Você já ouviu falar do Clube Sinatra-Farney? O clube da Rua Moura Brito, na Tijuca, Rio de Janeiro, foi importante e frequentado por muita gente que viria a criar a Bossa Nova.
Foi nos anos de 1990, quando em 1994 eu me inscrevi para a então emergente Internet, ainda exclusivamente dentro da área acadêmica, na época munido de um manual de comandos para acessos a sites na linha de prompt do sistema.
Tempos depois, em ambiente WWW, eu tive um contato quase diário por e-mail com o historiador e crítico de Jazz José Domingos Raffaelli, quando ele escrevia para o Globo, se não me engano. Quando eu saí da UFRJ não me ocorreu (burrice pura) de salvar importantes mensagens e fotografias contidas no servidor do Hospital Universitário, ou seja, perdi tudo.
Em um daqueles e-mails, o Raffaelli conta com detalhes o histórico do Clube Sinatra-Farney, segundo ele onde as raízes da Bossa Nova teriam aparecido pela primeira vez. É uma pena que aquele e-mail tenha sido perdido. Até então, eu nunca tinha ouvido falar do fã clube da Rua Moura Brito, e muito menos das pessoas que frequentavam aquele lugar.
Até hoje, pouco da memória do Clube sobreviveu, o que é uma pena. Eu conhecia bem a Rua Moura Brito, porque um colega do ginásio morava lá, e de vez em quando eu passava pela casa dele. A rua era cheia de casas, mas não sobreviveu à especulação imobiliária, como, aliás, o restante das ruas próximas, que tiveram as casas derrubadas para a construção de edifícios — um dos maiores crimes ambientais que bairros como a Tijuca sofreram.
O pouco histórico que ainda crassa pela Internet, conta que o Sinatra-Farney Fan Club foi fundado pelas primas Joca, Didi e Teresa Queiroz, em 1949. Dick Farney fazia grande sucesso como cantor de músicas americanas, mas havia voltado da América, e, segundo afirmam alguns, tomou conhecimento do Clube e apareceu por lá.
O Clube foi frequentado por músicos que poucos anos depois, iriam se notabilizar no movimento bossa novista, entre eles João Donato e Paulo Moura. Dizem até que Nara Leão frequentou o lugar, além de Carlos Manga e outros.
Raffaelli me afirmou que foi ali que surgiram as raízes da Bossa Nova. Por lá passou um tal Alfredo José da Silva, tijucano, conhecido como Johnny Alf, um dos precursores da Bossa Nova.
E não foi só ele quem influenciou o movimento. Tito Madi era casado com a minha prima Lucia Maria, e um dia ele me contou que o pessoal que estava começando a formar o novo estilo de música, passava pelos clubes noturnos onde ele cantava. Tito era um grande compositor, algumas das suas músicas mais bonitas eu nunca vi gravadas. Uma vez ele me disse “beberam muito da minha água”, se referindo ao pessoal da Bossa Nova, que ia lá assistir os shows dele.
Mas, na música é assim mesmo, inclusive na música erudita, e pouco importa quem influenciou quem, o importante mesmo é reconhecer as mudanças de cada estilo que mostraram no final o seu valor.
Um histórico sempre deturpado
É uma pena a gente constatar que no nosso país a preservação da memória é claudicante e incipiente! Sem falar na falta da educação musical no ensino básico.
Eu já escrevi o que pude sobre a Bossa Nova. Frequentemente, pessoas mais jovens se aventuram como historiadores de um movimento que eles não viveram, e talvez por isso, volta e meia saem dando dados que eles não conhecem.
Em um vídeo do YouTube sobre Tom Jobim, por exemplo, os autores dizem que Tom nasceu na Rua Conde de Bonfim, na Barra da Tijuca. Tudo faz crer que quem escreveu isso não conhece o Rio de Janeiro. Outros dizem que parte da Bossa Nova veio do bairro suburbano da Tijuca…
Só para esclarecer: a Tijuca fica na Zona Norte, que nunca foi subúrbio, a Barra da Tijuca fica na Zona Oeste, bem distantes uma da outra. A Rua Moura Brito não tem título de Dr, como muitos a descrevem. A importância histórica e cultural da Tijuca é inegável. Ela abrigou o maior número de cinemas por bairro, as famílias eram de classe média e não de classe alta, como historiadores da Bossa Nova afirmam que foi de onde a música surgiu.
Quando no colégio, eu passava pelas ruas ouvindo algum som de piano. O bairro sempre foi musical por excelência. O ambiente da Tijuca daquela época era cativante. E não era para menos: a Tijuca tem a maior floresta urbana do mundo, conhecida como Floresta da Tijuca, um dos locais mais aprazíveis que eu conheci quando era menino, situado dentro do Parque Nacional da Tijuca.
O bairro ainda teve dois estúdios de cinema, que foram o do Herbert Richers e o da Atlântida Cinematográfica. Vários filmes eram rodados nas ruas do bairro.
Outra bobagem inacreditável dos “historiadores” do YouTube foi afirmar que a Bossa Nova foi uma forma de “embranquecer o samba”, bobagem essa herdada dos antigos detratores do movimento. Um vídeo que eu assisti afirmou que Alaíde Costa fora discriminada, por ser negra. Isso só demonstra o mesmo ranço de preconceito racista, vindo de pessoas que vêm a realidade somente do jeito que elas querem, e nunca se importam de estudar a fundo o histórico de um movimento importante como este. Se tivessem feito a pesquisa corretamente, não iriam dizer que Tom Jobim nasceu na Barra da Tijuca!
O assunto Sinatra-Farney voltou à minha atenção recentemente, evocado por um longo depoimento do antológico compositor Roberto Menescal, que, por sorte nossa, fãs de sua música, ainda está vivo e atuante, tendo incentivado gente jovem na música. Em um dos seus depoimentos, ele fala que a memória deve ser preservada. Eu acrescento: e como!
É perfeitamente natural que quando alguém gosta muito de um gênero de música queira saber como ela surgiu e quem foram os seus precursores. O meu filho me chamou para ir ao Theatro Municipal assistir a OSB tocar a Nona de Beethoven. Antes do concerto, foi oferecida uma bela palestra sobre a época de Beethoven e como surgiu a última sinfonia. É assim que tem que ser! Quem assistiu à palestra, mesmo aqueles que conhecem a obra de Beethoven, certamente apreciaram muito mais a execução virtuosa da OSB. [Webinsider]
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A influência da Bossa Nova na música popular romântica norte-americana
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.