“Mank” bem que poderia ser melhor!

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“Mank”, filme de David Fincher, traz de volta a controvérsia sobre quem escreveu Cidadão Kane. Um despropósito que demonstra a intolerância de Hollywood com Orson Welles.

 

O nosso editor Vicente Tardin aceitou o meu pedido de reeditar “Cidadão Kane: Anatomia de uma Obra Prima”, publicado originalmente no Webinsider e revisado para o Outro Lado. O objetivo seria fazer uma prévia da obra de Orson Welles antes que eu conseguisse assistir “Mank”, de David Fincher, que começou no dia 04/12/2020 no Netflix. Se alguém estiver interessado no assunto, eu recomendo que assista Cidadão Kane antes de “Mank”.

Eu aprendi, ainda adolescente, que é preciso assistir um filme antes de criticá-lo negativamente. As primeiras críticas de quem já havia assistido Mank foram bastante duras, principalmente porque os cineastas jogaram na tela uma história interpretativa e fantasiosa, de algo que já sido avaliado décadas atrás, como por exemplo, nos trabalhos do historiador e crítico Robert Carringer, que já tinha escrito sobre este assunto.

Eu não li o livro de Carringer, mas assisti com atenção tudo o que ele disse no documentário da BBC “The Complete Citizen Kane”, anteriormente mencionado. Não resta nenhuma dúvida de que Orson Welles usou o roteiro escrito inicialmente por Herman Mankiewicz com o título “American”, e fez inúmeras modificações, substituindo inclusive o título por “Citizen Kane”.

Carringer pesquisou os arquivos da RKO e se defrontou com nada menos do que sete roteiros pós Mankiewicz, prova irrefutável das inúmeras modificações feitas por Orson Welles. E um dos exemplos mais consistentes disso foi a alteração da sequência onde Kane e sua mulher discutem à mesa, com uma mudança temporal singular. Foi Robert Wise quem disse que a sequência fora muito bem preparada antes da filmagem!

Portanto, historicamente não resta nenhuma dúvida da participação de Orson Welles na construção de Cidadão Kane, e na realidade, por contrato o nome de Mankiewicz nem precisaria estar nos créditos, mas Orson o colocou lá ao lado do seu. Ambos ganharam um Oscar por isso.

Insensível a tudo isso, a crítica de cinema Pauline Kael publicou um livro arrasando Orson Welles e afirmando que o roteiro de Cidadão Kane, escrito por Mankiewics teria sido roubado. Porém, mais recentemente, e se pode ver isso no documentário da BBC, ela tentou desmentir que o tenha feito daquela maneira, mas sem sucesso.

O assunto me parecia morto e enterrado, mas aparentemente não o fora por Jack Fincher, pai de David Fincher, cujo roteiro nunca chegou a ser filmado. Até agora, não consigo entender o objetivo de ressuscitar este tema. Já não bastam os anos que Orson Welles foi perseguido por críticos e pelo Studio System?

“Mank”:

Eis aí o trailer oficial deste filme:

 

Mas, antes de entrar no mérito do filme, gostaria de mencionar dois aspectos técnicos no mínimo curiosos:

O primeiro diz respeito ao uso de HDR em uma imagem em preto-e-branco. Confesso que não entendi o objetivo deste tratamento da imagem no processo de captura:

 

Como também não entendi porque a produção decidiu inserir as chamadas “cue marks”, que são marcas de sinalização impressas no fim de cada rolo de película, avisando ao operador quando trocar de projetor. Segundo as especificações, o filme foi rodado com câmera digital Red Ranger Helium, e a gravação digital com o codec correspondente, portanto sem nenhuma necessidade de uso das “cue marks”, a não ser que tenha sido feita alguma cópia para cinema.

Seja como for, a intenção notória da produção foi estabelecer as bases dos filmes que eram feitos durante as décadas de 30 e 40, muito embora ainda não existisse exibição em 2.20:1, enquadramento deste filme.

Muito coerentemente, o diretor inseriu linhas do roteiro antes de cada sequência, situando assim o filme em épocas diferentes.

Depois de mais de duas horas assistindo “Mank” percebe-se que não foi só Orson Welles que não foi poupado de críticas: Louis B. Mayer em particular é exibido como um déspota racista e politicamente ativo, de modo a evitar a influência das autoridades locais em seus negócios.

William Randolph Hearst, que perseguiu Orson Welles e tentou mandar queimar o negativo de Cidadão Kane através de seus prepostos, é tratado apenas como um admirador de Herman Mankiewicz, mais nada!

Ora, o grande trunfo de Orson Welles, e que acabou sendo sua desgraça, foi a total liberdade de realizar um filme sem as garras dos executivos do estúdio. Inicialmente, muitos deles acharam uma loucura o contrato feito por George Schaefer, o principal executivo, presidente da RKO naquela época. Além disso, o fato de Orson Welles chegar a Hollywood, em um grande estúdio, aos 25 anos de idade e sem experiência em cinema deixou os demais executivos entre o ceticismo e o despeito.

Inúmeras sabotagens foram feitas contra Orson Welles. A um dado momento, Orson foi autorizado a fazer testes de filmagem somente, mas ele havia se juntado a Gregg Toland e começado a fazer planos (sem trocadilho), que eram na verdade as filmagens de Kane para valer.

No filme de David Fincher a figura de Orson Welles passa discretamente. Nenhum dos obstáculos por ele enfrentados foram sequer mencionados. E isso, a meu ver, desacredita “Mank” até mesmo como “obra de ficção”.

O filme tenta proteger Mankiewicz, mas não consegue esconder os seus hábitos e falhas de caráter, inclusive os de alcoólatra crônico. Existe sim um mérito na vida real de Mankiewicz que foi objetar o poder dos ricos no controle da sociedade como um todo. Mas, paradoxalmente, Mank viveu no meio daqueles que detinham o poder de manipulação das massas, enquanto que Orson Welles enxergou na sociedade aquisitiva a forma ideal de denunciar este tipo de poder.

Acho que “Mank” deve ser visto, já que está aí para quem é assinante. Achei o filme interessante quando mostra aspectos de Hollywood da década de 1930. Infelizmente, para mim, ficou só por aí!  Outrolado_

. . . .

Cidadão Kane: Anatomia de uma obra prima

 

 

A propósito de Cidadão Kane

O último filme de Orson Welles

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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