Sam Peckinpah, o diretor americano “rebelde”, anti-Hollywood, deixou como legado “Meu Ódio Será Sua Herança”, com cenas inéditas até então. O filme foi exibido em Cinerama, e restaurado antes do primeiro Blu-Ray ser lançado, com a versão do diretor.
Julho de 1970. Abre no Roxy um western completamente diferente dos que eu havia visto: Meu Ódio Será Sua Herança (“The Wild Bunch”), filme do cineasta “rebelde” Sam Peckinpah, algo inédito para os padrões de Hollywood.
O filme for a rodado em Panavision 35 mm, mas convertido para o Cinerama 70, modo como foi projetado no Roxy.
O filme marca um tipo de western (“faroeste”), mas sem a narrativa dos mesmos, por iniciativa do diretor, que queria fugir da mesmice. A narrativa muda radicalmente, mostrando de verdade uma outra face daquele momento na vida americana. Efeitos especiais mostram balas atravessando os corpos, espirrando sangue para fora, e eu nunca havia visto na igual nas telas. Mas, o filme não é sobre a violência em si, mas sim uma visão do oeste selvagem e primitivo, em contraste com o resto da modernização do país, que acontecia a passos largos em outros estados.
Em uma das cenas, aparece um automóvel, e todo mundo fica admirado de ver uma máquina que iria substituir os cavalos e charretes. A cena é eloquente, porque ela mostra que o mundo estava mudando, em contraste com lugares atrasados e anacrônicos. Um detalhe curioso na cena é a menção de etanol ou gasolina como combustível do carro.
O filme e os detalhes que escaparam da censura
Wild Bunch enfoca o “Generalíssimo” Mapache, um oficial do exército mexicano violento e corrupto, que comanda seus soldados como uma gangue. A ele se associam experts alemães em armamentos modernos, que o incitam a roubar armas mais modernas do exército americano. O objetivo do General, como sempre, é conquistar territórios e aumentar a sua riqueza pessoal.
A censura brasileira, muito ativa nesta época, parece não ter percebido a sutileza da crítica, e deixou o filme ser exibido na íntegra. Mapache é uma caricatura do general ditador. Sua figura é exibida na tela como todos os ditadores o são na vida real, desde tempos idos: eles não são militares de carreira, mas se vestem como tal. Ironicamente, no Brasil aconteceu o inverso, os generais presidentes passaram a vestir roupas civis!
A figura empostada do homem feito General impõe medo, opressão, receio de repressão no povo, e principalmente a figura do guerreiro vencedor. O termo “generalíssimo” espelha tudo isso de forma sarcástica, mas acima de tudo neste filme, Mapache é um bandido violento disfarçado de militar. O terror e a intimidação são as marcas registradas deste tipo de personagem, que explora a vulnerabilidade do povo, que ele finge protege-los.
O roteiro e a filmagem se esforçam para mostrar tudo isso, e contam com uma plêiade de grandes atores. Veteranos como William Holden, Robert Ryan, Ernest Borgnine, Edmond O’Brien,Warren Oates (último filme “Blue Thunder”), ou Ben Johnson (ator clássico de John Ford) dão um show de interpretação sóbria.
Além deles, ainda aparece Alfonso Arau, em um papel secundário, tornado cineasta e ator de filmes americanos. O facínora Mapache foi interpretado convincentemente pelo ator Emilio Fernández, já veterano também.
O bando a que refere à palavra “Wild” (“Selvagem”) no título original é comandado por Pike (William Holden) e perseguido por um ex-companheiro Thornton (Robrt Ryan), contratado para captura-lo ou matá-lo, por ordem da ferrovia local. Junto com Thornton vem um grupo de criminosos ladrões e assassinos, que se fartam em pilhar cadáveres de pessoas que eles mesmos matam.
O bando selvagem de Pike mostra no fim ser contra a opressão de Mapache, e no final dão a vida, para tentar destruir o poder fictício e a autoridade imposta que este último construiu.
O jeito do diretor
Sam Peckinpah sempre se mostrou contra o jeito hipócrita e fantasioso de Hollywood, ao trazer à tela certos temas, e o western certamente foi um deles. Wild Bunch pode ser visto como uma desconstrução do assunto. A cena do automóvel marca um divisor de águas, entre a sociedade rural e a urbana, a primeira ficando para trás em todos os sentidos.
O diretor deixou a sua marca. Ela pode ser vista em vários filmes de Clint Eastwood, dentro do mesmo tema. Mas, são estilos de filmagem diferentes, e em Peckinpah se vê uma crítica direta, sem subterfúgios ou mensagens subjacentes.
Hollywood se tornou uma praga cinematográfica quando o assunto é violência, e praticamente nenhum dos filmes novos consegue transmitir o que é verossímil, tanto em personagens quanto em ambiente. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.