O Jogo Da Imitação e a vida de Alan Turing

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Eu estava, por uma feliz coincidência, morando na Grã-Bretanha, durante os primeiros anos da década de 1990, quando o Museu da Ciência, situado em Londres, estava realizando um projeto de reconstrução e exposição do computador criado pelo matemático inglês Alan Mathison Turing, cuja vida permaneceu obscura, por motivos de segurança, durante um longo período de tempo.

Alan Turing foi alvo também de um documentário da série Horizon, com o título “The strange life and death of Dr. Turing” (que pode ser achado e visto pela internet), e de parte de um capítulo do seriado “The Dream Machine”, ambos os programas por uma iniciativa da BBC. O ator Derek Jacobi havia personificado Turing em uma peça de teatro com o título “Breaking the code”, e que posteriormente foi transposta para um filme, exibido pela própria BBC, e igualmente encontrável no YouTube, para quem se interessar.

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Dias atrás eu saí do cinema depois de ter assistido “O Jogo Da Imitação” (“The Imitation Game”), e comecei a me lembrar da história toda.

Os britânicos, ou mais especificamente, a comunidade acadêmica local, têm revelado três importantes referências criativas, quando o assunto é computadores ou computação:

1. Charles Babbage: uma referência feita por motivos óbvios, Babbage foi um matemático da época Vitoriana que sonhou um dia terminar com os cálculos feitos à mão e por seres humanos, substituindo-os por uma máquina a vapor. Seus sonhos levaram-no a projetar um computador ou calculadora, que teria sido de “uso geral”, mas ela nunca foi construída, por causa do custo e do descrédito lançado por cientistas da época.

Um de seus projetos foi reconstruído também por um projeto do Museu da Ciência acima citado, na mesma época (circa 1991). Babbage foi vítima do preconceito científico de vários de seus colegas, que o trataram com inacreditável intolerância. Na ala dedicada a Babbage no Museu da Ciência eu vi estampada a frase de um deles, que combateu suas ideias, dizendo que “esta máquina do Babbage não tem futuro”, ou algo parecido. A frase estava assinada pela menção do autor, que eu não lembro quem era, mas provavelmente se tratava do astrônomo real George Biddell Airy, um dos seus maiores opositores.

2. Konrad Zuse: engenheiro e projetista, Zuse foi um dos mais importantes pioneiros dos computadores modernos. Trabalhando sozinho, ele descobriu que era possível usar o método de cálculos pelo sistema binário, que só admite 0 e 1 no processo de computação. Este sistema forma a base das operações lógicas e aritméticas booleanas, usadas em programação.

Zuse ambicionou e construiu um computador com o uso de relês, para setar o estado de ligado e desligado (1 e 0), e depois pensou em fazer o mesmo com o uso de válvulas, que fazem a mesma coisa (ligar e desligar), mas em uma velocidade milhares de vezes maior. Para programar e salvar o conteúdo de instruções, Zuse usou filmes 35 mm de cinema descartados, através de perfuração de códigos. A eclosão da segunda guerra na Alemanha o impediu de ir adiante.

3. Alan Turing: hoje considerado um gênio, Turing também não viveu o suficiente para ver o que a sua visão científica um dia vislumbrou. Foi o pai, digamos assim, dos conceitos que levaram à criação da informática moderna: a ciência da computação propriamente dita e a inteligência artificial.

 Vida e morte de um gênio

Alan Turing sofreu durante a vida toda: logo cedo se deu conta de que se identificava com um colega de colégio chamado Christopher Morcom, com o qual possivelmente teria desenvolvido depois uma relação que passava da típica homossexualidade da adolescência proposta por Freud, e que se estabelece depois como prevalente na fase adulta. A morte precoce de Christopher abalou Turing, mas não existe nenhuma prova concreta de que eles tenham tido qualquer tipo de relação mais íntima ou de natureza sexual.

Colegas de trabalho, tanto os da comunidade universitária quanto aqueles de outros lugares consideravam Turing um homem tímido, reservado e em alguns momentos um tanto ou quanto excêntrico. Somente anos mais tarde foi que Turing fez confissões a colegas mais próximos sobre a sua homossexualidade. Na época em que conheceu e depois ficou noivo de Joan Clarke, ela própria diz em depoimento gravado pela BBC que Turing decidiu conta-la sobre isso, propondo que a intenção de casamento não fosse adiante.

 

Alan Turing e Joan Clarke, em fases distintas de suas vidas.
Alan Turing e Joan Clarke, em fases distintas de suas vidas.

 

Havia um temor constante na revelação de preferências sexuais na Inglaterra desta época, porque o homossexualismo era considerado “indecência pública” e punido com prisão.

Segundo colegas, Turing era um homem desprovido de malícia, e provavelmente por isso, uma vez vítima de roubo em 1952, resolve confessar à polícia sobre a sua relação homossexual com o suposto ladrão. A polícia já suspeitava de Turing, e mudou a investigação para prejudicar Turing. Condenado, foi dada a ele a opção de se tratar, para evitar a prisão. Segundo historiadores, o tratamento foi uma criminosa administração de estrogênio, prescrita a longo prazo, com os seus efeitos previsíveis.

Depois disso, a vida de Alan Turing foi literalmente para o buraco, e um belo dia encontrado morto, vítima de um suposto envenenamento por cianeto, encontrado em uma maçã, ao lado do corpo. A declaração de suicídio foi a versão oficial apresentada pela polícia naquela época, mas estranhamente o corpo foi logo cremado, tornando impossível qualquer investigação posterior. Sua mãe foi uma que levantou suspeita sobre o alegado “suicídio” do cientista. E não era para menos, pois Turing representava uma ameaça à divulgação de segredos de estado, por ser um homossexual “sem controle”. Por este motivo, não seria possível descartar um homicídio.

 A contribuição à ciência e o reconhecimento da mesma, anos depois

Em 2013, o governo inglês reconheceu publicamente os erros na forma como Alan Turing fora tratado pela polícia em 1952, e pediu desculpas à família.

Antes mesmo de sua passagem por Bletchley Park, Alan Turing já havia publicado trabalhos científicos importantes. Em 1936, ele fala sobre uma “Máquina de Turing”, na verdade uma máquina de computação universal.

Fascinado por quebra-cabeças, Turing contribuiu para o esforço de guerra, com a criação de uma máquina capaz de decodificar mensagens criptografadas pela máquina Enigma, usadas pelos alemães.

Uma das principais contribuições de Turing, sem dúvida alguma, foi a proposta de realização de testes para a verificação da possibilidade de se saber se uma máquina é capaz de pensar. No pós-guerra, ele concretizou a elaboração de propostas ainda mais sofisticadas, assentando assim as bases do que se convencionou chamar depois de “inteligência artificial”. O teste de Turing é também rotulado por ele como “O Jogo da Imitação”, que deu título ao filme.

O maior projeto de Alan Turing foi a criação do computador digital. Mesmo não tendo conseguido construí-lo, as suas ideias foram, entretanto, tornadas reais na Universidade de Manchester, com a criação do primeiro computador deste tipo em 1948. O apelido de “cérebro eletrônico” foi criado pela imprensa britânica da época, não sei se por ironia, uma citação não intencional sobre as ideias de Turing.

 Os filmes e as críticas

Nenhum dos filmes envolvendo Alan Turing como principal personagem conseguiu exibir ou explicar convincentemente como ele conseguiu decodificar as mensagens da máquina Enigma. Dois deles, a saber, Codebreaker, de 2011, e o já citado Breaking the Code, mostram roteiros muito mais preocupados com a vida pessoal de Turing, sua homossexualidade e morte. A fonte principal de informação em ambos os filmes vem do biógrafo Andrew Hodges, que escreveu o seu trabalho em livro a partir de entrevistas com pessoas que conheceram e conviveram com Turing, incluindo Joan Clarke.

Em O Jogo Da Imitação, talvez o melhor dos três, esta preocupação não é tão exagerada, mas, como os outros, especula sobre fatos e aspectos da vida de Turing, que podem muito bem não serem verdadeiros. No site Slate, a respeito de cinema, existe um questionamento sobre a acuidade dos fatos apresentados neste filme. E no jornal inglês The Guardian, o historiador Alex Von Tunzelmann considera a sugestão de que Turing poderia ter sido um espião vazando segredos uma calúnia sem qualquer base.

Na minha modesta opinião, O Jogo Da Imitação é, mesmo assim, o menos frio entre todos os relatos filmados sobre a vida de Turing. O filme inclui Joan Clarke, mas não detalhes sobre o suicídio, o que está correto, já que não existem provas concretas sobre o mesmo. E como cinema, infinitamente mais interessante para aqueles que não conhecem a vida do cientista.

 Um ponto de vista pessoal

O meu envolvimento com a microcomputação começou no final dos anos de 1970, e quase meia década mais tarde a intenção de fazer computações sofisticadas para uso no laboratório foi suplantada pelo fascínio provocado pelos processadores de texto. Quem passou pela máquina de escrever manual ou elétrica para desenvolver um trabalho escrito de forma organizada sabe muito bem o que eu estou dizendo.

Só para o leitor ter uma ideia, quando se datilografava as referências bibliográficas de um trabalho científico e estas precisavam estar em ordem alfabética, bastava um erro ou uma inclusão de última hora e dezenas de páginas precisavam ser datilografadas novamente. Colegas meus, que não queriam na sua frente este tipo de trabalho maçante, contratavam datilógrafas profissionais. Eu sou um que tive que me virar sozinho, catando milho na frente da máquina de escrever.

O aparecimento dos processadores de texto impulsionou significativamente a aceitação e aquisição de microcomputadores, mesmo por aqueles que não tinham interesse em se envolver com a tecnologia. Algo parecido com o que acontece hoje quando leigos ou não iniciados compram alguma máquina com o objetivo de apenas acessar a internet.

Naquela época, parecia um passe de mágica o usuário poder digitar um texto, corrigi-lo ou modifica-lo, atingindo a formatação que o manuscrito final exigia. Quando a interface gráfica começou a ser explorada, poder-se-ia “selecionar” o texto, e fazer com ele o que os comandos dos programas permitiam. Foi assim que aquela tortura de ordenar referências acabou: pouco importava a ordem da digitação, bastava digitar tudo, selecionar o texto e mandar ordena-lo, tudo em questão de fração de segundo.

E nós devemos tudo isso a Alan Turing e seus conceitos sobre a computação por uma máquina universal, multitarefas, e inteligente. Um computador não sabe o que é uma letra A ou B, mas se associarmos um código a cada letra do alfabeto, este código pode ser computado e manipulado por programação de diversas formas. A qualidade de um programa só tem limites na capacidade criativa da pessoa que o escreve.

Hoje em dia, tudo isso passa transparente para a quase totalidade da população. As pessoas não tem a vaga ideia do que significa a inteligência artificial e, no entanto, lidam com ela todo dia!

Nós antigamente para sintonizarmos um canal de televisão precisávamos rodar um tambor até achar a frequência correta. Bastou que os algoritmos inteligentes dominassem o campo da eletrônica e os televisores passaram a achar os canais sozinhos. Tudo em equipamentos de áudio e de vídeo modernos usam programas atualizáveis para comandar processadores pré-programados, com o objetivo de executar diversos tipos de tarefas.

Alan Turing foi vítima de maus tratos, preconceitos e exclusão da própria sociedade à qual ele ajudou a sobreviver, e não chegou nem de perto à noção, mínima que fosse, da repercussão prática das suas ideias. É uma injustiça que filme nenhum irá apagar, e se os que foram feitos tem alguma utilidade é a de mostrar as consequências de se discriminar individualidades, só porque elas são diferentes das demais. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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2 respostas

  1. Olá, Rubens,

    Eu lamento te dizer, e até lhe peço desculpas pelo meu comentário, mas eu discordo profundamente do que você sugere ou afirma.

    Se fosse assim, todo homossexual seria, por natureza, pessoa inconfiável.

    Além disso, o caso que você citou não prova nada. O fato do indivíduo ter uma determinada preferência sexual não o exclui de ser diferente dos demais, como qualquer pessoa. Uma coisa não tem nada a haver com a outra, percebe?

    Inconfiabilidade tem a haver sim com falhas de caráter de um determinado indivíduo, quer ele seja homossexual ou não!

  2. O tratamento dado a Turing pode ser exagerado, ok. Mas, por outro lado, considerar que Turing representava uma ameaça à divulgação de segredos de estado, por ser um homossexual “sem controle”, nao parece ser um temor tão descabido assim, quando vemos, por exemplo, o caso de Bradley Manning, o soldado gay americano que surtou em sua gayisse e saiu entregando segredos de Estado ao Wikileaks… Se o g*verno o tivesse monitorado adequadamente, ele poderia ter sido neutralizado a tempo.

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