio de Janeiro nesta época, é o resultado claro do ambiente onde se vivia e da natureza paisagística da cidade, absurdamente fontes de inspiração a qualquer pessoa sensível. E o músico ou o compositor são pessoas, por natureza, muito sensíveis!
Foi essa mistura de sentimentos que fez americanos e o resto do mundo se apaixonarem pela Bossa Nova e mantê-la viva até os dias de hoje. Os músicos de Jazz, em particular, viram nela uma autêntica fonte de inspiração que lhes permitia levar adiante o que eles faziam de melhor: improvisar!
Músicos como João Donato perceberam isso e as suas associações com músicos como Bud Shank, por exemplo, foi o que possibilitou uma integração onde as almas criadoras se juntam para fazer música.
Alguns entrevistadores não conseguem se conter
Eu já vi uma série de entrevistas onde o entrevistador se dirige ao compositor querendo saber como ele criou a música A ou B. E isso não acontece só com música. Quando um entrevistador europeu perguntou ao evasivo e difícil de entrevistar John Ford como ele chegou a Hollywood, ele respondeu na lata “de trem!¨.
É fácil perceber quando o entrevistado não quer responder como ele criou alguma coisa antológica, porque a inspiração é algo por demais pessoal e íntimo, e impossível de ser explicada, quanto mais relatada ao curioso.
Quantas vezes eu ouvi Tom desconversar e mudar de assunto diante de certas perguntas, e uma vez, quando o repórter o provocou perguntando se alguém devia mexer no que estava estabelecido (que era a acusação que a Bossa Nova sofreu em relação ao Samba tradicional) ele diz ao repórter que “tem que mexer sim”. Por acaso, justamente ele, que revolucionou a nossa música de então, iria dizer que isso não era permitido?
João Donato também aparece em entrevistas e shows no canal TV Brasil, e em uma dessas entrevistas a repórter se deteve em uma indagação sobre o que a música era para ele. E eu fiquei bobo ao ouvir o compositor falar mansamente e sem reclamar da pergunta o que uma música significa para qualquer ser humano!
Eu sou um que não conheço teoria musical, mas sinto a música desde menino. A paixão pela música nunca morre, e nós tomos ficamos “à vontade” quando estamos ouvindo a música que nos evoca sentimentos. Até mesmo nos momentos de depressão, a música tem impacto sobre os corações e mentes. Beethoven chegou ao fim da vida, sofrendo com uma surdez que o impediria de compor. Quem ouve a sua nona sinfonia e não sabe como foi a vida dele, nunca irá saber disso! Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.