O filme da Pixar/Disney Incríveis 2 traz uma trilha sonora moderna junto com a preservação do diálogo direcional, o que é importante no resgate do melhor som feito outrora para a exibição de filmes no cinema.
Eu tenho escrito repetidas vezes, antes no Webinsider e agora aqui, sobre as formatações de áudio usadas no cinema e posteriormente transcritas para vídeo doméstico, começando pelo videodisco e terminando provisoriamente agora no Blu-Ray 4K.
Depois da tentativa comercialmente fracassada de Walt Disney em colocar som multicanal em Fantasia, o cinema ainda passou por mais de uma década sem reinventar o assunto.
Até que em 1952, o processo Cinerama de filmagem reintroduziu um formato de som similar, em tela curva gigantesca. Mas, o som multicanal ainda iria sofrer transformações ao longo dos anos seguintes, começando pela projeção em CinemaScope, com o padrão de três canais na tela, e depois no Todd-AO, com o padrão de cinco canais na tela.
A mudança acompanhou o aumento da largura (bitola) da película, de 35 para 70 mm, respectivamente.
Nesses dois padrões, 3 e 5 canais, a gravação do diálogo foi mixada propositalmente de maneira a acompanhar a presença do ator na cena. O som se desloca então da direita para a esquerda da tela, e vice-versa.
Nos primeiros filmes em CinemaScope que eu assisti foi fácil acompanhar a mudança do som do diálogo nos canais atrás da tela, devido a ligeiras diferenças de equalização na reprodução da trilha magnética.
Esta técnica de mixagem de diálogo é hoje classificada como direcional. O diálogo direcional foi literalmente abandonado quando a Dolby lançou nos cinemas o Dolby Stereo: o som dos diálogos foi jogado para o canal central, sem dó nem piedade, e independente do filme ter sido rodado e apresentado em tela scope (2.35:1).
A supressão do diálogo direcional foi, na minha opinião, um erro indesculpável, porque, entre outras coisas, não havia nenhum motivo técnico aparente que eu me lembre para modificar este tipo de recurso.
Na era home video, os primeiros formatos de reprodução (videodisco e depois vídeo cassete) usaram as bases do Dolby Stereo para a centralização do diálogo, por força das circunstâncias da época: a trilha Dolby Stereo é gravada em dois canais e decodificada para quatro canais, e foi assim que as primeiras mídias de home video, que eram restritas a dois canais, conseguiram reproduzir o som do cinema em casa, com a ajuda de decodificadores Dolby Surround (circuito passivo) e depois Dolby ProLogic (ativo).
Era de se esperar que a introdução do Dolby Digital 5.1 resolvesse trazer de volta o som direcional, mas o que se viu foi o oposto, provavelmente para evitar a quebra de retro compatibilidade com o Dolby Stereo.
A eliminação do som direcional dos diálogos trouxe, ao longo das décadas, um problema sério e repetidamente combatido pelos entusiastas de home theater: a transcrição de filmes rodados no formato scope eram direcionais e precisavam ser preservados como tal, e não “dolbysados” pela remixagem!
A surpresa que ninguém percebeu
Eu recebi a cópia em Blu-Ray do filme do cineasta Brad Bird “Incríveis 2”, um segmento do seu primeiro filme para a Pixar “Os Incríveis”, que eu particularmente gosto muito.
Inicialmente, duas coisas me irritaram: jogaram o volume do som lá para baixo desnecessariamente, mas isso é até fácil de contornar em um sistema devidamente calibrado,.
A outra falha foi rebaixar a trilha original do filme em Dolby Atmos para DTS HD MA 7.1 e, acreditem se quiserem, ainda incluíram DTS HD HR 5.1, na mesma linguagem. Eu não entendi nada, porque DTS HR já saiu de cena faz tempo, e não iria acrescentar nada de útil em um disco deste porte.
Mas, aí a surpresa: o velho e bom diálogo direcional foi resgatado e muito bem inserido na trilha do filme!
Inicialmente, eu pensei que estava ouvindo enganado, talvez uma cena ou outra, mas não. Gozado é quem nem os experts notaram isso. Li com atenção a análise da Blu-Ray.com e não achei nada a este respeito.
O crítico percebeu sim o que eu apontei acima, e eu concordo com ele quando ele comenta que há uma falta de peso por carência de baixa frequência ocasionalmente, nada de grave, diga-se de passagem.
Mas, no final da sua análise ele afirma que os diálogos estão “plantados firmemente” (sic) no canal do centro, exceto quando o personagem se move. Não foi bem isso que eu ouvi.
Na realidade, o som direcional é percebido quando a voz dos atores se coloca totalmente à esquerda ou à direita, com o personagem dentro da cena! O som das vozes pode se deslocar para os lados quando o personagem sai de cena, mas isso foi respeitado na grande maioria dos filmes em Dolby Stereo, inclusive.
A reintrodução do som direcional, referente aos diálogos, resgata um método de mixagem que não deveria ter sido abandonado. Poder-se-ia argumentar que as telas de TV são infinitamente menores do que as dos cinemas, mas o efeito é claramente perceptível em um home theater montado de acordo com as regras de instalação corretas.
O som direcional dentro de casa
O som direcional dos diálogos pode ser perfeitamente reproduzido dentro de casa. É óbvio que sendo o CinemaScope e seus derivados formatados para 3 canais na tela a transcrição 1:1 da trilha sonora já resolve o problema.
Os primeiros DVDs da Fox com filmes deste tipo conseguiram provar que o som do CinemaScope pode ser perfeitamente reproduzido em casa.
Mas, e o Todd-AO? Filmes feitos nesta bitola (65 mm negativo e cópia para cinema em 70 mm) podem também ser reproduzidos, desde haja um correto posicionamento dos três canais frontais.
Se houver equilíbrio de amplitude nesses canais, o canal esquerdo-direito é reproduzido por emulação resultante dos sons em fase do canal central e do canal esquerdo, e o mesmo acontece no lado direito, como mostra o esquema abaixo:
Em Incríveis 2, uma das cenas iniciais mostra a família jantando, e os cineastas usam a distância dos personagens na mesa para direcionalizar o diálogo. A direcionalidade é percebida em cenas distintas, sem a mesma relação de distância, em algumas delas acompanhando o personagem saindo da cena.
Incríveis 2 tem um roteiro um tanto ou quando insólito: Robert Parr, o Sr. Incrível, passa os dias como dono de casa, fazendo comida, passando roupa, cuidando dos filhos, tal qual uma mulher da década de 1950, enquanto que sua mulher Hellen, conhecida como Garota Elástica, é seduzida sem muito esforço pelos irmãos Deavor para fazer o papel que a destacaria como figura importante na participação dos super heróis na sociedade e na luta contra o crime.
Se visto anos atrás, o filme poderia ser considerado como uma apologia feminista, o que não é o caso, porque a trama se dirige depois para explicar porque a escolha de Hellen Parr foi proposital.
Achei o filme divertido, talvez não tão incisivo no infame super heroísmo, mas saudavelmente concentrado nos problemas paroquiais de qualquer família, e de como é difícil lidar com eles.
Valeu a pena, em todos os sentidos, mas eu acredito que valeu mais para o aficionado da história do cinema, que vê agora como filmes modernos podem ser feitos, com o resgate dos valores tradicionais do cinema que ficaram no passado imerecidamente. _Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.