O Sobrevivente: quando a sci-fi mira no que vê e acerta no que não vê

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O roteiro de O Sobrevivente, de 1987, parte de um deep fake – e hoje a IA está aí e em pleno uso, independentemente de acharmos ético ou não.

O roteiro de O Sobrevivente, de 1987, parte de um deep fake – e hoje a IA está aí e em pleno uso, independentemente de acharmos ético ou não.

 

Na primeira semana de janeiro a Netflix colocou no seu catálogo um clássico sci-fi dos anos 1980: O Sobrevivente (The Running Man), de Paul Michael Glaser, estrelando Arnold Schwarzenegger. Lançado em 1987, o filme teve um certo sucesso de bilheteria nos EUA e aqui, muito por conta do protagonista, ainda faturando os dividendos de Conan, o Bárbaro e O Exterminador do Futuro (aliás, há uma referência com este último no filme, mas é preciso prestar atenção).

A trilha sonora composta por Harold Faltermeyer, quase toda à base de sintetizadores do tipo que fazem a alegria dos fãs de Stranger Things, fez ainda mais sucesso que o filme.

Baseado frouxamente no romance homônimo de Richard Bachman (pseudônimo de Stephen King), O Sobrevivente conta a história de Ben Richards, policial e piloto de helicóptero em um estado totalitário do futuro que se recusa a cumprir a ordem de massacrar um grupo de manifestantes.

Ele é então preso e, depois de cumprir um ano e meio de pena, consegue fugir com dois membros da resistência – só que acaba sendo recapturado e “convidado” a participar de um reality show que é o programa de maior audiência na TV americana controlada pelo estado: The Running Man. Nesse reality, os participantes (os “running men”) precisam simplesmente sair correndo para fugir de mercenários armados, os “stalkers”, e lutar para não serem mortos.

Como os running men são sempre recrutados entre criminosos, o público, que nesse estado distópico foi educado para achar que “bandido bom é bandido morto” (parece familiar a vocês?), torce simplesmente para todos eles sejam mortos, porque os heróis da história são os stalkers. Sem necessariamente dar spoilers, só pelo título em português vocês já perceberam que Schwarza não vai se deixar matar pelos mercenários.

Porque, claro, ele não é culpado. Mas por que teria sido preso se se recusou a matar os manifestantes? Acontece que no começo do reality, o apresentador Damon Killian (Richard Dawson) mostra uma fita da câmera interna do helicóptero, e a cena que vemos junto com o público não tem nada a ver com o começo do filme: ela mostra um Schwarzenegger autoritário, que quer matar de qualquer maneira os manifestantes e seus superiores e colegas a bordo tentam inutilmente dissuadi-lo. Fake News, claro.

A partir daí o filme se desenvolve como qualquer filme de ação, a saber: tiro, porrada e bomba. Uma violência até moderada em comparação com os filmes de hoje. E com aquela ingenuidade característica dos filmes daquela época, por imaginar que um estado fascista teria um movimento revolucionário underground, e pior: efetivamente capaz de, se não derrubar o governo, no mínimo desestabilizá-lo.

A inteligência artificial

Mas o que o filme ainda consegue ser incrivelmente atual é justamente naquilo que é pouco comentado porém é o motivo de Schwarza estar no reality: a fita adulterada. No filme não se diz como, mas hoje em dia a resposta parece clara para o espectador mais bem-informado: só pode ter sido com o auxílio da inteligência artificial.

As IAs já existiam naquela época, ainda que no duro, no duro, somente na ficção científica; mas redes neurais e programas de simulação de conversas, os chamados chatterbots, já existiam, ainda que em versões bem toscas. O primeiro do gênero foi Eliza, criada em 1964 no MIT por Joseph Weizenbaum, que simulava uma psicóloga virtual, e funcionava muito bem para a época, mas hoje não resiste a uma conversa mais elaborada. Você pode testá-la aqui (somente em inglês): https://www.masswerk.at/elizabot/.

Embora O Sobrevivente nunca mencione o conceito (talvez porque as décadas de 1970 e 1980 não trouxeram avanços significativos na área, a ponto de serem consideradas o “inverno da inteligência artificial”), podemos facilmente considerar que um programa de IA teria sido utilizado para alterar a gravação e incriminar Schwarzenegger. Coisa que em 1987 teria sido realmente ficção científica, mas não na época em que o filme se passa, entre 2017 e 2019.

O futuro é hoje

Estamos em 2024. No dia 9 de janeiro, no YouTube, o Canal Dudesy publicou um especial inédito do comediante estadunidense George Carlin. Não seria nada fora do normal, não fosse pelo fato de que Carlin morreu em 2008, e o especial foi feito na íntegra por uma IA de nome Dudsey, criada para pesquisar bancos de dados de comediantes e criar especiais de comédia inéditos.

A bem da verdade – e muito provavelmente para evitar processos judiciais – os criadores de Dudesy foram inteligentes o bastante para colocar um disclaimer no começo onde a própria IA esclarece que a voz não é de George Carlin, mas dela, a IA, que está imitando o humorista. Meno male – mas o male está feito, de certa forma.

Esse especial (que pode ser conferido aqui) não tem vídeos, mas apenas imagens também geradas pela IA.

A voz, porém, é assustadoramente parecida com a de Carlin, como se pode ouvir neste outro link, que contém uma gravação de um especial feito nos anos 1990, no começo da Guerra do Golfo:

 

Embora nenhum vídeo tenha sido gerado, é questão de tempo para isso ser utilizado de maneira semelhante à mostrada no filme. Também no começo deste ano, voltou a circular um vídeo que supostamente mostraria o Padre Julio Lancelotti em atos libidinosos com menores de idade. O vídeo já havia circulado em 2022 e um perito mostrou que era um deep fake, ou seja, um vídeo editado de modo a falsificar a imagem. Em essência, nada diferente do que o filme apresenta.

O que poderia parecer uma diversão interessante e inconsequente com o vídeo de George Carlin assume proporção de crime com a calúnia ao Padre Julio. Uma questão que vai além da ética e precisa ser discutida – mas a IA está aí e seu uso está acontecendo, independentemente de acharmos ético ou não.

A questão agora é como fazer com que o público (e aqui eu me refiro a todos que assistem TV e que consomem produtos de mídia, independentemente de escolaridade) diferencie o joio do trigo, o real do irreal, o que aconteceu do que não aconteceu. E a pergunta que está por trás disso: será que o público se importa? Esperemos que sim. E vamos ficar de olho nos deep fakes. [Webinsider]

. . .

Mais Fábio Fernandes:

 

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Fábio Fernandes é jornalista, tradutor e escritor. Na PUC-SP, é responsável pelo grupo de pesquisa Observatório do Futuro, que estuda narrativas de ficção científica e a forma como elas interpretam e são interpretadas pelo campo do real.

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