Dias Perfeitos passou a ser um dos meus filmes preferidos de Wim Wenders, lá em cima junto com Asas do Desejo e Até o Fim do Mundo.
Certa vez perguntaram a Abbas Kiarostami se ele gostava de exercer o papel de jurado em festivais de cinema. O cineasta iraniano respondeu que não muito. “A opinião que tenho de um filme agora pode não ser a mesma de daqui a oito horas”, ele declarou à crítica Deborah Young. A frase está no excelente documentário Crítico, de Kleber Mendonça Filho, produzido em 2008.
Minha relação com o último filme de Wim Wenders é quase exatamente a mesma. Não vi Dias Perfeitos no cinema. Para ser sincero, tive minhas dúvidas a respeito de ver ou não esse filme. Embora goste muito de Wenders (desde Asas do Desejo, não me recordo de um só filme dele que eu não tenha gostado), todas as críticas que li me desestimularam. O detalhe: todas positivas.
Parece estranho, não? Afinal, se tivessem sido críticas negativas, seria mais fácil explicar por que não tive vontade de conferir o filme na tela grande. Mas explico.
A maioria das críticas era elogiosa com relação às intenções do cineasta alemão, ainda que uma ou outra fizesse ressalvas ao contexto. A história por trás do filme é interessante: depois que o pior da pandemia de COVID-19 havia passado, Wenders foi convidado a Tóquio por Koji Yanai (SEO do grupo Fast Retailing, responsável por várias marcas de moda internacional como a Uniqlo, terceira maior rede de fast-fashion do mundo) para conhecer o Tokyo Toilet Project.
Esse projeto, realizado em 2020, contemplou a remodelação de 17 banheiros públicos japoneses na área de Shibuya, em Tóquio, por 16 criadores (entre eles designers e arquitetos) de todo o mundo. Wenders foi convidado a dar uma olhada na singularidade de cada uma dessas instalações. Koji Yanai e os produtores por trás do projeto queriam que Wenders fizesse um curta-metragem, ou uma série, sobre as instalações.
Wenders se empolgou tanto que acabou escrevendo, juntamente com Takuma Takasaki, um roteiro para um longa-metragem de ficção que se concentrasse na figura de um faxineiro cujo trabalho seria justamente o de limpar esses banheiros públicos.
As críticas que eu havia lido eram tão elogiosas que eu me incomodei. Para ser brutalmente sincero, achei que os críticos ficaram deslumbrados demais com um certo “exotismo” que os ocidentais sempre atribuem à cultura japonesa, mesmo sem intenção. Ora, se o filme gira em torno de um homem que escolheu a vida mais simples possível dentro de uma certa autonomia, e tem ênfase no analógico ao invés do digital em pleno ano de 2023, deve ser bom, certo? Como sou fã e pesquisador da cultura digital desde a década de 1990, tendo sempre a desconfiar muito desse oba-oba saudosista.
Mas quando Dias Perfeitos estreou na plataforma de streaming MUBI, senti vontade de conferir. E gostei do que vi.
É uma história simples, que não oferece muito perigo de spoilers, até porque praticamente não apresenta ação no sentido hollywoodiano. Na maior parte de seus 124 minutos, Dias Perfeitos é uma espécie de diário da vida de um homem, Hirayama (interpretado pelo ótimo Koji Yakusho), que limpa esses banheiros públicos.
É uma vida simples: todo dia Hirayama faz tudo sempre igual. Acorda bem cedo, faz sua higiene, desce, compra uma lata de café na máquina em frente ao seu prédio, pega a van e começa seu périplo pelos banheiros de Shibuya.
Banheiros esses que são um espetáculo. Tem de tudo: uns com o exterior de pedra, outros de bambu, e outros ainda coloridos e com paredes transparentes mas que ficam opacas quando os usuários trancam a porta por dentro – o que gera a única cena em inglês do filme, quando uma mulher negra anglófona fica na dúvida sobre como usar esse toalete. Hirayama não fala quase nada durante o filme inteiro, nem mesmo nessa parte: ele apenas demonstra à moça como tornar a porta opaca, e pronto: assistimos a uma exposição didática sobre os banheiros dentro de uma narrativa ficcional, sem a costumeira frieza e objetividade dos documentários.
Dias Perfeitos tem poucos diálogos, verdade, mas está longe de ser um filme silencioso. Em algumas cenas, acompanhamos Hirayama às voltas com um outro limpador, o jovem Takashi (Tokio Emoto) e sua namorada Aya (Aoi Yamada), que se surpreendem com as fitas cassete (com músicas em sua maioria ocidentais, de Patti Smith a Nina Simone, entre muitas outras) que o limpador mais velho costuma escutar enquanto dirige.
Quando termina o serviço, Hirayama vai jantar (sempre o mesmo prato) num restaurante minúsculo dentro de uma estação de metrô) e volta para casa. Aí ele estaciona a van, pega sua bicicleta e vai até uma casa de banhos, onde se lava meticulosamente e depois se deixa descansar numa piscina aquecida. Ao voltar definitivamente para casa, ele se deita e fica lendo um livro (quase sempre também autores ocidentais, como William Faulkner ou Patricia Highsmith, mas também os ensaios da autora japonesa Aya Koda) até adormecer. No dia seguinte, tudo se repete – às vezes com pequenas variações, como no dia em que cai uma chuva forte quando ele está voltando da casa de banhos.
No fim de semana, o programa é outro: ele costuma ir a um restaurante onde a dona, bastante simpática, lhe serve uma bebida e, a pedidos dos demais clientes, canta uma canção bonita e triste.
Toda essa aparente tranquilidade na vida de Hirayama sofre seus abalos, como por exemplo quando a sobrinha dele aparece em sua casa sem avisar, o que provoca uma visita da irmã, que Hirayama não vê há anos. Então entendemos que há profundezas insuspeitadas por baixo da placidez de lago japonês da vida do limpador de banheiros, profundezas que nos atraem e que buscamos entender ao longo da projeção – e nos emocionar juntamente com os personagens.
Dias Perfeitos tem uma certa semelhança com Paterson, de Jim Jarmusch (2016). Mas, enquanto o filme do norte-americano transmite um certo incômodo e confusão mental da parte do poeta-motorista de ônibus Paterson (vivido por Adam Driver), Dias Perfeitos é um filme quase zen: praticamente sem nenhum grande sobressalto, o espectador pode esperar um filme tranquilo, um pouco meditativo.
A minha impressão após ver o filme foi de uma narrativa sóbria, sem nenhum exotismo nem glamourização da vida que Hirayama escolheu (ou que as circunstâncias de sua vida escolheram para ele). Mas eu ainda achei um pouco exagerado tanto bafafá em torno da película.
Oito dias depois, entretanto, minha opinião mudou radicalmente.
Dias Perfeitos é um filme cujo impacto leva um tempo para penetrar na consciência do espectador. Penso na cha-no-yu, a cerimônia japonesa tradicional do chá, onde cada gesto importa, e tomar o chá é apenas a consequência. Nos dias seguintes ao ver o filme, minha vida transcorreu quase como sempre: casa, trabalho, fisioterapia, musculação – mas duas visitas ao pronto-socorro (uma por causa de uma crise de ciático que tive, a outra por uma faringite terrível da minha esposa) me fizeram pisar no freio e reduzir o ritmo da vida. E o filme passou a fazer mais sentido para mim.
Cada ação de Hirayama, cada pequeno gesto, era fundamental para o equilíbrio de sua vida. Claro, ele tinha problemas como todos nós, problemas que ficam patentes num determinado trecho do filme (sem spoilers), mas os rituais cotidianos lhe traziam uma paz e talvez um senso de pertencimento ao mundo que nós aqui do Ocidente (ou melhor, do Sul Global, que no duro, no duro, não é Ocidente nem Oriente em termos de geopolítica) não conseguimos sequer vislumbrar.
Dias Perfeitos passou a ser um dos meus filmes preferidos de Wim Wenders, lá em cima junto com Asas do Desejo e Até o Fim do Mundo. Vejam e se preparem para um mergulho ao fundo da alma. [Webinsider]
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Cyberpunk reloaded: por uma ficção científica anticolonialista
Fábio Fernandes
Fábio Fernandes é jornalista, tradutor e escritor. Na PUC-SP, é responsável pelo grupo de pesquisa Observatório do Futuro, que estuda narrativas de ficção científica e a forma como elas interpretam e são interpretadas pelo campo do real.