Enfrentar crise endêmica desconhecida não é tarefa das mais fáceis, e piora diante da contínua falta de recursos e descaso com a saúde pública. E a gente se pergunta, até quando?
Há décadas existe uma desproporção quase impossível de ser contornada entre o número de leitos disponíveis e a população de todas as cidades, particularmente nas capitais. É possível que exista uma exceção à regra ou outra, mas o geral é o que se vê por aí.
O jornalista Merval Pereira publica hoje, dia 02/04/2020, no Globo, uma coluna com o título “Vergonha Alheia” ou “Estádios Viram Hospitais”, onde aponta com muita clareza a falta de investimento na saúde pública dos governos petistas, com a concomitante construção de estádios de futebol, sem necessidade ou justificativa para o bem coletivo. E ele ironiza, com justa razão, que esses estádios acabaram como se transformando em “hospitais”, tipo meia bomba é claro, para combater uma pandemia que ninguém esperava.
Infelizmente, eu passei os meus últimos anos de carreira dentro do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, localizado na Ilha do Fundão, vendo os maiores desatinos. O hospital fora construído na década de 1950, se não me engano, e ficou empacado por lá, até que na década de 1970, em pleno regime militar, a força política do Prof. Clementino Fraga, fez o governo federal da época ressuscitar aquele monstrengo, ocupando uma parte do prédio. O restante, chamado depois de “perna seca”, nunca foi usado. Recentemente, esta parte foi demolida, depois de décadas sendo condenada a permanecer lá porque, se fosse demolida, iria comprometer o restante do prédio. Aparentemente, não aconteceu nada.
Falta de verba
O que eu mais presenciei, como habitante não médico do HUCFF, foi a luta das direções para conseguir dinheiro de modo a manter o hospital aberto. Inúmeras foram as vezes em que a emergência teve que ser fechada por falta de verba.
A UFRJ contrata médicos na categoria de “técnico-administrativo”. Durante anos, esses assim chamados “técnicos” ganhavam salário superior aos dos professores médicos, e por causa disso, vários dos médicos que ali trabalhavam acabavam por declinando o concurso para o cargo de professor.
Acontece que a pesquisa universitária segue o mesmo caminho. A universidade pública contrata somente professores, alguns dos quais se tornam cientistas por opção de carreira. Mas, nada impede que técnicos como médicos possam fazer pesquisa.
Eu passei anos endossando a ideia de pesquisa multidisciplinar, e com base nisso o antigo diretor, Professor José Ananias, a quem eu conhecia, acabou por construir um laboratório no subsolo, com o título de “Laboratório Multidisciplinar de Pesquisa”.
Do meu lado, a proposta de pesquisa multidisciplinar advém não só da formação do profissional da área de saúde como pesquisador, mas também para evitar a divisão clássica entre área básica (de onde eu sou egresso) e área profissional. Isto porque uma delas não deveria viver sem a outra, se a intenção é construir linhas de trabalho de pesquisa mais abrangente, úteis em tempos de crise!
O Hospital Universitário da UFRJ sempre teve vida crítica. O seu objetivo principal é ajudar a formar médicos, farmacêuticos, enfermeiros e nutricionistas. Só isto consome uma verba extraordinária. Se somarmos as atividades de pesquisa, quase não dá para sustentar nada. Aí entrariam as agências de fomento de pesquisa, mas depender delas é suicídio. A iniciativa dessas agências em tirar o fomento dos pesquisadores independentes e coloca-lo na mão dos grupos arbitrariamente classificados como “excelência” acabou por fechar pequenos laboratórios dedicados à obtenção de conhecimento.
Pesquisas
Eu vi diversas linhas de pesquisa pararem, e bolsistas perderem as suas bolsas. Pior ainda: vi médicos professores voltando de estágios no exterior, cheios de novas ideias, para no final acharem barreiras intransponíveis para realizar seus projetos.
Morando no exterior por quatro anos consecutivos, sem interrupção de trabalho, eu também vi estudantes de diversos países, alguns profissionais veteranos, tentando concluir seus projetos, com o objetivo de voltarem a seus países e retornar a estes o investimento que lhes permitiriam avançar a tecnologia e a ciência. Foi assim que países emergentes se viraram para sair da lama e se tornarem referência em vários campos de atuação!
Notem que para avançar em ciência as linhas de pesquisa gastam décadas para desenvolver qualquer coisa avançada. Na Europa, essas linhas estão lá há séculos, portanto facilitando o caminho para o avanço de profissionais do mundo todo.
O Brasil chegou tarde aos estudos de pós-graduação, e pouco avançou, em proporção aos bolsistas que trabalham na academia, e que voltaram ao país sem condições de dar continuidade aos seus projetos, por absoluta falta de verba de fomento, o que, na prática, significou um enorme desperdício de recursos acadêmicos!
Ora, se eu, como um tipo “innocent bystander”, que por acaso estava por lá, vi tudo isso, onde estavam as autoridades que não viram, ou fingiram não ver?
Um hospital universitário deveria, por princípio, ser financiado com recursos do Ministério da Educação, como, aliás, sempre foi. É constrangedor a gente perceber que em tempos de ditadura o HUCFF não passava este aperto todo. Com a entrada forçada no Sistema Único de Saúde, e com a conversão do atendimento para uma massa de pessoas de outras localidades, o HU entrou em colapso financeiro, pelo simples motivo de que o dinheiro do SUS não cobre as despesas necessárias a este tipo de atendimento.
É importante observar que médicos professores que conseguiram fazer de suas carreiras uma ponte para o topo de suas especialidades em hospitais privados, na prática a universidade não teria ali condições financeiras para pagá-los de acordo. Então, uma vez dentro da carreira acadêmica, estes profissionais deixaram de lado o aspecto financeiro, e se dedicaram arduamente a formar quem estava lá para uma residência ou internato. Só a residência em cirurgia cardíaca exige cerca de 10 anos para ser concluída.
Diante deste cenário, eu não tenho dúvida alguma que, frente a uma crise endêmica como a atual, a tendência é faltar tudo.
Merval Pereira nos prova, com suas palavras, que a administração pública optou por gastar dinheiro com obras inúteis, e com eventos esportivos para lá de desnecessários. E eu acrescento: só o Maracanã foi reformado três vezes, sem necessidade!
A obsessão pela elaboração de obras superfaturadas nos mostrou que é muito fácil esbanjar dinheiro público, que no final vai cair em bolsos inidôneos. E a consequência, em última análise, é o administrador público argumentar que não tem dinheiro para pagar as contas. Também pudera. Com a falta de transparência que crassa neste país, eu aposto que muito dessa grana sentida nunca a gente vai saber onde foi parar.
O que não é justo é todo mundo pagar por isso. E não adianta usar estádios como hospitais de campanha, quando os hospitais propriamente ditos, sem recursos adequados, nunca tiveram as suas contas devidamente acertadas!
Hoje de manhã um ex-colega e amigo, com quem trabalhei em pesquisa por vários anos, me chama a atenção para uma possível descoberta na China, de um tratamento eficaz para o Corona Vírus. A notícia da descoberta vem de um tal Zhang Linqi, da Universidade Tsinghua, em Pequim. A equipe de Zhang faz parte do 3º Hospital Popular de Shenzhen. Não é mera coincidência.
O problema maior, na situação de hoje, é recuperar o tempo perdido. Se o país tivesse assumido a responsabilidade que lhe é devida, nós teríamos menos chance de ficarmos a ver navios, com pesquisas desmontadas por falta de fomento, mentes jovens desestimuladas, etc.
A pergunta que hoje fica no ar é: que lições serão aprendidas com esta crise? Eu aprendi como cientista que erros precisam ser analisados e soluções encontradas. Mas, isto pressupõe a consciência honesta de que o erro existiu e precisa ser consertado. Caso contrário, como diz o ditado, fica tudo como dantes, no quartel de Abrantes. Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
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Muito lúcida as colocações do Prof Paulo Roberto sobre o caos que está instaurado na saúde pública. Saúde e educação são as duas políticas públicas mais importantes no país e o que vemos, ao longo dos anos, são escolhas equivocadas no gasto do dinheiro público, além de superfaturamento, na condução de ações nesses dois setores.
Eu, como professora de uma universidade pública, a qual o prof. Paulo Roberto também pertence, espero que o legado dessa crise atual seja o aprendizado com os erros e a reformulação das políticas de saúde e educação, a fim de produzir um mínimo de igualdade em um país tão desigual.
Wilza, querida Professora, muito obrigado pelas suas palavras. Quisera eu que outros colegas da sua estatura colocassem aqui os seus testemunhos, a favor ou contra, se quiserem, o que eu afirmei.
Da mesmo forma como eu senti orgulho de ver ex-alunos se tornarem expoentes na carreira acadêmica e administrativa, vários que agora aparecem constantemente na mídia, eu também deploro a falta de recursos para um trabalho tão importante, seja de assistência e principalmente de pesquisa. Ver os esforços enfrentarem toda sorte de dificuldade é muito constrangedor.
Prezado Paulo, foi muito pontual e detalhado a sua abordagem sobre este tema espinhoso. Vou dizer que diante desta tragédia anúnciada desde o final de 2019, me “sinto vingado” e de alma lavada, pelo ato desumano que este governo praticou, surrupiando o bolso do trabalhador com a reforma da Previdência, que para ser aprovada teve “acordos a portas fechadas com deputados” em troca de 3 bilhões nas famosas “verbas parlamentares”; pois bem, todo aquele calculo que embasou a aprovação da reforma, agora foi por água abaixo. Então agora temos o seguinte cenário, o governo que antes estava rastejando com uma economia estagnada, agora irá usar os “futuros recursos” oriundos da pseudo economia da reforma da Previdência, para tentar aplacar o Tsunami do Covid 19; e pode apostar, o Sr. Paulo Guedes será obrigado a gastar o que tem, e o que não tem somente na área da Saúde. Então como dizem, o feitiço virou contra o feiticeiro. Espero estar por aqui quando esta pandemia terminar, e celebrar o reaparelhamento “a forceps” dos hospitais públicos, bem como “muito a contra gosto do Governo” fazer a saúde pública no Pais, voltar a ter o mínimo necessário, para socorrer essa população tão dependente do S.U.S. Boa sorte a todos nós Paulo, e vamos cuidar do bem mais precioso que temos, que é a “nossa saúde”
Oi, Rogério,
Durante a atual reforma da previdência a mídia, notadamente jornalistas do Globo, atacaram os servidores públicos federais, como se fossem eles os culpados pelo rombo da previdência. Ora, décadas atrás, um professor do Instituto de Matemática da UFRJ, por coincidência muito amigo do meu irmão, portanto uma pessoa cujas palavras eu confiava desde menino, deu uma palestra provando que a previdência é perfeitamente viável. Mas, nenhum governo que eu saiba recorreu à academia para solucionar isso. As indicações de ministérios eram e continuaram sendo POLÍTICAS.
Eu faço parte, como servidor público, do Regime Jurídico Único, e tinha direito adquirido de me aposentar pelo último salário da ativa. No conceito dos jornalistas e de muita gente, eu sou um privilegiado, porque todo mundo se aposenta pela miséria do INSS ou então não se aposenta nunca.
Só que ninguém sabe a realidade do servidor público. E se não sabem, porque então perseguir este conceito de “privilégio”?
Pois os mandatórios brasileiros ignoram o chamado direito adquirido e dão canetadas e formulam leis CONTRA o servidor público o tempo todo, como se este fosse o culpado pela situação do país. O servidor público não tem culpa da péssima previdência que paga mal os aposentados.
Lula se valeu do mensalão para aprovar a contribuição de INSS do servidor público aposentado, portanto ferindo um direito adquirido. Paulo Guedes aumentou agora esta contribuição, com apoio dos senhores congressistas. O argumento é o mesmo, mas pouco se comenta que vários segmentos do poder público tem salários completamente fora da realidade, como juízes, procuradores, etc. Repare que ninguém toca nos militares, que também são servidores públicos!
O ódio dos políticos contra os servidores públicos esteve recentemente estampado em uma declaração do ministro Paulo Guedes chamando o servidor de “parasita”. Isso suscitou uma carta aberta de uma enfermeira do HUCFF, publicada pelo sindicato: https://sintufrj.org.br/2020/02/carta-de-uma-servidora-ao-ministro-paulo-guedes/
Eu faço questão de citar os dois parágrafos do início desta carta:
“Sr. Guedes, o senhor já veio aqui no HU? Tem noção de quantas pessoas atendemos por semana? Já entrou num centro cirúrgico pra ver o estresse que é? Agora imagina encarar essa pauleira em todo plantão? É inacreditável ouvir uma ofensa tão rasteira de uma autoridade, quando dedicamos um pedaço tão grande de nossas vidas para servir ao público com dignidade.
A irritação aumentou quando vi a proposta de cortar até 25% do nosso salário pra fazer economia. O sr. já viu quanto ganhamos? Eu vi que o sr. ganha mais de 30 mil por mês só de salário, e ainda ganha mais 8 mil de tíquete (acho que no seu caso tem outro nome, né? “Auxílio”. Tíquete é pra trabalhador). Olha, ministro, se o sr. cortar só o que te pagam em tíquete, economiza mais do que cortando 25% do salário de 10 servidoras que nem eu.”
O professor universitário recebe um salário base, que é muito baixo. Em cima dele são acrescentadas rubricas de valor percentual. Quando o sindicato dos trabalhadores da UFRJ foi formado, uma das primeiras providências foi formar um corpo de assistência jurídica, que buscou na lei os aumentos que os governos deixaram de pagar. E duas dessas rubricas entraram na nossa folha, transitado em julgado, ou seja, não cabe recurso. Mas… o MPOG do Temer deu uma canetada e tirou uma delas. O sindicato cochilou, não recorreu, e aí perdemos. Recentemente, o TCU mandou cortar a outra rubrica, mas a reitoria se recusou, e a associação de docentes entrou na justiça.
Tudo isso, contra ativos e aposentados, sendo que no caso destes últimos, passa a ser covarde e criminoso!
Quando se tira direitos adquiridos dos outros, é sinal que não se está vivendo em um estado de direito. Nem esquerda nem direita respeitaram isso. Desde quando nós somos uma democracia?
Durante muitos anos fui religioso. Hoje não mais. Mas uma das passagens que lembro fala sobre não ser possível extrair de uma árvore podre (ou má), bons frutos. Neste caso, quando aplicamos esta ideia ao Brasil e países similares, essa lógica é perfeita. Pois, me desculpe pela irônica falta de fé, mas não consigo imaginar um lugar como este chegar um dia ser diferente do que foi relatado em seu texto.
Não conseguimos lidar com coisas que acontecem anualmente, como as chuvas de verão que destroem cidades e vidas. Não conseguimos fazer o transporte público funcionar (principalmente no Rio) de forma minimamente decente. O Brasil (principalmente o Rio) está infestado de bandidos armados até os dentes, que fecham ruas, que assaltam com facas, socos, xingamentos e tiros. E com toda a mortandade causada pelo coronavírus, se este ano o número de mortos causados pela doença for abaixo de 60 mil, poderemos considerar isto normal, já que anualmente este é, em média, o número de vidas que se acabam por aqui.
Li que há um estudo alemão voltado a descobrir se há mais meios pelos quais as pessoas podem ser contaminadas pelo coronavírus e estão considerando a possibilidade de que a contaminação possa acontecer também pelas fezes. Ora, se for verdade, como será no Brasil, onde saneamento básico simplesmente não existe? Aliás, o que dizer após a ECO92 e os milhões de dólares que foram despejados no colo do Rio para despoluir a Baía de Guanabara, mas que não conseguiram sequer despoluir uma privada?
Somos uma árvore podre. Não há como surgir e ser mantido nada de bom aqui. Gostaria muito de ter a oportunidade de ir embora, mas como não sou afeito a fazer coisas sem pensar, tenho medo de sair daqui para virar problema social no país dos outros. Principalmente agora, que o mundo está caótico e com previsões sombrias.
Não acredito mais em céu, mas é impossível deixar de acreditar no inferno, quando se mora aqui.
Oi, Renato,
Obrigado pelo seu super lúcido comentário.
Eu confesso que também não estou otimista, e acho mais provável não estar mais vivo quando e se mudanças ocorrerem.
Mudanças são possíveis, se as pessoas tiverem dispostas a fazê-las, mas com uma população sem base educacional adequada, como isto vai ser factível? É aí que o meu pessimismo reside.
Eu acho um absurdo, e sinceramente esperaria estar equivocado, ver especialistas irem à mídia, como se fossem experts em infectologia ou epidemiologia, mas sem nenhuma experiência prévia ou estudo sobre a atual pandemia. Os conselhos dados são aqueles corriqueiros, que até clínicos gerais dariam. E o resto? Em tese, só é possível achar a solução para qualquer coisa nova quando se entende corretamente o problema! Pelo que eu vejo na TV, apenas um ou outro entrevistado admite este tipo de desconhecimento.
Renato,
suas observações são terríveis e verdadeiras. Não sou otimista. Nosso país é assim porque os dirigentes (ou o sistema, o mecanismo, como preferir chamar) assim querem que seja e lutam para manter esse estado de coisas com unhas e dentes. Procuram exterminar qualquer iniciativa contrária.