Palácios e Poeiras fizeram parte constante na minha adolescência, época na qual eu aprendi muito sobre cinemas. O texto a seguir resgata alguns desses momentos, cuja lembrança me emociona até hoje.
Anos atrás, eu resolvi fazer uma pesquisa sobre a parte técnica das cabines de cinema no Rio de Janeiro, e para o meu espanto, esta é mais uma dos tipos de memória quase inexistentes, só mesmo conversando com pessoas que viveram os cinemas e as cabines, profissionalmente ou não.
Na época, me dirigi ao escritório do grupo Severiano Ribeiro, localizado no Edifício Odeon, e a secretária me informa que lá ela não tinha nenhuma imagem, registro ou especificações técnicas das cabines dos cinemas. Uau…
Em busca de literatura eu esbarrei naquele que eu acho o melhor livro sobre os cinemas do Rio de Janeiro, que é o Palácios e Poeiras: 100 anos de cinemas no Rio de Janeiro, escrito por Alice Gonzaga (Cinédia) e com pesquisa feita por Hernani Heffner, responsável pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
A Alice Gonzaga, o Hernani Heffner, e tantos outros que conheci no meu trajeto de pesquisa, como o Antonio Ricardo Soriano, que fundou o melhor site para historiar os cinemas de São Paulo, o Rafael de Luna, Professor do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense, e o Ivo Raposo, que construiu a réplica do Metro-Tijuca em Conservatória, todos eles, sem exceção, sabem muito mais sobre cinema e salas de exibição do que eu. E foi com eles que eu aprendi muito sobre o assunto!
Histórico
A minha geração começou a ir aos cinemas muito cedo. No Rio de Janeiro, a década de 1950 foi gloriosa neste aspecto. E o bairro da Tijuca, por sorte, com a maior concentração de salas por bairros. A minha mãe, fã incondicional de cinema, logo cedo me levava ao Metro-Tijuca, onde passei os melhores momentos da minha vida.
Eu me lembro de que quando Lili (com Leslie Caron), Pequeno Polegar (com Russ Tamblyn) e outros filmes destinados ao público infantil, eram reprisados, ela me levava lá de novo. O meu tio Alcides, marido da irmã da mamãe, me levava aos fabulosos Festivais Tom e Jerry, nos primeiros domingos de cada mês, momentos onde eu vi a criançada toda explodir em gargalhadas e aplausos assistindo aquelas obras-primas da animação.
O Metro-Tijuca foi importante na minha vida e na do Ivo Raposo também, que heroicamente resgatou aparelhagens, poltronas e lustres, para edificar uma réplica em pequena escala, apelidada de “Centímetro”. Lá, estudantes, cinéfilos ou fãs poderão ver resgatados itens importantes do que foi um dos melhores cinemas do Rio de Janeiro.
Quando adolescente, a minha rotina era sempre a mesma: tomar o bonde e saltar na Praça Saens Peña, onde estava a maior parte dos cinemas, ou então, ir na direção oposta e entrar no Madrid, cinema cuja perda me deixou traumatizado!
Na década de 1960, eu fiz um curso básico de cinema, organizado pelo Cineclube Nelson Pompeia da Pontifícia Universidade Católica, e ministrado por jornalistas na maioria das aulas, no auditório do Colégio Sacré-Coeur de Marie, em Copacabana. Este foi o último curso que o meu pai me deu, antes de falecer, e foi lá que eu aprendi muita coisa sobre história, técnica, crítica e outros assuntos relevantes.
Este curso teve também uma enorme influência sobre mim, quando o chamado “cinema de arte” se expandiu na cidade. Eu frequentei muito as cinematecas do Museu de Arte Moderna e do Museu da Imagem e do Som, esta última depois extinta.
Como estudante e organizador de um cineclube eu peguei emprestado dezenas de filmes em 16 mm, sem falar nos aluguéis de longas, que nós pagávamos com as nossas parcas economias de estudantes. Toda semana, lá ia eu de ônibus carregando latas e caixas de filmes, todas pesadas. Também, pelo cineclube, eu frequentei muito o Conselho Britânico, que tinha uma vasta filmoteca.
Para pegar filmes no Consulado Americano o usuário tinha que aprender a projetar os filmes em cursos dados por eles, mas no meu caso eu provei a eles que projetava filmes desde tenra idade. Os primeiros filmes em 16 mm que eu projetei eram mudos e anos depois sonoros, na casa de um vizinho abastado, que alugava filmes e não tinha ninguém para passar os filmes para a família assistir.
Fora do 16 mm, toda vez que o meu pai me mandava passar férias em Cajuru, sua cidade natal do interior de São Paulo, eu aproveitava para conhecer o que fosse possível sobre projeção em 35 mm, na cabine do Cine Teatro Yara, que era do irmão do meu pai, que a gente chamava de “Tio Gino”.
O cinema do meu tio tinha um operador com o nome de Paulo, meu xará, tratado pelos locais com o apelido maldoso e sarcástico de Paulo Farrinha, porque alguém o teria flagrado limpando o nariz com os dedos. O Paulo me chamava de xará, e sem o meu tio saber, me levava na cabine e me ensinou não só a acender a lanterna de arco voltaico e projetar, como emendar trailers e jornais na coladeira.
A aparelhagem consistia de um par de projetores RCA. Na entrada do cinema o meu tio havia instalado uma placa de metal com os dizeres tipo “Equipo Sonoro RCA”. Duas lentes CinemaScope, do tipo Panatar variável, eram dotadas de um knob rotativo que permitia a projeção de película plana e a scope, apenas girando nas posições desejadas.
Esta minha convivência com os operadores na cabine do meu tio me foi instrutiva, mas aquele meu tio não me permitiria ir lá, alegando perigo. Uma vez, um dos operadores ficou doente, e eu passei o filme no lugar dele. O meu tio soube e saiu cuspindo marimbondo na minha direção.
Eu tenho certeza de que o meu tio Gino nunca entendeu a minha paixão por cinema, mas o nosso bom Paulo sim. Ele ia todo dia buscar as latas de filmes na estação do trem, e às vezes me chamava para testar alguma coisa no período da tarde (as sessões eram sempre de noite), e quando aparecia um desenho em uma das latas a gente projetava para ver o que era. Eu vi cópias novinhas de curtas das animações da Warner, com colorido e som espetaculares!
Grandes espetáculos, grandes memórias
Por definição, o cinema classificado como “Poeira” é aquele com instalações mais modestas, como, por exemplo, assentos de madeira em lugar das poltronas, ou ausência de tapetes ou outro luxo qualquer nas instalações dos cinemas.
Na Praça Saens Peña existiam dois cinemas que se encaixam nesta categoria: o Tijuca, apelidado de “Tijuquinha”, e o Santo Afonso, que pertencia aos padres da Igreja Santo Afonso, que era adjacente. O Ivo Raposo começou a projetar lá e me conta que havia censura dos padres, mandando cortar cenas, tal como no filme Cinema Paradiso.
O Tijuquinha foi desativado e o espaço virou uma das Lojas Americanas. Mais tarde, o Eskye-Tijuca iria ser reformado e o nome trocado para Cine Tijuca. O Santo Afonso deu lugar a um enorme supermercado. Vejam que havia um outro cinema de padres, chamado Roma, na Rua Mariz e Barros, mas este, embora pequeno, não era “poeira”.
O espetáculo de cinema construído propositalmente sempre constou de exibição com cortinas fechadas antes da projeção, gongo mecânico, quando era o caso, ou iluminação colorida na borda da tela. Muitos cinemas tinham cortina dupla, uma delas, mais próxima da tela, abria somente até o enquadramento do filme plano, e depois abria completamente se o filme fosse CinemaScope.
A formatação de espetáculo, com abertura, intervalo e música de saída, foi concebido para fazer com que a sala de cinema emulasse o ambiente das peças teatrais, só que em 2 atos somente.
Para mim, um dos itens mais importantes das projeções assim formatadas foi o da reprodução do som estereofônico. Os anúncios do Severiano Ribeiro mostravam um logo com os dizeres “6 faixas de som estereofônico”, coisa que nunca existiu nas películas de 35 mm. O som do CinemaScope sempre foi de 4 e não de 6 faixas, como eles anunciavam, mas só que, na prática, ninguém se importava com isso.
Na Tijuca desta época, o melhor cinema com som estereofônico foi o Madrid, muito bem construído, ocultando todas as caixas surround. A acústica do Madrid era exemplar. O Metro-Tijuca tinha caixas laterais, todas visíveis, mas eu nunca assisti filmes lá com som estereofônico. Essas caixas reproduziam música antes das sessões apenas. O Ivo me mostrou os projetores de lá, Simplex E-7 e XL, com cabeças magnéticas no topo, porque eles nunca usaram eu não sei. O Metro-Tijuca original também tinha equipamento Perspecta, mas eu também nunca vi a reprodução deste tipo por lá.
O filme de 70 mm, com abertura e intervalo
Eu tive e a sorte e o privilégio de conhecer o Orion Jardim de Faria, sobre quem já escrevi neste espaço. Logo no primeiro encontro com ele, eu me identifiquei completamente com o que ele me contava, e não me cansei de ouvir grande parte daquela experiência incrível sobre os projetores de 70 mm. O Orion conhecia profundamente áudio e caixas acústicas, dois assuntos que sempre me deixaram cativo. Para mim foi gratificante conversar com ele sobre isso, e aprender que ele construiu os Incol 70/35 com cabeças magnéticas para 4 (35 mm) e 6 canais (70 mm) que ele havia encomendado na Itália.
Em cinemas como, por exemplo, o Roxy, onde o Cinerama 70 mm tinha sido instalado, o resultado sonoro era simplesmente espetacular. Quando o Madrid instalou os Incol o som estereofônico que já era ótimo (Simplex XL), ficou ainda melhor. Se tivessem construído o Cinerama 70 como previsto, teria sido o melhor Cinerama da cidade, sem dúvida alguma.
O 70 mm marcou em mim uma época inesquecível, tanto o da projeção plana, quanto do Cinerama 70 e da projeção em Dimensão 150, com telas curvas. Os nossos melhores cinemas seguiam o roteiros dos chamados “roadshows”, com cortinas se fechando para a reprodução da abertura, e depois novamente se fechando no intervalo do filme.
Eu tenho visto na Internet dezenas de projetos de recuperação de salas de cinema, algumas inclusive aqui no país. Filmes recentes em 70 mm tem sido projetados nas salas lá de fora, as daqui eu acho que não.
Infelizmente, eu não sou otimista que o 70 mm volte por aqui, mas nunca se sabe. O desmonte das salas, até onde eu sei, provocou a remoção e o sucateamento de todos os projetores. Anos atrás, o Charles, do Projecine, me mandou fotos de dois Victoria 8 já podres, que a empresa dele restaurou para depois vender. Hoje, acho que ele nem conseguiria passar esses projetores adiante. Os Victoria que eles recuperaram tiveram os debitadores de 70 mm retirados, porque nem o Charles nem os sócios acreditam na ressurreição do formato!
Sem a presença desses cinemas com capacidade para projetar filmes em 70 mm, as gerações mais jovens nunca irão saber o que é um espetáculo de cinema, a sua grandiosidade e mística. Tal empecilho é, no meu entender, um crime cultural sem precedentes.
Os antigos exibidores construíram cinemas, inclusive os Palácios, embaixo de um prédio comercial, por motivos meramente financeiros. Teria sido teoricamente possível resgatar as salas de exibição e/ou preservar o patrimônio para fins similares. Aqui no Rio, a loja Riachuelo reformou totalmente o cinema Palácio e o transformou em teatro. O Vitória também foi restaurado, desta vez pela Livraria Cultura, mas infelizmente o espaço interno do auditório não foi preservado, só as paredes e o antigo, pré CinemaScope, proscênio. Com o fechamento da Livraria, ninguém mais pode entrar lá dentro e ver como era o cinema.
É por essas e outras que otimista eu não sou. Qualquer projeto de resgate de cinemas teria que ser um empreendimento de enormes proporções e com a participação de muita gente interessada. Pode ser que isso aconteça algum dia, espero que sim, mas por enquanto eu acho que não vou viver o suficiente para ver isso acontecer. Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
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Bom dia, Paulo. Ótimo texto que me identifiquei muito. Cheguei a conclusão que nossa sala do Clube Avareense de Cinema era poeira. O local está abandonado, pertence à Prefeitura que nada faz. A sala tem as poltronas de madeira e sem tapetes. Eu ligava o termo poeira com sujeira . Que ingenuidade!
Oi, Celso,
Desculpe pela demora na resposta. É uma pena que até mesmo os cinemas do tipo poeira não tenham sido preservados, mas a realidade é essa mesma, foi uma destruição que, aparentemente, só indicou a quem realmente gosta de cinema e viveu esta época