A alta tecnologia embutida nos aparelhos faz parte do cotidiano mas a maioria das pessoas não tem a mínima noção do que estão fazendo.
Não foi Glauber Rocha que ficou conhecido por um princípio filosófico da arte que praticava, dizendo que (é preciso ter) “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”?
Glauber foi um cineasta brasileiro de vanguarda, e realmente teria dito isso, mas ele, na prática, era escritor e roteirista, provavelmente deixando o improviso de lado a maior parte do tempo.
Escreveu e dirigiu o filme “Terra em Transe”, lançado nos cinemas em 1967, época na qual este que vos escreve estava na adolescência, acompanhando o fervilhar do Cinema Novo brasileiro, uma mistura, creio eu, das influências da Nouvelle Vague francesa e do Neorrealismo italiano, tentando alcançar uma linguagem própria.
Em Terra em Transe o excelente trabalho de fotografia de Luiz Carlos Barreto mostra a câmera girando em torno dos atores, emulando um transe visual. Eu só vi algo parecido em “O Segundo Rosto” (“Seconds”), dirigido por John Frankenheimer, e lançado um ano antes nos cinemas.
O interessante é que tanto Frankenheimer quanto Glauber mostraram uma fortíssima influência vinda do cinema europeu de vanguarda da década de 1960. E nesses dois filmes a opção por uma narrativa fictícia parece ir na contramão do chamado “Cinéma Verité”, valorizado pelos franceses. Mas, só na aparência, porque se a plateia prestar atenção irá notar que o que está se tratando na tela tem relação direta com fatos cotidianos.
A concepção de que o cinema começa na cabeça de quem escreve um tratamento e/ou um roteiro está correta. O cineasta dá asas à sua imaginação escrevendo cenas e diálogos que, na sua visão, melhor servem ao desenvolvimento da estória, seja ela adaptada de outro material escrito ou não.
Chaplin nos mostrou que muita coisa pode ser criada no momento da filmagem, mas em qualquer hipótese o cinema de boa qualidade tem uma disciplina e um planejamento que compele cineastas a prestar atenção em todos os detalhes cenográficos que criam o ambiente desejado.
A realidade de hoje parece ser outra
Eu fico imaginando o que os cineastas do passado, dentre aqueles que fizeram planos para “revolucionar” a linguagem do cinema, estariam pensando sobre aquilo que vivemos hoje:
Com o acesso a uma câmera no telefone celular, as pessoas comuns passaram a ser documentaristas do dia-a-dia, aparentemente sem a menor noção do que é cinema!
De tempos para cá não passa um dia sem que os noticiários da TV exibam segmentos de vídeo ou fotos, gravados por alguém, com narração ou não, sobre um incidente qualquer, eu diria até com uma repetição insuportável.
Esses clipes denunciam a ausência do repórter e/ou da sua equipe na cena do acontecimento. E se alguns desses clipes de vídeo são até muito úteis, a maioria demonstra uma intenção egóica de alguém se exibir e clamar a autoria do material gravado, principalmente bem sucedido quando o nome aparece na legenda de crédito da emissora de televisão. Um amigo meu me conta que no dia em que o helicóptero que matou o jornalista Ricardo Boechat caiu um monte de gente correu para o local do acidente não para tentar socorrer, mas sim para “filmar” o acidente.
Viajando de “Ubi”
Eu estava na fila da saída de caixa do supermercado quando uma senhora de meia idade, com aspecto de pessoa humilde, fala para outra, em alto e bom som, que tinha resolvido tomar um “Ubi”. Ela estava bem atrás de mim na fila, falando alto, impossível não escutar.
O que me ocorreu naquela hora foi o retrospecto acadêmico de ter visto alunos e professores com sintomas de tecnofobia, todos eles correndo para longe dos computadores. E quando um dia me foi solicitado, na realidade compulsoriamente, a fazer um questionário de avaliação dos meus alunos sobre a qualidade do curso ministrado, eu rapidamente pensei um montar uma planilha, com a estatística e o gráfico facilmente transplantáveis das folhas com as avaliações. Isto foi o suficiente para que comentários surgissem na reunião de departamento, quando então a coordenadora geral sugeriu que todos os coordenadores de curso seguissem o meu “exemplo”. Ao dizer isso, ela causou um mal estar generalizado, porque ninguém ali queria se envolver com aquilo. Ela mesma, diga-se de passagem, era outra que não iria se lançar neste tipo de empreitada.
O princípio moral da minha experiência de vida nessas coisas me permite afirmar que nunca se deve dar a ninguém a obrigação de uso de uma máquina ou sistema sem antes dar a base e treinamento que permita o uso com a consciência do que se está fazendo.
Mas, ironicamente, hoje em dia a alta tecnologia está embutida sem alarde em todos os aparelhos em uso por qualquer um. E quando alguém, sem base educacional alguma, pega um celular e pede um “Ubi”, todo o processamento de dados do aplicativo ocorre sem que aquela pessoa saiba o que está acontecendo.
Da mesma forma, se pode afirmar com confiança que cineastas amadores são instantaneamente formados a partir da facilidade de uso de uma câmera qualquer, tablet ou celular. Com a facilidade do ajuste automático da captura da imagem, ninguém precisaria saber o que significa enquadramento, iluminação, etc.
Basta lembrar que a Rede Globo tentou ensinar enquadramento aos espectadores que foram solicitados para mandar vídeo sobre o Brasil que desejam, para o jornalismo da emissora, dizendo a todos que se deve segurar o celular (ou tablet) com o aparelho na horizontal. Novamente aqui, muita gente não sabe que a relação de aspecto muda de acordo com a posição do celular, por causa da rotação da tela, e a televisão usa a mais próxima de 16:9 possível, que só possível da maneira indicada pela emissora.
No YouTube é a mesma coisa
Quando se trata de gravação de vídeo, a ignorância é disseminada, e chega às raias do patético quando uma pessoa resolve fazer alguma coisa que ele/ela precisa das duas mãos, mas não quer delegar a gravação para terceiros. O vídeo fica frequentemente embaralhado, fora de foco e acaba por trazer mais confusão visual, não ajudando a quem assiste.
No YouTube a exibição dos egos prolifera em abundância. Apresentadores improvisados às vezes resolvem relatar problemas pessoais, circunstâncias familiares ou do seu entorno. O compartilhamento do que é narrado indica que o autor do vídeo está prestes a se deitar em um divã de analista! Nada do que é extravasado existe de interesse sobre o assunto em pauta, e isso é, a meu ver, muito ruim, porque foge ao objetivo do vídeo. Perde-se um tempo enorme ouvindo os problemas alheios, os quais são de interesse de quem narra e não necessariamente de quem ouve. Se alguém visou mostrar um dado equipamento, por exemplo, e fica falando dos gatos e cachorros de casa, o vídeo perde a razão de ser de forma imediata.
O YouTube é um bom veículo para informações ou ilustrações de qualquer assunto, baseando-se no princípio de que imagens valem mais do que mil palavras, princípio este largamente usado em publicações técnicas e científicas.
Mas é preciso também entender que imagens de má qualidade fazem o efeito oposto, e prejudicam a compreensão do objeto em tela, ou seja, acabam não ajudando em nada!
Em resumo, não basta ter a ideia na cabeça e uma câmera na mão.
É possível que muitos não acreditem, mas eu tenho certeza que a boa educação de base para qualquer coisa técnica não tem substituto, mesmo que seja só para gravar um vídeo no celular!
Termos e conceitos mudam com o passar do tempo, e eu estou no grupo daqueles que, por conta dessas mudanças, prefere nunca se sentir o dono da razão ou da verdade. Por outro lado, seria insensato esquecer ou deixar de lado a vivência e a cultura que tão penosamente se adquire ao longo dos anos. Diante das circunstâncias, é muitas vezes inevitável a gente ouvir que alguém resolveu tomar um “Ubi” e não se incomodar com isso… Outrolado_
. . .
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
0 resposta
Paulo ótima matéria.
Pena que no caso dos youtubers (que virou uma febre atualmente), 99% não sabem explorar todo potencial que um vídeo pode agregar e informar. Só besteiras, só coisas fúteis, fora os fake news. Mas para os pouquíssimos que sabem usar essa brilhante ferramenta, os vídeos podem difundir e transformar. Mas esses videomakers (se tivessem força de vontade) poderiam se “especializar” e melhorarem em todos quesistos (artístico e técnico), mas como em sua maioria são avessos a cinema de categoria e qualidade, com enredo e conteúdo, eles não tem uma boa referência ou informação para exibirem um conteúdo interessante, não é Paulo ? Vamos enquanto isso usando nosso tempo livre para assistir aos poucos programas de TV fechada, ou nossos fascinantes filmes de coleção. Um abraço.
Oi, Rogério,
Existem cursos livres para quem quiser aprender a fazer vídeos para o YouTube ou Vimeo. Neles o usuário não precisa ser necessariamente roteirista, exagerando um pouco, mas aprende o básico, se quiser.
Quanto ao conteúdo, algumas pessoas parecem não entender a responsabilidade de emitir opiniões sobre um produto que a gente quer informações a respeito um pouco mais aprofundadas. Se estas informações forem de cunho pessoal, elas poderão estar erradas. Eu tenho muita preocupação comigo, porque não quero depois ser acusado de estar enganando alguém. Se você reparar, nos meus textos eu sempre escrevo este alerta, porque a minha opinião assim existe a chance de que ela não irá ser levada em consideração literalmente pelo leitor.
Eu já assisti vídeos onde a pessoa sai logo dizendo não ter relação comercial com o fabricante, o que eu acho corretíssimo. Desde longa data, representantes das fábricas invadiam os fóruns e começavam a escrever “postings” defendendo ou atacando quem de direito. Essa coisa chegou a um ponto que obrigou fóruns importantes a exigir a identificação do participante, com a ameaça de banir a conta se a informação de inscrição omitisse este detalhe. E deu certo!