Umberto Eco

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Um dos segredos de um bom livro que contém referências é explicá–las ao leitor sem parecer que as está explicando. Uma espécie de didatismo invisível, por assim dizer.

Umberto Eco não é novo nessas paragens. Não bastasse ser o semioticista vivo mais famoso do mundo, desde a década de 1980 mostrou que sua imensa cultura não se presta apenas aos livros acadêmicos, como Obra Aberta e Apocalípticos e Integrados, que, por sua vez, sempre foram em sua grande maioria fáceis de ler, tanto para estudiosos da semiótica quanto para o leigo que queria conhecer a ciência que estuda os signos.

O Nome da Rosa foi best–seller no mundo inteiro, inclusive no Brasil, apesar de sua trama intrincada, onde abundavam as citações em latim (sem tradução, é preciso que se diga) e referências a clássicos da Antigüidade.

Depois de O Nome da Rosa, vieram muitos outros: O Pêndulo de Foucault (o primo rico de livros como O Código da Vinci, que devia – perdoem–me os que gostam de Dan Brown – ser posto de lado: quem lê os livros de Brown e gosta ainda não conhece Umberto Eco), A Ilha do Dia Anterior e Baudolino.

Agora, passados cinco anos depois de Baudolino, Eco publica um romance de título estranho e comprido, mas cujas páginas trazem um charme todo especial: em A Misteriosa Chama da Rainha Loana, Eco retoma como nunca o amor pela referência.

A Misteriosa Chama… conta a história de Bodoni, um negociante de livros raros que perde a memória num acidente. O fervor referencial de Eco já começa com o nome do sujeito: Giambattista Bodoni é homônimo de um tipógrafo do século dezoito, criador da família de tipos que leva o seu nome e que ainda hoje é usada na composição de livros.

O que dá sabor a essa situação já vista tantas vezes na literatura e no cinema é que Bodoni sofre de um tipo peculiar de amnésia, que apaga de sua lembrança todos os fatos aos quais ele era ligado emocionalmente, mas não os dados históricos ou culturais que ele acumulou em cerca de sessenta anos de vida. Está tudo lá. Como se Bodoni fosse um computador humano. E é daí que sai essa verdadeira catadupa de referências.

Mas que o leitor não se preocupe, porque o livro não é chato nem opaco: as referências são explicadas das formas mais simples possíveis: ou pela ironia ou pelo didatismo simples, sem rodeios.

O que Eco faz é simplesmente um resgate da própria infância: colocando convenientemente Bodoni como um homem de sua própria geração (ele nasceu em 1932), percorre os caminhos de uma infância vivida durante o fascismo italiano e a Segunda Guerra Mundial, mas vista não pelo viés do cinema neo–realista, com choro, ranger de dentes e as lamúrias (mais do que razoáveis) de quem perdeu tudo – mas com o sense of wonder de um menino que nessa época descobria as revistas em quadrinhos e os primeiros livros de aventura.

Mickey, Gato Félix, Flash Gordon (em suas versões italianas, devidamente adulteradas pela censura de Mussolini para combater os americanos também na cultura pop), Mandrake, O Conde de Monte Cristo, Sandokan, os filmes de Bob Hope, e a personagem–título do livro, saída de uma série de aventuras de quadrinhos. Um desfile de personagens que persegue Bodoni até mesmo em estado de coma, iluminando seu futuro com fragmentos de um passado que dói mas é belo.

A Misteriosa Chama da Rainha Loana é, como os demais livros de ficção de Eco, uma espécie de ajuste de contas, não apenas com o passado, mas com a erudição genial do semioticista, que em suas obras vai sempre encontrando válvulas de escape para desaguar a produção intelectual de uma carreira de quarenta anos, sem ser chato e ainda divertindo os leitores. Não se pode desejar coisa melhor. [Webinsider]


Fábio Fernandes é jornalista, tradutor e escritor. Na PUC-SP, é responsável pelo grupo de pesquisa Observatório do Futuro, que estuda narrativas de ficção científica e a forma como elas interpretam e são interpretadas pelo campo do real.

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Uma resposta

  1. Fábio, sou pesquisadora na área de lingüística aplicada, mais precisamente intersemiótica, os materiais publicados de Umberto Eco têm sido uma poderosa ajuda na formulação da minha dissertação, estão virando livros de cabeceira mesmo, gostaria de agradecer ao próprio pela ajuda que tem-me dado, voc~e conhece algum site, endereço postal ou eletrônico através do qual eu possa enviar meus agradecimentos?
    Parabéns pelo teu artigo e pela escolha de comentar sobre Umberto Eco.
    Abraços
    Rose

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