A transcrição de películas para home theater substitui com vantagens as desgastadas trilhas óticas. Quem ganha é o fã de cinema.
Às vezes, eu ainda me constato às voltas com um debate infrutífero ao lado de pessoas de outros países, que populacionam certas discussões em fóruns na internet. Os sites que hospedam estes debates historicamente rotulam usuários com títulos que supostamente deveriam dar noção aos que postam comentários nas listas de discussão sobre com quem estão dialogando.
Palavras como “expert” e “advanced user” fazem parte destas honrarias fabricadas para agradecer quem perde horas com aquilo tudo ali.
E eu caí outra vez na esparrela de entrar em uma lista de discussão onde se mencionava o filme Dunkirk, rodado pelo inglês Christopher Nolan, usando nada menos do que película em IMAX e Super Panavision 70 mm, algo cada vez mais raro entre os cineastas.
Mas, em contrapartida, o diretor decidiu limitar a reprodução da trilha sonora no tradicional formato de 5.1 canais de áudio. Como as produções em IMAX podem facilmente chegar a 7.1 canais, muita gente reivindicou que pela menos a edição em Blu-Ray fosse feita neste formato, melhor ainda, com o uso do Dolby Atmos para a edição em Blu-Ray, que é retro compatível com 7.1 canais.
Na análise do filme, o site Blu-Ray.com publica um review onde o analista sabia de um descontentamento de terceiros a este respeito, mas que supostamente o diretor havia declinado a modificação, alegando que a cópia no disco deveria ser idêntica à exibida no cinema.
Então, foi aí que eu caí na besteira de informar que até na edição brasileira a trilha Dolby Atmos havia sido omitida, apesar de que a Warner Brothers curiosamente havia alterado o seu segmento de introdução com uma trilha sonora nova em Dolby Atmos!
Ah, para que? Fui eu informar isso, e parece que ninguém havia notado a presença de Atmos no disco, e alguns daqueles “experts” caíram de porrada em cima de mim, dizendo que o diretor havia decidido por 5.1 e ponto! E quando eu tentei me justificar eles aprofundaram a discussão com uma torrente de bobagens, e no final do que eu classificaria como um exercício de futilidade eu senti que estava perdendo o meu tempo.
A ignorância dos ditos “experts” começa no desconhecimento de um fato sobejamente divulgado pelos laboratórios Dolby desde a metade da década de 1990, e que se refere a todas as trilhas sonoras digitais indistintamente: a de que os codecs usados preveem a retro compatibilidade completa com as instalações onde eles são reproduzidos. Isto funciona tanto para o cinema quanto para as instalações domésticas!
A retro compatibilidade é possível pela inclusão de metadados incluídos nos codecs, que ditam a maneira pela qual o equipamento pode fazer a diminuição correta do número de canais, processo este chamado de “downmixing”.
Assim, uma trilha digital é decodificada e depois disso a reprodução é adaptada ao número de canais existente no sistema. Na prática, isto significa codificar uma trilha sonora em 7.1 canais e poder reproduzir até mesmo em MONO!
A ilustração abaixo, fornecida pela Dolby, mostra os princípios de design pelos quais o Dolby Digital foi desenvolvido. Basicamente, o codec AC3, matriz do Dolby Digital, é formatado para 5.1 canais, tornando-se assim a base do restante dos outros formatos.
O decodificador do codec AC3 tem metadados incluídos para remixar o original para Dolby Stereo (com a ajuda do decodificador Dolby ProLogic, se a reprodução for dentro de casa), ou para uso em amplificadores estéreo sem qualquer tipo de decodificador.
Introduzido no Laserdisc em 1995, o codec AC3 foi previsto para ser reproduzido até em mono, se fosse necessário. Com o aparecimento do DVD, a introdução padrão do AC3 e a evolução dos decodificadores tornaram esta remixagem mais precisa e dinâmica, com o uso de chipsets na época mais avançados.
Com a introdução do Dolby Atmos, que traz consigo um novo método de mixar filmes, o Dolby Labs tomou o cuidado de colocar o codec em uma extensão do Dolby TrueHD e do Dolby Plus. Com isso, quem não tem decodificador para Dolby Atmos, esta extensão é automaticamente ignorada, e se o usuário tem menos do que 7.1 canais, é o próprio codec fonte cujos metadados adaptarão o som ao ambiente.
Se isso não bastasse, o Dolby Atmos prevê um processo de adaptabilidade ao número de canais Atmos (mínimo de 2) instalados em um sistema.
Portanto, se Christopher Nolan tivesse autorizado a Warner para colocar a trilha de Dunkirk em Dolby Atmos na edição em Blu-Ray, todo mundo sairia lucrando e a sua alegada teimosia premiada com a certeza de que ninguém, mas ninguém mesmo, teria prejuízo na apreciação do filme!
A evolução história do som multicanal que os “experts” não conhecem
Na década de 30 do século passado as primeiras experiências mais concretas com o som estereofônico começaram a tomar impulso. O princípio em si já era conhecido, mas pouco voltado para o lado prático.
No cinema, foram significativas as iniciativas dos técnicos do estúdio de Walt Disney, com apoio da RCA e dos laboratórios da Bell Telephone. Um resumo deste esforço foi depois visto no filme Fantasia, lançado em meados de 1940, com o nome de Fantasound.
Na realidade, Walt Disney queria experimentar a possibilidade de movimentar o som através da tela e no surround. Disney havia planejado um segmento para Fantasia com a música de “O Voo Da Abelha”, composta por Rimsky-Korsakov, com o som da abelha dando a volta na plateia do cinema.
Os técnicos do estúdio Jack Hawkins e Bill Garity, que trabalhavam para Disney no projeto do filme Fantasia, criaram em 1939 o Panoramic Potentiometer, apelidado como “Pan Pot”, que é um potenciômetro que vira para a esquerda ou para a direita, trocando o som de posição, de um lado para o outro. Se a gravação for estereofônica, o som se desloca do canal esquerdo para o direito e vice versa. Na posição 0 ele fica no lugar onde está.
O Pan Pot é usado até hoje nos estúdios de mixagem. Para o cinema ou para a música com som multicanal pode ser substituído por um joystick, distribuindo assim o som pelos dois canais frontais e pelos dois canais surround, por exemplo.
A propósito, Fantasia como filme não causou o impacto desejado. Com 8 canais em uso, foram poucos os cinemas que se propuseram a investir na mudança de equipamento, e assim para a frustração do próprio Walt Disney o filme não alcançou a revolução anteriormente pretendida. O som multicanal no cinema, no entanto, tomou grande impacto na projeção em tela ultra larga e curva do processo de filmagem que levou o nome de Cinerama, lançado em 1952, 12 anos depois de Fantasia.
Quando em um momento áspero daquela discussão estéril um dos “experts” me perguntou qual era o “próximo da fila” que deveria receber tratamento Atmos, ele citou exatamente “E O Vento Levou”, lançado em 1939, e aí o cidadão quebrou a cara!
“E O Vento Levou”, por coincidência, foi relançado nos cinemas, inclusive no Brasil, em cópia ampliada para 70 mm, com trilha sonora magnética de 6 canais! No Rio de Janeiro, a apresentação foi feita no extinto Cinema Vitória.
Quando o Blu-Ray foi lançado, a Warner transcreveu esta trilha em Dolby TrueHD com 5.1 canais. O que tornou tal “façanha” possível foi uma pesquisa de arquivos da M-G-M, que revelou a gravação separada de elementos do filme. As especificações do filme na versão em 70 mm, publicadas no IMDb, já mostravam o reconhecimento da existência das gravações originais, remixadas na época em mono para lançamento mundial nos cinemas.
As práticas de overdubbing (som sobre som) já eram comuns quando o cinema passou a incluir uma trilha sonora. O fato é mencionado na paródia “Cantando Na Chuva”, da M-G-M, e explicando na forma de comédia porque atores com voz inadequada para o cinema falado eram dublados para não dar vexame nas telas. E a dublagem de atores e atrizes sem cordas vocais ou talento para a música continuaram sem pudor pela década de 1960 afora.
E no caso específico de modificações das trilhas sonoras de filmes antigos em disco, odiadas pelos puristas, a ausência de percepção de que trilhas sonoras digitais são adaptáveis tanto ao cinema quanto ao equipamento do usuário de casa, torna ainda este argumento dos que são contra ainda mais ridículo!
Na década de 1970, as cópias com som estereofônico gravado em bandas magnéticas pararam de ser distribuídas para os cinemas por vários motivos. A partir daí filmes em Panavision eram reproduzidos somente com o uso da banda ótica em mono. Isto mudou somente quando os laboratórios Dolby conseguiram modificar a banda ótica da película, e com a subsequente modificação da matriz quadrafônica e a introdução do redutor de ruído do tipo Dolby A, que depois levou o nome de Dolby Stereo.
É a mesma arquitetura de caixas acústicas do CinemaScope, para três canais na tela e um canal surround, só que desta vez com som ótico na película.
O trabalho de restauradores
Quando alguém hoje compra um filme desta época, que fora lançado nos cinemas em mono, descobre que os estúdios tinham ou poderiam recompor as respectivas trilhas multicanais. O disco resultante é produzido em até 7.1 canais, muitas vezes com a remixagem abençoada pelos seus realizadores.
Anotações sobre a mixagem do som foram descobertas pelos pesquisadores de arquivo Robert A. Harris e James C. Katz quando da restauração do clássico VistaVision “Um Corpo Que Cai”, deixadas por Alfred Hitchcock. A partir dali eles migraram o original em película para negativo 65 mm e remixaram o som em DTS 5.1 para distribuição aos cinemas. Este trabalho pode ser apreciado na íntegra nas versões em DVD e Blu-Ray.
Notem que se trata agora de trabalho de restauradores, preocupados com a preservação de obras de cinema. O argumento tolo de jamais mudar a trilha sonora original caiu por terra, porque a melhoria na observação do filme foi feita em cima de anotações do diretor, de como o som deveria ser ouvido. Melhor ainda: a inclusão de uma trilha 5.1 aumenta significativamente a capacidade de observação da imagem pelo espectador a que se destina!
Eu sou um que defende o ponto de vista de que não é admissível achar que alterando a trilha sonora se possa adulterar um filme, como defendem os puristas. Os estúdios generosamente, e em uma atitude a meu ver magnânima, às vezes decidem incluir a trilha sonora original em mono em alguns discos. Não precisava: bastaria ter esclarecido ao usuário de que trilhas de maior número de canais podem ser reproduzidas em mono com total segurança.
Historicamente, e independente do que as pessoas acham a respeito, o cinema avançou implacavelmente em direção ao progresso.
Foi assim que George Lucas ignorou fãs radicais de Star Wars, e inseriu personagens digitais e alterou cenas dos três primeiros filmes Star Wars. A raiva e o ódio contra o cineasta foram postadas nos fóruns, mas o cineasta não cedeu. No final das contas, a gente se pergunta: “tanta briga em torno de um filme, mas, então, mudou o quê?” Os filmes Star Wars continuam os mesmos, nada do contexto dos roteiros foi modificada. Lucas achou melhor fazer um upgrade, é direito dele como autor, mesmo que a gente não goste.
Na era “home video” antigas matrizes de áudio foram resgatadas, e na transcrição de película para vídeo substituíram com vantagens as desgastadas trilhas óticas, cheias de ruído, ausência de fidelidade e com dinâmica limitada. Quem ganhou com isso foi o fã de cinema, que tem dentro de casa o que as salas de exibição deixaram de mostrar por anos a fio!
Pesquisas de arquivo pelos preservacionistas vêm descobrindo seguidamente verdadeiros tesouros em termos de matrizes de áudio. Muito do que foi pretendido ser apresentado no cinema como “Perspecta” (trilha ótica mono redirecionada) teve que ser gravado em som multicanal. E foi isso que permitiu a restauração e remixagem de trilhas antigas para o formato de 5.1 canais.
O uso de software moderno, tanto para áudio quanto para vídeo, realizou o aperfeiçoamento do material fonte, ao mesmo tempo preservando o conteúdo, e portanto impedindo a sua adulteração como obra de alguém no passado distante.
Tal tipo de preservação não tem preço! Mas, é preciso que o usuário a quem se destina este trabalho tenha noção da história, para que este esforço possa então ser corretamente apreciado.
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.