Rebel Moon, novo filme de Zack Snyder, é a própria repetição infindável de clichês.
Em 2011, um jornalista de um importante veículo de imprensa brasileiro escreveu um artigo polêmico, defendendo veementemente que Um Filme Sérvio tinha de ser proibido no país. O colunista em questão havia visto o filme, dirigido por Srđan Spasojević, e ficado horrorizado pelas cenas, que incluíam o estupro de um recém-nascido.
Ele não foi o único a se horrorizar, nem aqui nem lá fora: desde o ano anterior, quando a produção sérvia estreou na Europa, exibições em festivais foram canceladas e o filme duramente criticado. Não era para menos: havia cenas fortes de pedofilia, estupro, tortura e suicídio. A exibição do filme acabou sendo proibida no Brasil em julho de 2011.
Em defesa da livre exibição do filme, o distribuidor do filme no Brasil, Raffaele Petrini, garantiu que “nenhuma criança participou de cenas fortes”, e que “nas sequências mais duras, foram utilizados ou um robô ou um manequim”, e havia prometido divulgar no site da distribuidora o making of do filme, para mostrar seu argumento. O site G1 publicou, na época, fotos do making of, confirmando o argumento de Petrini. Não adiantou: o filme só seria liberado um ano depois, em julho de 2012.
Um Filme Sérvio serviu (com o perdão do trocadilho) para esquentar o antiquíssimo debate sobre a violência no cinema. De um lado, os que defendem que não pode existir censura de espécie alguma à arte; de outro, os que afirmam que deve haver algum limite, por uma questão moral. Muitos cineastas já haviam sido alvos dessa discussão, entre eles Sam Peckinpah e Quentin Tarantino, por conta da violência mostrada em seus filmes. Mas Spasojević foi além, e pagou o preço.
Pode-se dizer muita coisa de Zack Snyder, menos que ele não tem coerência. Desde Sucker Punch, de 2011, ele faz filmes que idolatram a violência (especialmente a violência contra a mulher), repletos de clichês que não funcionam mais com tanta eficiência quanto ele imagina.
É um diretor que faz filmes de hominho: os homens invariavelmente gritam e dão porrada, ou pelo menos tentam, até que outros homens e de vez em quando uma mulher batem primeiro. Mas a violência está sempre lá. Coisa de deixar Alex deLarge e seus amigos ultraviolentos de Laranja Mecânica no chinelo. Os já mencionados Sam Peckinpah e Quentin Tarantino, com seus balés de violência lenta e estilizada, já ficaram para trás.
Ok, talvez eu esteja exagerando. Afinal, o cinema de Snyder não é realmente levado a sério, e ninguém é insensato a ponto de colocar esses três nomes numa mesma frase (vejam que não os coloquei nem no mesmo parágrafo). Mas eu lembro de um tempo em que se discutia seriamente a violência nos filmes de Tarantino (estou pensando aqui particularmente em Kill Bill, cujos dois volumes foram exibidos em 2003 e 2004), e se debatia se a violência ali era séria ou satírica. Eu sempre defendi a segunda opção, coisa que ficou ainda mais clara para os espectadores com o passar dos anos.
No caso de Snyder, não dá sequer pra levar a sério a possibilidade de sátira, porque fica claro que ele nunca entendeu o conceito: desde as adaptações de 300 e Watchmen, ambas decalcadas visualmente das graphic novels que serviram de fonte e com poucas alterações mas que acabam por torná-las bem diferentes dos originais e piorados, até seu esforço mais recente, Rebel Moon, uma produção em duas partes para a Netflix.
Digo esforço mas já me corrijo: Snyder não precisa se esforçar para fazer o que faz, porque é um especialista consumado. Seus personagens são sempre pessoas que estão vivendo suas vidas em paz, até que um acontecimento externo e sempre muito violento as obriga a serem igualmente violentas, mas tudo em nome da paz e da harmonia – nem que seja na porrada.
Rebel Moon não é diferente. A esta altura, todo mundo deve saber que o roteiro foi originalmente concebido como um pitch para o universo de Star Wars, que foi rejeitado pela Lucasfilm em 2012, pouco após a venda para a Disney. A Netflix também quase recusou o projeto, a menos que Snyder concordasse em dividir o filme em duas partes, o que ele aceitou prontamente.
Ganhou Snyder, ganhou a Netflix. Ganhamos nós?
Vocês já perceberam pelo começo do texto que eu não gosto dos filmes de Zack Snyder. Vi quase todos, e a sensação de repetição infindável de clichês superados me deixa um gosto amargo na boca. Mas claro que, sendo louco por cinema, eu não ia deixar de conferir Rebel Moon quando a parte um estreou: estava na Netflix e eu já pago mesmo, portanto não teria prejuízo financeiro. O streaming tem uma vantagem grande sobre a sala de cinema: se você não gosta do filme, pode parar de ver sem culpa e procurar outro no catálogo.
E foi exatamente o que eu fiz da primeira vez em que tentei assistir a parte um. Com vinte minutos de exibição (e trocentas manifestações de violência que nem mais chocam, apenas entediam), fui em busca de algo melhor.
Mas a parte dois foi lançada há poucos dias, e meu espírito (de porco) cinéfilo me cochichou ao ouvido, vai lá, Fábio, o que é que custa? É só um filme.
Então voltei ao filme. E desta vez vi até o final. E comecei a encarar a parte dois.
Mais do mesmo, evidentemente. Os cenários de CGI são bem-feitos, até onde posso dizer. Os atores são quase todos conhecidos do grande público: Sofia Boutella, Djimon Hounsou, Charlie Hunnam, Doona Bae e Anthony Hopkins (este fazendo a voz do robô Jimmy). A história? Bem, a história é uma mistureba de Os Sete Samurais e Star Wars com uma ambientação copiada da série de games e livros Warhammer 40k.
O que Snyder não sabe, nem sequer entende, é que Warhammer 40k acabou se tornando uma paródia de si mesma: um universo tão machista e ultraviolento que hoje é quase humorístico de tão over-the-top, tão exagerado. Tudo nos filmes de Snyder é exagero, desde as caras e bocas dos protagonistas, a música coral nas cenas que ele acha épicas, a indefectível câmera lenta nas cenas em que um personagem salta um abismo com uma lança nas mãos (em Rebel Moon também temos, mais de uma vez), as lutas corporais que lembram os filmes de Hong Kong e os de gângsters londrinos de Guy Ritchie (e que o ex-marido de Madonna sabe fazer muito melhor) e um roteiro que me lembrou os filmes mundo-cão da produtora Golan-Globus, responsável por pérolas dos anos 1980 como Falcão, Campeão dos Campeões, Cyborg – o Dragão do Futuro, Stallone Cobra e Comando Delta, entre muitos outros filmes B que adorávamos. Em suma, a produção mais recente de Snyder é uma colcha de retalhos que não traz nenhum elemento novo, nem interessante. Só as mesmas bobagens de sempre, com ainda mais violência.
Este texto não tem nenhum tom moralista. Escrevo aqui não só como jornalista, mas também como escritor, com experiência em literatura, teatro e cinema. Toda narrativa, e aqui roteiros são particularmente focados nisso, precisa servir a algum propósito. O dramaturgo russo Anton Tchekhov disse uma vez, numa carta ao amigo A. S. Gruzhinsky em 1889, que se você apresenta ao público uma arma carregada no palco, tem a obrigação de fazer com que ela seja disparada em algum momento, caso contrário você está fazendo uma promessa ao espectador que não vai cumprir. Esse conceito ficou tão famoso que ganhou o nome de Arma de Tchekhov, e é uma das regras de ouro dos roteiristas.
A única coisa que Snyder cumpre é a promessa de violência que está implícita (e explícita, porque sutileza não é o forte dele) desde os primeiros minutos. Tudo em Rebel Moon é motivo para um grito, uma porrada, um tiro, uma decapitação. E muitas vezes com violência sexual, aqui razoavelmente distribuída entre homens e mulheres como receptores dessa violência.
Sou contra a censura. Mas sou a favor de filmes que façam sentido, e que tentem trazer algo de novo, mesmo no campo do entretenimento puro. E também de se discutir e questionar o motivo de se fazer tantos filmes violentos. Será que ainda cabe a explicação de que é preciso mostrar a violência para que ela seja combatida?
Rebel Moon não só não faz ninguém refletir sobre nada (o que definitivamente é o caso dos filmes de Zack Snyder, mais anti-reflexão do que película Insulfilm) como ainda faz o espectador querer mais do mesmo, sempre. E aí perdemos todos.
Srđan Spasojević praticamente desistiu de fazer cinema depois de Um Filme Sérvio. Sua filmografia só contém mais um filme, na verdade um curta que faz parte da coletânea O ABC da Morte, exibida em 2012. Zack Snyder só não teve o mesmo destino porque é estadunidense. Mas bem que merecia. [Webinsider]
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Fábio Fernandes
Fábio Fernandes é jornalista, tradutor e escritor. Na PUC-SP, é responsável pelo grupo de pesquisa Observatório do Futuro, que estuda narrativas de ficção científica e a forma como elas interpretam e são interpretadas pelo campo do real.