O meu MSX Expert, micro de 8 bits que tanto me ajudou no trabalho, era às vezes motivo de chacota – chamavam de “micrinho” ou “micro para joguinho”, coisas do tipo. No entanto, a informática de 8 bits teve o mérito de fazer as pessoas reinventarem a roda.
Eu fico constantemente surpreso com as dezenas de vídeos postados no YouTube cobrindo informática de 8 bits, oficialmente morta na maioria dos países desde meados da década de 1990. E eu só posso admitir que muita gente ainda está saudosa desta época, além de outros que tentam explicar em vídeo como era o momento em que a microinformática começou a acontecer em escala maior.
Eu larguei a informática de 8 bits no início de 1990. Quando eu saí do país para estudar eu morei cerca de 2 meses com um primo que já estava em Warwickshire, Inglaterra, fazendo o seu doutorado. E a primeira coisa sobre o assunto que eu ouvi dele foi que na Grã-Bretanha não existia mais computadores de 8 bits à venda. Esse meu primo já tinha passado para uma plataforma IBM com processador Intel 80286 e monitor VGA colorido, e como eu estava apenas começando a minha estadia por lá me contentei em comprar dele um micro com CPU Intel 8086, monitor âmbar, mas pelo menos já rodando em 16 bits.
Na década anterior eu comprei um MSX Expert, fabricado pela Gradiente, somente para estudar Basic, mas já na época programas em fita cassete (copiados e vendidos a baixo preço) acabaram por me envolver com processamento de texto, planilha, etc. Para quem, como eu, digitou (desastrosamente) a tese de mestrado inteira em uma máquina de escrever elétrica IBM, emprestada da secretária do meu departamento, o primeiro processador de texto em um microcomputador era quase um milagre. O recurso que permitia corrigir os erros de digitação antes de imprimir o texto era para mim um avanço considerável. A história mostra que processadores de texto vendidos pelas software houses, tais como Wordstar e outros, impulsionaram a venda de computadores, ainda na época do CP/M em 8 bits.
E não só isso: eu vi estudantes e aficionados escreverem sistemas em linguagem dBase, programa este que avançou até próximo do Windows, cedendo lugar ao Microsoft Access e outros aplicativos similares. Como as versões iniciais do Windows rodavam a partir do MS-DOS, eu ainda tive chance de usar o dBase IV e com ele escrever um programa para gerenciar as minhas referências, colhidas nas bibliotecas.
O uso da memória mudou tudo
Uma das diferenças mais básicas e importantes entre processadores de classes diferentes está no trato do endereçamento da memória. Isto, a meu ver, foi o que, em última análise, aniquilou de vez a microinformática de 8 bits. No início, os computadores de 16 bits tinham que lidar com o alto custo de memória RAM, mas com o tempo e de forma paulatina os módulos de memória começaram a cair de preço. Computadores de 16 bits dotados, por exemplo, de 256 kB de RAM custavam uma pequena fortuna e inacessíveis ao bolso de nós mortais. Por isso, e por isso somente, a informática de 8 bits continuou sendo decisiva para o processamento de dados em pequena escala, já que o essencial ela fazia!
Alguns dos meus programas para cálculo estatístico, escrito inicialmente em MSX Basic, migraram para o IBM 8086 e foram depois parar nos Pentium I e II, nos computadores do laboratório, porque o Windows e o DOS andaram de braços dados por longo tempo. E ainda hoje eu posso rodar esses programas, bastando para isso instalar antes um emulador de DOS, como por exemplo, o DOS BOX, que funciona muito bem. A propósito, o MSX funcionava com um processador Zilog Z80A, com 3.58 MHz de clock (se a memória não me trai) e assim ao rodar qualquer programinha daqueles o computador demorava alguns segundos para apresentar os resultados, dependendo, é claro, do tamanho da amostra em análise. Para evitar que alguém usasse o meu programa e pensasse que o computador tinha parado, eu inseri uma linha com a mensagem “Aguarde” (“Wait”, na versão em inglês, montada quando eu estava fora). Mas, já no Intel 8086 a linha não aparecia mais na tela, debaixo de um clock em torno de uns 8 MHz!
Em tempos de 8 bits era perfeitamente possível receber na cara a mensagem “Out of memory” na tela, indicando a linha onde a execução parou, quando o programa escrito não respeitava a ocupação ou a reserva de memória na RAM.
O aumento da memória RAM alavancou o processamento de dados, e até hoje é possível observar a enorme influência que o banco de memória tem na execução de programas altamente sofisticados. Para o leitor ter uma ideia, um processador AMD Ryzen, de uma das últimas gerações, trabalha com algoritmos sofisticados de inteligência, com o aumento do tamanho e da velocidade da memória, reconhecidos automaticamente pelo processador. Na minha última montagem, o clock da memória está ajustado para 3200 MHz (DDR4), o que é notável considerando-se o uso histórico dos módulos de memória em retrospecto.
Por que o micro de 8 bits foi tão importante?
Os computadores de 8 bits foram fabricados em todos os tipos e tamanhos, com recursos que dependiam do modelo adquirido.
Tanto o CP/M quanto o MS-DOS adaptado usavam uma quantidade modesta de RAM. O MSX-DOS, por exemplo, rodava com 64 kBytes de memória RAM. O aparelho vinha com 32 kBytes para o MSX-Basic (o interpretador era armazenado em ROM na placa mãe) e o restante através dentro de um cartucho da controladora de discos floppy, inserido em um dos slots.
Os micros de 8 bits foram uma escolha para todos aqueles que queriam vencer o paradigma aceito pela maioria das pessoas de que “computador é coisa para gênios”. Eu mesmo, quando comecei, ouvi isso de uma amiga da família, na base da brincadeira. E não era sem sentido: o computador era uma caixa preta, que para ser usada precisava ser programada. E este aprendizado era às vezes quase que inexpugnável para aqueles que nunca tinham feito um curso de informática na vida.
Eu entrei em um curso introdutório no Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ preparado para a inicialização do corpo docente, em 1984. Dos cinquenta inscritos, sobraram pouco mais de vinte na segunda aula. E o nosso colega que ministrava o curso escrevia uma rotina no quadro negro e avisava que era preciso testar para ver se dava certo! Às vezes não dava!
Se ficasse neste nível o uso de computadores não teria ganhado mais adeptos. Mas, os fabricantes de microcomputadores perceberam que era preciso unir o útil ao agradável. Desde tempos imemoriais programadores independentes escreviam códigos para todo tipo de aplicativo, tais como processadores de texto, planilhas, gerenciamento de banco de dados, designs de diversas naturezas, etc.
Logo se formou uma indústria, que se beneficiou dos primeiros sistemas operacionais em disco. Muitos daqueles aplicativos escritos para CP/M rodavam sem transtorno em DOS, e isso possibilitou aos usuários de 8 bits migrar de plataforma no momento certo.
É muito fácil, creio eu, olhar esta migração em retrospectiva e perceber que os computadores de 8 bits foram, no seu tempo, uma escola de aprendizado inestimável, principalmente para aqueles que não tinham os micros de 16 bits no alcance financeiro!
Conceitos primários, cujo aprendizado depende da compreensão do que está se passando em um computador, foram rapidamente assimilados em computadores de 8 bits, já que não havia ainda uma interface gráfica convincente com o usuário final, ou seja, todas as operações precisavam ser comandadas por menus ou digitadas manualmente na linha de comando (o chamado “prompt”).
Comandos como “abrir” ou “salvar” e “fechar” um arquivo, “imprimir”, etc., e noções do que eram tabelas de códigos, por exemplo, fizeram do usuário de 8 bits um iniciado na área de informática sem ter nunca ter pertencido a ela!
Com a introdução da interface gráfica os comandos foram substituídos por ícones, emprestados do escritório convencional. Assim, por exemplo, “diretório” virou “pasta”, onde “arquivos” são colocados. “Salvar”, neste caso, significa “guardar o arquivo com a pasta em lugar seguro”.
Note-se que embora visualmente mais fáceis vários desses ícones partiram do pressuposto de que os conceitos anteriormente assimilados eram previamente conhecidos, o que nem sempre era o caso.
Na minha experiência no ambiente de trabalho eu enfrentei estudantes graduados que não entendiam, por exemplo, o conceito do que significa “salvar um arquivo”, e nesses momentos eu era obrigado a interferir, explicando como um computador funciona, e porque era preciso “salvar” um arquivo.
Eu nunca culpei estudantes por não saberem o que é a operação de “salvar”, porque seria preciso que ele ou ela entendessem que, uma vez desligando o computador, tudo o que está na memória RAM é apagado. Parece simples, mas na prática não é, e cada pessoa aprende conceitos em velocidade variável. Muitos a quem se explica alguma coisa complexa precisam entender direito primeiro e só depois assimilar o quer que seja.
O computador, por ser de natureza binária, subentende um raciocínio lógico, isto é, distante do emocional. Eu passei por uma situação que ilustra bem este conceito: uma estudante de mestrado me alcançou na mesa de trabalho, estressada porque a tese não imprimia e ela não sabia o que fazer. Chegando lá a primeira coisa que eu notei era que a impressora estava desligada.
O emocional e o estresse dificultam que alguém possa correlacionar algo aparentemente tão simples: “se não imprime, a impressora pode estar desligada”! E isso pode acontecer com qualquer um, mesmo com aqueles mais experimentados: a solução está na frente, mas ninguém enxerga!
O que não volta mais
A percepção de que as máquinas modernas vêm facilitando o seu uso diário não significa necessariamente que o usuário final tenha ficado mais alerta com a natureza do que uma determinada máquina faz.
Na vida real, milhares, talvez milhões, de pessoas usam máquinas sem o menor interesse em saber o que está acontecendo lá dentro. Se os resultados aparecem, ótimo, senão vai ser preciso procurar algum tipo de suporte.
Longe estão os dias em que um computador era vendido com um grosso manual incluído. Na realidade, hoje em dia são cada vez mais raros equipamentos eletrônicos serem vendidos com qualquer manual.
Desta maneira, não há como recorrer, a não ser a alguém que possa ter ou achar a chave do problema encontrado.
Eu percebo, e talvez possa estar enganado, que o usuário final ficou viciado em simplesmente “apertar botões”, sem que absolutamente nada da operação envolvida seja entendida.
Neste sentido, quanto maior e mais sofisticada for uma interface gráfica, mais distante o usuário ficará distante do que a máquina está fazendo. E se esta fizer bem feito o que ele ou ela querem, tanto melhor.
Isto significa que a microcomputação de 8 bits, a despeito do entusiastas nos vídeos do YouTube até quem sabe quererem ver de volta, dificilmente voltará a ocupar o mesmo lugar de outrora.
Em um desses vídeos do YouTube, eu vejo o pai ligar um MSX Expert e convidar o filho para brincar com o cartucho de apresentação que era fornecido pela Gradiente com ele.
Gozado que esta mesma máquina, que tanto me ajudou no trabalho, era às vezes motivo de chacota. Naquela época, eu ouvi alusões ao MSX como “micrinho” ou “micro para joguinho”, coisas deste tipo.
Eu fiquei imaginando o que uma pessoa daquelas iria pensar vendo o pai convidando o filho para brincar com um Expert. E, no entanto, nada do que se pudesse atribuir de negativo a respeito da computação de 8 bits iria empanar o brilho dos nossos olhos ao completar tarefas de forma tão eficiente quanto os antigos “armários” dos mainframes.
Eu nunca me esqueço de um colega cientista, oriundo do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, que cuidava de um espectroscópio de ressonância nuclear sofisticado, assistido por um computador gigantesco. Um belo dia, e a gente não se via já um bom tempo, ele vem ao meu encontro na rua, com um enorme sorriso, e me pergunta se eu lembrava daquele computador monstro da central analítica, e aí, às gargalhadas, ele me fala que o tinha substituído por um TK-80, cujo modelo havia sido fabricado no Brasil, mais pobre do que o meu MSX, por conta da lei de reserva da informática.
Pois a informática de 8 bits teve este mérito, de fazer as pessoas reinventarem a roda!
Mas, não tem volta, sinto muito os seus admiradores do YouTube. O volume de dados, somados aos recursos de hardware, somados ainda às sofisticas maneiras de interagir com a máquina, irão impedir isso. A linha do tempo na microinformática irá prosseguir, para situações ainda não imaginadas. A maioria dos usuários continuará, tenho certeza, usando aparelhos e máquinas sem noção do que rola lá dentro. Isso se aplica a televisores, celulares, tablets ou qualquer aparelho deste tipo!
O progresso da computação não espera ninguém. Quem quiser que se atualize!
E quanto ao meu programinha de estatística, escrito com esforço e útil por mais de uma década no laboratório, dele só me resta a saudade. Pacotes estatísticos com inteligência de análise foram lançados comercialmente ainda na década de 1990, que fariam o meu programa ficar rubro de vergonha. Mas, não ficou, porque cabia em um disquete, e foi usado em laboratórios distantes, com uma simples partida do interpretador. Com ele foi possível, por exemplo, calibrar equipamentos ou verificar a fidedignidade da curva de calibração obtida, nada mau para um programa tão modesto.
Outrolado_
Winston Churchill e a Segunda Guerra Mundial de volta nas telas
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
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Olá Paulo
Tenho um relato “muito” interessante sobre os micros de 8 bits, em especial da concorrente da Gradiente (na época, o Hot-Bit da Sharp). Lembra-se que comentei sobre a Transamérica aqui em S.P.? A Sharp da Amazônia fechou um contrato para produção de programas para o seu Hot-Bit, com a Transamérica Produções (divisao dos Estúdios Transamerica, para a produção de fitas K7) Eu era o Técnico Matrizador das fitas K7 que iam para a setor de duplicagem. Se você soubesse a dificuldade que tivemos no início, para que a primeira série de fitas K7 dos programas, tivessem a aprovação da Sharp, você não imagina. Pelo simples fato que tivemos que utilizar a StuderA80 (projetada para áudio analógico) para fazer uma gravação em sistema digital, que tivesse parametros de leitura nos data-corders da Sharp, e depois para leitura no micros Hot-Bit. Foram quase 3 meses de testes com muitos erros, e finalmente o acerto, até que o 1° lote de programa entrasse em fase de produção (inicialmente de 200 peças). Que fórmula complicada para mim para aquela epoca. Mas isso foi ótimo, pois agregou uma experiências que eu não possuía, gravar um som em “linguagem de máquina” em uma fita magnética no formato analógico. Que viagem foi para mim Paulo… Um abração.
É, Rogério, aquela época toda foi cercada de situações inusitadas, eu também posso te contar algumas:
Um ex-professor de Química Orgânica era um dos mais importantes cientistas dentro do Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais, que ficava no andar de baixo do meu departamento, mas a gente se falava muito pouco, talvez por eu ser um ex-aluno que passava pelos corredores desapercebido. O meu envolvimento com o o MSX na época me levou a publicar um artigo na revista MSX-Micro. Ele viu e liga lá para a minha casa me solicitando que desse uma lida em um livro dele sobre MSX que já estava prestes a ser publicado. É que ele havia feito um acordo com a Sharp, recebeu vários cartuchos com aplicativos, para testes e publicações. A minha tarefa seria retestar os exercícios, revisar o texto, etc. O nome dele, Affonso do Prado Seabra, ficou conhecido por causa desses livros. Um dos últimos já era sobre MS-DOS e foi o último que eu revisei. A escassez de material de leitura me motivou também a escrever livros e artigos. Foi complicado convencer o meu irmão, que era analista de sistemas, a nos envolver neste tipo de empreitada. No final da década de 1980 nós publicamos 3 livros pela Editora Ciência Moderna. Um deles eu vi pirateado por um clube de MSX na Internet.
Durante boa parte desta época eu fui assistente de pesquisa de um colega que desenvolvia um estudo experimental sobre pulmão de choque, que era conhecido durante a guerra do Vietnam como “pulmão de Da Nang”. Muitos soldados americanos morreram com esta síndrome, e ninguém sabia por que. Foi um dos assuntos mais complicados que eu me atrevi a estudar. Durante os primeiros meses de trabalho nós quebrávamos a rotina das longas experiências, que duravam de cinco da manhã até umas cinco da tarde, falando sobre projetos pessoais, e um deles, é claro, foi sobre o MSX. Esse colega e outro aposentado estavam às turras com datilógrafas, em um livro que não terminava nunca. Um dia ele foi na minha casa e eu o apresentei ao processador de texto. Ele saiu correndo, comprou o micro e a impressora. Resultado: a datilógrafa foi imediatamente dispensada (a coitada perdeu o emprego) e o livro ficou pronto em curto espaço de tempo.
Esse cientista e eu somos hoje amigos de longa data agora, me ensinou muita coisa, e quando ele me liga dizendo que está sem computador, eu vou correndo prestar socorro. Fico feliz quando saio da casa dele com o problema resolvido!
Se eu fosse recordar tudo o que eu passei naquela época, dava para escrever outro livro, mas que seria, nos moldes de hoje, impublicável, é claro.
Tudo o que você passou com a duplicação de programas eu não só entendo como sou obrigado a lhe dizer que o seu esforço foi heroico. O Brasil jamais poderia ter levado ao conhecimento da informática com tantas limitações de (in)formação!