Quando terminei de ver Tron, alguém na fileira de trás disse: é Star Wars! Nem tanto amigo, nem tanto. Mas, ainda assim, é um bom filme. O roteiro tem uma série de temas interessantes, mas mal toca a superfície dos mitos que conta.
Alguns exemplos são o duelo entre o criador e seu duplo, o aguardado filho do criador que vem para salvar um povo, o filho que se volta contra o pai, a busca pelo objeto sagrado (o santo graal), a virgem, etc. É uma mistura de muitas imagens importantes, mas com uma estrutura muito solta entre elas.
Tron poderia ter seguido a tradição de Matrix e Inception (A Origem), questionando de maneira profunda a própria realidade e a existência a partir da ideia de um mundo digital paralelo e do simulacro, e até tenta fazê-lo, mas se mantém de maneira segura em um roteiro infantil e fácil.
É interessante como o personagem de Jeff Bridges – que é o único bom ator no filme, embora eu goste da Olivia Wilde – parece ser movido por sua espiritualidade, mas esta relação também fica mal resolvida no filme.
Perdoem-me novamente pela comparação, mas enquanto Star Wars e Matrix por exemplo fundam toda uma religião, com uma teologia muito bem resolvida, Tron apenas cita de maneira desnecessária alguns preceitos de religiões orientais. Se estes mesmos temas (comuns em todas as grandes religiões) aparecessem como derivados do próprio mundo digital de Tron, seria muito mais instigante.
Se, como já era de se esperar em um filme da Disney, o roteiro desaponta pela infantilidade, o filme vale a pena por um motivo: é a primeira vez, na minha opinião, que um filme faz um uso da tecnologia 3D como uma estética, não como apetrecho.
Embora Inception, Avatar, entre outros, tenham feito usos muito interessantes desta tecnologia, esta é a primeira vez em que parece haver um bom motivo estético: tudo que acontece no mundo normal fica em 2D, mas o mundo digital em 3D. Isso cria um contraste que aumenta ainda mais o deslumbramento com as lindas imagens de ação tão características dos bons trabalhos da Disney.
Entre os temas desenvolvidos no filme, o que mais me agradou foi da relação entre o usuário e o programa. É interessante poder se colocar no lugar de um programa questionando sua liberdade em relação ao usuário. Afinal, um programa deve obedecer ao usuário sempre, pois foi criado para ele, para agradá-lo e não tem um fim em si mesmo. Será?
Há duas maneiras de pensar numa obra: de maneira dialógica, pensando na obra em sua relação com as pessoas que vão usufruir dela; ou como um objeto por si mesmo, que tem o direito de existir, como um objeto na realidade mas não da realidade. É isso que acontece quando artistas simplesmente tiram um objeto pronto e comum do seu uso quotidiano, em vez de criá-lo do zero: ele é transformado instantaneamente em obra de arte.
Em Matrix, Merovingian diz a Neo: “Veja só, aquela mulher. Meu Deus, olhe só pra ela. Afetando todos em sua volta, tão óbvia, tão burguesa, tão chata… Mas espere. Veja, eu enviei uma sobremesa. Uma sobremesa muito especial. Eu mesmo a escrevi. Ela começa tão simples, cada linha do programa criando um novo destino. Tal qual – poesia”.
Sim, software é poesia. E eu fico imaginando quando é que vamos começar a presenciar esta libertação dos programas – não por si mesmos, mas pela libertação do próprio programador-designer da tirania do usuário, “tão óbvio, tão burguês, tão chato”, descobrindo que as mesmas ferramentas e habilidades que o carpinteiro domina para construir uma mesa para seu cliente servem também para esculpir uma obra prima para a humanidade. [Webinsider]
…………………………
Conheça os serviços de conteúdo da Rock Content..
Acompanhe o Webinsider no Twitter.
Gilberto Alves Jr.
Gilberto Jr (gilbertojr@gmail.com) tem experiência no mercado digital como designer de produtos, fundador de duas startups, gerente de projetos em agências digitais e gerente de produto no Scup. Agora procura um novo desafio. Veja mais no Linkedin.
2 respostas
Sei não. Parece que o autor desse texto não sabe que esse Tron é um remake.
Fica comparando com filmes como Matrix e Inception que beberam na fonte do Tron original de 1982.
Enfim, não concordo também com uma suposta “tirania do usuário”. O Tron original já ligava essa questão à religião, sendo o usuário o Deus do programa, e Tron seu defensor.
Mas, mesmo assim, concordo com o autor do texto quando fala que o filme não é tão bom assim. Realmente encanta mais pela estética e efeitos especiais fantásticos do que pelo enredo em si. Digo isso do remake, e não do original.
Nem é preciso citar uma passagem infame de Matrix para apresentar ao povo a ideia de que o software possa ser uma expressão artística, servindo primeiramente a si mesma. Quem viveu a explosão dos “inutilitários” experimentais no Mac e no PC nos anos 80 e 90 bem sabe. Precedendo essas plataformas, muitos grandes programadores sempre se referiram ao seu trabalho como artístico e dotado de valor estético no próprio nível do código. Esses caras se denominavam hackers antes que a palavra fosse desvirtuada.
Da maneira análoga a como este segundo Tron usa o 3D como um fundamento da apresentação visual, o primeiro Tron foi o primeiro a usar CG como fundamento: um mundo virtual completamente criado em computadores e usado em mais de 1/3 dos takes do filme. Na época, isso era de um pioneirismo extraordinário. Infelizmente, gente desta geração que já nasceu cercada de CG não procura entender o que estava envolvido em fazer uma produção desse tipo em 1982, e mete a boca falando em efeitos toscos. É uma crítica de uma superficialidade até que irresponsável. Tudo é mais apreciado quando se conhece o contexto.