Há 50 anos do Clube da Esquina

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O álbum duplo Clube da Esquina completou 50 anos este ano. Gravação  lendária, fez parte de uma época difícil na vida de muitas pessoas. Ela tem méritos inovadores, reconhecidos até hoje, mas principalmente por aqueles que viveram como estudantes naquele momento.

 

Parece incrível, mas a gente muitas vezes não se dá conta do passar do tempo, e este ano de 2022 eu vi passar 50 anos do lendário álbum “Clube da Esquina”, gravado em março de 1972, com Milton Nascimento e Lô Borges. E eu só me lembrei da data porque o assunto foi amplamente divulgado na mídia.

Em 1972, o nosso grupo da faculdade correu para o Teatro Fonte da Saudade, que ficava ali na Lagoa, para assistir Milton Nascimento e o seu grupo de fantásticos músicos. Nós chegamos atrasados e eu fui um que não me conformei com isso.

Acabei indo novamente ao teatro, cheguei cedo e sentei bem na frente. Chamei minha mãe, fanática por música, para ir comigo. Ela saiu de lá emocionada. Nós vimos o Milton com lágrimas nos olhos, quando interpretava “Pelo Amor de Deus”, constante depois no segundo elepê do álbum da Odeon. Recentemente, eu achei um recorte do Correio de Manhã com a programação de teatro de 1972, que destaco a seguir:

Um colega da turma me chamou um dia para ouvir o álbum duplo que havia saído. A última versão que eu tive, adquirida alguns anos atrás, foi a da edição em CD, masterizado pelo estúdio Abbey Road, da EMI inglesa. O resultado no CD é espetacular. O álbum duplo foi incluído em um único disco.

O clima hostil do ambiente naquele momento

A década de 1970 se caracterizou pelo recrudescimento dos regimes militares, que se alternavam no poder. O pior deles foi o de Garrastazu Médici, que aumentou a repressão significativamente no início da década. A Revolução de 1964 havia se constituído em um golpe de estado, derrubando João Goulart e a entourage da esquerda radical que o cercava.

No início, a tal Revolução teve um apoio maciço da sociedade e da Igreja Católica, que não queriam ver o país ser entregue aos comunistas. Mas, com o correr dos anos, aquilo que era para salvaguardar o país da bagunça, do caos e da insegurança que reinavam naqueles anos, e depois restaurar o regime democrático existente, se tornou um regime de exceção, governado pelos militares.

Uma vez configurada em ditadura, o clima voltou a ficar tenso no país. A Igreja, que havia apoiado o suposto restabelecimento da ordem democrática, passou a rejeitar todas as arbitrariedades do AI-5, e foi perseguida.

Durante toda a década de 1970, qualquer protesto contra a ditadura militar era reprimido com extrema violência, e assim o clima ficou muito tenso, as pessoas com medo de serem presas arbitrariamente. A esquerda mais radical partiu para a porrada, e os aparelhos policiais repressores para prisões, torturas e assassinatos.

Visados pela repressão, estudantes secundaristas, e principalmente universitários, se tornaram alvos de um aparato militar de inteligência e da polícia. Eu entrei para a faculdade em 1971, quando a repressão já tinha atingido o pico.

Dentro do campus da Praia Vermelha, que em anos anteriores foi invadido pela polícia, o clima era de insegurança. Haviam policiais infiltrados nas turmas, e por causa disso, todo mundo que se reunia fora da sala de aula desconfiava que estava sendo vigiado, ou seja, ninguém confiava em ninguém.

Na época, os diretórios acadêmicos haviam sido fechados e proibidos de voltarem a funcionar. Os cineclubes do campus (eu participei da montagem de um deles) eram vigiados de perto. Então, um dos recursos alternativos de agregações estudantis foram as montagens dos shows de música.

Quando se queria montar alguma coisa nesta direção sempre se achava alguém que conhecia alguém, e que sabia o acesso a algum artista. Por acaso, eu estava entre aqueles que se encontraram com a Gilda Horta, irmã do guitarrista Toninho Horta, que acompanhava o Milton.

No meu breve encontro com ela, fiquei sabendo que o Milton era mais conhecido pelos mais chegados como Bituca. E ele, Bituca, também foi mais um dos perseguidos pela repressão da ditadura.

O Clube da Esquina e a gravação na Odeon

O histórico desse lendário álbum duplo tem sido contado em diversos vídeos e matérias, de maneira que eu não precisaria entrar em muitos detalhes sobre a sua existência. No aniversário dos 50 anos do disco, pode-se então agora saber de vários aspectos sobre a produção daquela época.

Quando o disco foi lançado, a gente teve tempo de ouvir as músicas do show com mais calma. A Esquina do título se refere a um local de Belo Horizonte onde os músicos se reuniam, e a criação da obra completa tinha tudo para ser paroquial. E se não o foi, deve-se a uma série de fatores no processo de criação das músicas, que resultou em um álbum com caráter universalista, ou profundamente sul americano, se quiserem.

Muitos compositores desta época, e aqui não foi exceção, tinham uma preocupação de assimilar as várias tendências musicais e as usar para criar algo totalmente novo. Foi assim com a Bossa Nova, mais de uma década atrás, e se repetiu com o Som Imaginário e com a turma do Clube da Esquina.

O disco foi gravado no estúdio da Odeon, que ficava na Avenida Rio Branco 47, 4º andar. Hoje se sabe que, no início, a Odeon não queria bancar uma obra tão extensa, com receio de não conseguir vende-la.

Um dos temores da direção foi a presença de músicos e compositores, como, por exemplo, Lô Borges, ainda desconhecidos naquele momento. Mas, com o tempo, o temor do estúdio se dissipou e o receio de lançar um álbum duplo vencido.

Os aspectos geopolíticos do disco, intencionais ou não, tiveram imediato abrigo nos ouvidos da classe estudantil. Quanto a nós, ouvir aquilo tudo se repetiu exaustivamente, ainda impressionados com o show no Fonte da Saudade. Havia algo de novo naquelas composições, e era possível sentir a observação sobre o clima de repressão daquele momento, e o ímpeto do desejo no desabrochar de uma vida nova e livre.

Todo mundo é capaz de associar uma música a um determinado momento ou fato. A mim pessoalmente, uma das músicas do disco, chamada “Um girassol da cor do seu cabelo”, escrita e interpretada por Lô Borges, ficou na memória durante muitos anos, porque ela me lembrava de uma namorada do meu início de faculdade, um ano antes, que tinha um cabelo quase da cor de um girassol.

Este tumultuado namoro começou com a minha consorte, sabendo que eu dava sinais notórios de um adolescente de 21 anos apaixonado, tomando a iniciativa de começar e depois terminar a relação, me deixando arrasado! Aliás, como toda experiência de vida tem sempre um aprendizado, anos depois eu dei graças a Deus ter sido rejeitado!

Mas, até hoje, ao ouvir a música do disco eu acabo me lembrando daquela experiência de vida que me ensinou muita coisa a respeito das relações.

O disco Clube da Esquina foi gravado com muito empenho na parte criativa. Embora tenha havido improviso e independência no processo criativo, Eumir Deodato e Paulo Moura também contribuíram com arranjos e regência, dando credibilidade ao que estava sendo feito.

Detalhes da captura e da gravação

Em recente depoimento, de mais de 3 horas, o técnico Nivaldo Duarte conta como o disco foi feito. Abaixo se pode ver imagens dele na antiga mesa de som da Odeon (foto da esquerda, tendo ao fundo Sergio Mendes) e como ele aparece hoje nos seus depoimentos sobre os 50 anos do disco:

 

Nivaldo nos conta que a gravação do Clube da Esquina foi feita em deck de 2 canais, o que me deixou muito surpreso, porque naquela época (1972) vários estúdios já tinham se equipado com 4 ou 8 canais, pelo menos. A década de 1970 foi marcada pela presença de decks com 16 canais.

Aqui cabe um detalhe importante a este respeito: a gravação em dois canais sempre foi uma das preferidas dos selos de audiófilos, pelo fato singular de que a performance dos artistas tem que ser obrigatoriamente “ao vivo”, isto é, sem edição em tempo real, Ouvindo Lô Borges falar sobre isso, sabe-se que os músicos envolvidos com aquelas gravações faziam um enorme esforço para não errar, porque, caso contrário, tinha que se repetir do zero tudo de novo!

No relato de Nivaldo Duarte que eu ouvi ficou dito que a Odeon usava microfones Neumann U47 e M49, e ainda AKG, sem mencionar que modelo. O que para mim não ficou claro foi se o estúdio da Odeon usava mais de uma máquina (AMPEX) de 2 canais. Eu ouvi uma repórter afirmar que os vocais foram gravados “separadamente”, mas aonde?

Nivaldo fala no método de gravação em playback com apenas dois canais. O termo playback é usado por profissionais da área, significando que é feito o que se chama de “overdubbing”, que é uma gravação feita por cima de um material previamente gravado.

No caso, gravou-se a base orquestral em estéreo mixado em 2 canais e o vocal ou algum instrumento por cima dessa base, em mono. O processo em si, feito em ambiente analógico, implica na perda relativa de resolução na gravação, porque são gerações de fita magnética diferentes uma da outras.

Segundo Nivaldo, em uma das faixas o playback foi feito 3 vezes, mas não dá para perceber a queda de qualidade da gravação final. O que para mim fica claro auditivamente é o uso de reverberação o tempo todo, e talvez isso tenha disfarçado a técnica de playback usada.

De resto, o equilíbrio tonal, se existente, e a distribuição estereofônica dos instrumentos entre os canais devem ter sido obrigatoriamente estabelecidos previamente à captura em fita magnética, e dali para a frente não poderiam ser mexidos, a não ser que toda a faixa fosse regravada. Como eu não ouvi detalhes sobre a mixagem em tempo real, qualquer hipótese fica na conjectura do que realmente aconteceu.

De qualquer forma, eu achei muito importante resgatar a palavra do técnico em depoimento, porque o lado técnico do que é feito tem suma importância em qualquer trabalho deste tipo!

A memória do disco com o Clube da Esquina

Foi para nós que éramos estudantes universitários na década de 1970, vivendo em um ambiente inseguro e incerto, uma via escapista das melhores mergulharmos na audição de boa música, e naquele momento da história músicos brasileiros se esforçavam para compor e mostrar o que eles tinham de melhor, ao mesmo tempo driblando a censura infame que lhes era imposta, com letras de duplo sentido.

Eu me lembro de um show do Chico Buarque, um desses persequidos o tempo todo pela repressão, ao lado do grupo vocal MPB4, em um anfiteatro da UFF que devia ter perto de uns dois mil estudantes. Quando o grupo cantou uma música e depois emendou com a letra de “Apesar de Você”, que tinha sido proibida, todo mundo que estava lá dentro cantou junto. O disco compacto chegou a ser vendido, muitos conseguiram comprar um antes de ele ser retirado das prateleiras das lojas. Artistas e compositores usaram metáforas e analogias crípticas nas letras de música da época, e por causa disso, a receptividade estudantil, que sacava o que estava sendo cantado, foi eloquente.

Ouvindo o Clube da Esquina naquela época não houve somente a descoberta de um novo estilo de música, mas também uma sensação de liberdade poética e desejo de ver renascido um novo ambiente onde as pessoas se sentissem felizes e livres do clima de repressão.

O disco não esconde as suas raízes e influências, como, por exemplo, na faixa “Nada Será Como Antes”, onde é feita uma citação a “See You In September”, parte de um momento ingênuo e romântico do rock tradicional americano.

50 anos atrás as lições iriam ser aprendidas a partir do sofrimento causado pela intolerância política, mas isso tomou muito tempo. Uma das lições que eu pelo menos aprendi foi a de nunca confiar no discurso dos políticos, principalmente os que mentem o tempo para se elegerem e tomar o poder, com todo o tipo de oportunismo e corrupção desenfreada.

A história mostra como se usa a política democrática para se chegar ao poder. Ditadores chegam lá persuadindo eleitores de que são moralistas confiáveis, salvadores da miséria alheia, mas depois se locupletam.

Artistas, cineastas e compositores sempre foram mais sensíveis e mais perceptivos destes tipos de subterfúgios. Os mais jovens, uma vez propensos a pensar e decidir, são os que depois são mais difíceis de enganar. Às vezes, acreditar que a felicidade é possível pode ficar apenas na imaginação de cada um. Mas, sonhar não custa nada e perder a esperança uma temeridade! Outrolado_

. . .

A torre da Capitol Records

 

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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