Severino Filho, ícone da cultura musical carioca

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Severino Araújo

Com o falecimento de Severino Filho, maestro, arranjador, pianista e vocalista, fundador junto com Ismael Neto, de um grupo vocal de vanguarda, e que eventualmente veio a ser chamado de “Os Cariocas”, desaparece um dos ícones da música e do movimento da bossa nova, criado a partir do final dos anos de 1950.

Vinícius de Moraes, ao escrever a contracapa do disco “Rio”, gravado no início dos anos 60 no estúdio da CBS pelo saxofonista Paul Winter com músicos locais, afirmou, com muita propriedade, que não se pode afirmar com segurança quem foi o criador da bossa nova.

Mas, que certamente ela teve muitos pais, isto a mim não me resta dúvida. E olhando tudo isso em retrospectiva é possível se admitir que quando se fala em “Bossa Nova” não se está falando apenas de um gênero musical, mas de uma plêiade de compositores, letristas, arranjadores e músicos que fizeram o possível para tirar o samba do marasmo em que se encontrava naquela época, e o fizeram com competência e com sistemática variação rítmica, cercada de lirismo e de contemplação sobre a natureza do Rio de Janeiro, com suas paisagens estonteantes, em uma época sem violência e plena de um otimismo avassalador!

E é claro que, dentre os possíveis “pais” da bossa nova está justamente inserido o maestro Severino Filho, que, com Os Cariocas, cantou a 4 vozes toda a magia das letras que nos fizeram acreditar um dia que estávamos vivendo um sonho de estar em um lugar melhor.

Era um Rio de Janeiro sem tanto canteiro de obras, sem ganância por turistas, e principalmente sem violência urbana. Parece hoje inacreditável que eu tenha vivido isso na minha infância e adolescência. Que minha mãe tomava o bonde em direção à Muda, e depois baldeava para outro bonde, em direção ao Alto da Boa Vista, saltando comigo primeiro na praça que fica no fim da estrada e que dá acesso ao Parque Nacional da Tijuca, para visitar o “lobo mau” da estória do Chapeuzinho Vermelho, segundo ela me dizia, o qual, diga-se de passagem, eu tentei achar mas nunca de fato consegui ver. O que eu via era a beleza da Cascatinha Taunay, motivo para voltar lá várias vezes.

E continua sendo constrangedor ler ainda hoje, em uma das poucas e apócrifas biografias dos Cariocas, o autor começar dizendo “Na esquina da Avenida Paulo de Frontin com Haddock Lobo, subúrbio da Tijuca…”, etc. Subúrbio? Desde quando? Se isto não é um total menosprezo ao bairro onde eu vivi a maior parte da minha vida, eu não sei mais o que é!

Primeiro, que a Tijuca, além de ser um bairro para lá de central na cidade, abrigou um monte do que se pode classificar hoje de heranças culturais. Segundo me relatou José Domingos Raffaelli, e isto eu até já contei na coluna, a bossa nova teve várias das suas raízes nos frequentadores do Clube Sinatra-Farney, localizado na Rua Moura Brito, na Tijuca. Foi, aliás, na Tijuca, onde Tom Jobim nasceu.

Mas nada disso me preocupa, porque quando menino eu ia para o colégio ouvindo os pianos tocando nas casas das ruas todas arborizadas, e me dava conta do lado musical que o bairro tinha, e que se refletia nos colégios e clubes locais. E esta é uma lembrança que eu guardo na minha envelhecida memória, portanto sabedor da importância da Tijuca no contexto cultural de um Rio de Janeiro que cresceu como capital deste país. Se alguém quiser me provar errado, acreditem, vai perder tempo.

E quando qualquer relato mencionando sobre a reunião de músicos que foram importantes dentro deste contexto, que se reuniam nas ruas do bairro, é impossível não entender por quê.

Severino Filho e seu irmão Ismael Neto se reuniam por lá, e segundo muitas pessoas ligadas ao grupo, tiveram inicialmente uma enorme influência dos grupos vocais norte-americanos. Um amigo meu, o Fernando Blanco, que frequentou vários anos o ambiente de ensaio dos Cariocas, e que testemunhou as sessões de ensaio que precederam o antológico A Grande Bossa dos Cariocas, jurou um dia para mim que a principal influência vocal veio do grupo vocal The Hi-Lo’s, que mudou muita coisa neste gênero de música, e que também, por coincidência, se deixou influenciar pelos primeiros sons da bossa nova, em anos subsequentes.

Ausência e reaparecimento

Quando eu soube que Os Cariocas iriam dar um concerto no Centro Cultural do Banco do Brasil, localizado no centro do Rio de Janeiro, em 1989, eu não hesitei em correr lá e só Deus é que sabe como eu e minha mulher conseguimos um lugar para sentar.

O grupo acabara de se reunir novamente, tendo deixado um enorme hiato na música popular nos anos que antecederam este reencontro. Eles haviam gravado um CD para a gravadora Som Livre, ao qual na época eu não tive acesso por estar com a viagem para o exterior e a minha bolsa de doutorado me compelindo a sair do país. Anos mais tarde, o meu amigo engenheiro Nolan Leve, me contou que várias matrizes estavam sendo resgatadas no estúdio e esta gravação foi uma delas. Foi assim que “Minha Namorada” veio parar em minhas mãos e eu guardo o CD com muito carinho.

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Luis Roberto, vocalista solista do conjunto, e que é visto na foto da capa à esquerda e já de cabelos brancos, faleceu logo depois. Esta parece ser a última vez que os componentes da década de 1960 e que fizeram tantos discos monumentais, se reuniram: Severino, ao piano, Badeco ao violão, Quartera na bateria e Luis Roberto no contrabaixo.

Discografia ausente

É também deplorável que uma parte historicamente importante dos discos gravados pelos Cariocas na Philips durante a década de 1960 esteja desaparecida das prateleiras e estoques das gravadoras.

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“A Grande Bossa dos Cariocas” foi editado no Japão, mas saiu de catálogo. O título mostra um destaque na capa das letras G e B, acrônimo de Guanabara, estado formado após a saída da capital para Brasília. No fundo da foto da capa, aparece a boia salva vida com o nome do barco Atrevida, que consta da letra de Billy Blanco para “Domingo Azul”, terceira faixa no antigo lado B do Lp:

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Na Inglaterra apareceu um tal CD “Art and Voices”, mas nada tem a haver com o referido álbum. De “Passaporte” nem sombra (a capa de cima parece ser de algum Lp lá de fora, haja vista a omissão do S no título). Na época, por motivos comerciais, os discos eram lançados em mono. Uma compilação que data do início do lançamento do CD no Brasil mostrou que várias daquelas faixas haviam sido gravadas por Sylvio Rabello e Célio Martins em estéreo. Esta compilação, diga-se de passagem, tem um som péssimo e parte da “cozinha” do grupo está notoriamente adulterada. O que nos mostra que nenhum respeito foi dado ao conjunto da discografia do grupo. Se em algum dia vai haver resgate, quando será isso? Se alguém souber, por favor não hesite em me contar!

E quanto a Severino e ao grupo, há uma promessa de sua filha Lucia Veríssimo de apresentar um documentário biográfico até o fim deste ano. Tomara que dê certo, e encontre espaço adequado de exibição.

Nota: último lançamento, o CD “Estamos Aí”, lançamento Biscoito Fino.

 

[Webinsider]

…………..

Leia também:

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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8 respostas

  1. Eu sou um desses felizardos que comprou as três primeiras reedições em CD feitas no japão de Os Cariocas. Fiquei sabendo que há uma gravadora chamada Ômega e que colocou no mercado em CD os Lps Arte/Vozes e Passaporte, tive a oportunidade de ouvir algumas faixas que consegui, que são de excelente qualidade. O revendedor que me vendeu o CD Lyrio Panicali – Nova Dimensão, ficou de disponibilizar essas maravilhas, inclusive o CD O Assunto é Edgard (1964). Alguma novidade volto aqui e informo.

  2. Como já disse um dos componentes votante do Nobel: “O Brasil só não tem Nobel porque mata os seus heróis”. Assim, também assassinamos a arte e a cultura, elementos essenciais para o crescimento do País.

  3. Lilian, lamento por não ter podido te ajudar. Considere a possibilidade da letra desta música nunca ter sido feita.

  4. Olá Paulo boa tarde em primeiro lugar obrigada por me responder. De fato pelas pesquisas que fiz realmente não consigo encontrar letra da música Tema para Lucia. A história desse grupo musical é realmente encantadora.

  5. Oi, Lilian,

    Obrigado pelo elogio.

    Infelizmente não tenho. A gravação de Tema Para Lúcia no álbum Minha Namorada não tem letra, o grupo canta em “scat singing” (trocando a letra por sílabas, como no jazz). Nos sites da Internet eu não achei nada. Para te ser sincero eu nem sabia que Severino tinha escrito letra para esta música.

    Talvez se você conseguir entrar em contato com a filha dele ou algum representante ela possa te dar mais informações a este respeito.

  6. Excelente artigo. Elevou com excelência a imagem dos Cariocas. Gostaria de saber se você possui a letra da música Tema para Lucia que Severino fez para a filha. Há anos procuro por essa preciosidade.Obrigada.

  7. Nolan, obrigado mais uma vez.

    Agora um desabafo, se você me permite:

    Com o desaparecimento das lojas de disco especializadas, o recurso é a Internet e as lojas on-line.

    Mas, nem sempre elas têm o que você quer, principalmente quando a distribuição é heterogênea ou irregular.

    Tendo dito isso, eu suei para conseguir comprar uma cópia do último CD “Estamos Aí”, mostrado no texto. A qual estou recebendo a qualquer momento. Quando eu soube do lançamento, algum tempo atrás, por um amigo, não houve meio de achar quem vendesse!

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