Como matar o colecionador de filmes

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O home video tem sido, por décadas, cruel com o colecionador de filmes, em cada etapa oferecendo algo melhor do que a mídia anterior.

O home video tem sido, através das décadas, cruel e implacável com o colecionador de filmes. Em cada etapa oferece algo melhor do que a mídia anterior e obriga o cinéfilo a continuar correndo atrás.

 

Durante décadas do século passado era quase impossível uma pessoa qualquer colecionar filmes, porque eles estavam disponíveis em películas de várias bitolas, as cópias eram mais alugadas do que vendidas e o custo costumava ser bastante elevado em ambos os casos.

Foi um sonho meu e de alguns amigos chegar ao ponto de ter em casa uma filmoteca com os filmes favoritos. A propósito, eu tive, por coincidência, uma professora de química orgânica na faculdade, que adorava cinema, e tinha em casa uma cópia de A Noviça Rebelde em 16 mm.

Esta professora gostava de levar filmes educativos para dentro da sala de aula, e quando ela soube que era eu quem organizava o cineclube da faculdade, ela passou a levar o próprio projetor e pedir que eu projetasse os filmes.

Foi ela também que organizou grupos para fazer trabalhos na sua disciplina, e quando chegou no meu grupo ela me pede para fazer um filme em 8 mm, com assuntos pertinentes. Eu escolhi então o assunto polímeros e rodei um curta com a câmera e o spot light emprestados. A montagem das tomadas foi feita em tempo real, porque eu não tinha coladeira, e a minutagem de cada plano contando o tempo de exposição do filme. Não ficou ruim, pelo menos a professora deu nota máxima ao esforço. O filme foi projetado em sala de aula, aplaudido, depois guardado e eu nunca mais o vi.

O investimento na coleção

A coleção de filmes propriamente dita só se tornou viável depois do advento do home vídeo. A perda seguida de bilheteria nos cinemas, o alto custo de exibição, e a perda de negativos nos acervos dos estúdios foram, talvez, alguns dos principais fatores que levaram os estúdios a tomar algumas iniciativas preservacionistas, como restaurar filmes e copiá-los por telecine para algum tipo de mídia. Foi assim com o lançamento dos videodiscos e depois dos videocassetes. E não parou mais.

Colecionar filmes em casa movimentou a indústria de home vídeo desde o seu início, mas o investimento, em muitos casos, não foi convidativo. O Laserdisc, por exemplo, só caiu para um preço de mercado aceitável, depois que o DVD foi lançado, este último com uma imagem muito superior. Eu digo apenas a imagem, porque o Laserdisc evoluiu para o áudio PCM surround (Dolby Stereo) e depois Dolby Digital e DTS, todas as trilhas com som excepcional. No quesito imagem, o Laserdisc impressionou muito pouco, porque a imagem tinha uma relação sinal/ruído pobre.

O disco DVD foi um divisor de águas, muito embora, apesar de impressionar todo colecionador naquela época, por causa da imagem e som em ambiente digital, ainda não chegou a um ponto em que se pudesse afirmar com convicção que se tratava de um avanço da mídia digital, longe disso. Um dos motivos seria a ainda baixa resolução da imagem, somente visível com a introdução da televisão de alta definição.

E a indústria e os estúdios ainda colaboraram negativamente com isso, economizando a produção com o uso de matrizes feitas para o Laserdisc, formatadas em 4:3, com o emprego do famigerado “pan & scan” para a transcrição de filmes scope. Ao fazer isso, a telecinagem cortou partes importantes do enquadramento dos filmes. Vejam que nem na época do 16 mm os filmes em CinemaScope tinham este tipo de problema. Então, sob o ponto de vista do colecionador, este tipo de edição em DVD se tornou manca e inaceitável.

A situação piorou mais ainda com o lançamento dos televisores com tela 16:9 no início da década de 1990, precursores da TV de alta definição com varredura em 1080 linhas, esta última inicialmente em vídeo entrelaçado (1080i), porém com qualidade suficiente para revelar a pobreza de imagem de muitos DVDs. Foi exatamente nesta época em que campanhas foram lançadas nos fóruns da Internet para forçar os estúdios a parar de lançar discos com imagem letterbox 4:3.

Para nós colecionadores, o tempo foi implacável com o home vídeo e com o consumidor. Através das décadas os mesmos filmes foram, e ainda são, relançados em vários tipos de mídia, na tentativa de melhorar a qualidade da imagem e do som obtido. O efeito colateral disso, que eu lamento até hoje, foi ter que recomprar tudo de novo, para conseguir os benefícios dos aperfeiçoamentos de som e imagem alcançados.

Uma sequência aproximada desta evolução de imagem dos filmes em disco foi a seguinte:

Mídia/Qualidade da Imagem* Período
Videodisco (425i-NTSC e 440i (PAL) 1978-2000 (USA), 2009 (Japão)
DVD (480i-NTSC e 576i-PAL) 1995-Diante
HD-DVD (1080i) 2006-2008
Blu-Ray (1080p) 2004-Diante
Blu-Ray 4k (2160p) 2016-Diante

*N.B.: Os formatos alternativos em disco, a saber, CD-i (1991), VCD (1993), SVCD (1998), EVD (2003) e HVD (2004), não foram incluídos na tabela, por terem relativa curta duração e foram eventualmente abandonados.

Em todos esses momentos foi necessário o colecionador gastar algum (ou muito) para repor títulos importantes da sua coleção, caso contrário os benefícios de imagem jamais seriam conseguidos.

A revisita prazerosa a um título esquecido na prateleira

Por esses dias, fuçando filmes antigos em uma das prateleiras de casa, eu me deparo com um título que me atraiu muito nos cinemas, na década de 1960. Trata-se do filme “How to Murder Your Wife”, lançado aqui com a tradução literal do título “Como Matar a Sua Esposa”. Eis o trailer:

A estória é simples: Stanley Ford (Jack Lemmon) é um cartunista de tiras de jornais de grande sucesso e solteirão convicto. Em sua residência ímpar, ultra confortável, em um local privilegiado de Nova York, ele é assistido por Charles (Terry Thomas), igualmente compartilhando a ideia do homem celibatário.

Stanley vai a uma festa inicialmente melancólica de despedida de solteiro do seu amigo Tobey (Max Showalter). O clima de velório acaba quando Tobey anuncia que a noiva desistiu do casamento, e aí todo mundo enche a cara e se diverte.

Bêbado, Stanley vê saindo de um bolo a estonteante atriz italiana Virna Lisi, aliás uma da atrizes mais atraentes do cinema, e se casa com ela. Para descobrir, no dia seguinte, que ela não fala uma só palavra de inglês! Aí começa a comédia social.

O filme é uma crítica aberta ao matriarcado exercido pelas mulheres norte-americanas de classe média daquela época. Talvez hoje o filme poderia ser classificado como politicamente incorreto ou misógino, mas esta classificação estaria incorreta.

O roteiro não é nada disso, trata-se de um farsa muito bem dirigida pelo outrora ator e hoje esquecido Richard Quine. O elenco é recheado de comediantes capazes de fazer o roteiro andar com imensa facilidade. O advogado de Stanley, Harold Lampson (Eddie Mayehoff), é quase caricato, mas as suas expressões faciais funcionam. Ele é um daqueles maridos submissos, dominado pela mulher, que inveja o celibato de Stanley e deseja que ele compartilhe da mesma falta de realização e felicidade do homem assim casado.

Stanley, ele mesmo, se torna submisso depois do casamento inusitado, mas ele planeja a sua reação através do seu personagem dos quadrinhos Bash Brannigan, antes um super espião e agora um marido infeliz e desastrado.

Quando Stanley tenta se divorciar de Mrs. Ford, ela, que é italiana, diz a ele que na Itália não existe divórcio. Aqui é feita uma citação direta ao filme neorrealista de Pietro Germi “Divórcio a Italiana”, de 1961, que tem uma trama idêntica.

Stanley faz Brannigan matar a sua mulher nos quadrinhos, mas Mrs. Ford descobre e vai embora. Stanley então é acusado de ter matado a mulher. A comédia então tem diversas reviravoltas, cujo final eu prefiro não contar, para não estragar o prazer de quem ainda não viu e se interessou por assisti-la.

Esta comédia-farsa eu assisti nos bons tempos do extinto cinema Rio, que ficava perto de casa. Deu pena ver o cinema destruído e o espaço ocupado pela atividade bancária. O cinema chegou a ser equipado com aparelhagem 70 mm, com uma tela enorme.

Como Matar a Sua Esposa foi lançado em um DVD letterbox 4:3, que é a edição que eu ainda tenho. O fotograma 1.66:1, típico da década de 1960, é transcrito em um quadrado, que até pode ser reproduzido com zoom no player, mas a imagem não fica boa. A edição em Blu-Ray saiu, mas ficou por conta da Olive, que estragou o disco com uma edição sem legendas.

É assim que acontece com quem ainda insiste em colecionar filmes em disco. Com a entrada dos serviços de streaming vem o temor que a indústria de home vídeo entre em colapso. A mudança desejável para Blu-Ray 4K ainda está longe de ser “popular”, mesmo baixando lá fora o custo da mídia. No Brasil, nem pensar.

Vejam a situação de hoje do cinéfilo: se vai ao cinema, corre o risco de, dentro de uma sala com ar condicionado congelante, assistir ao filme somente em vídeo, às vezes com uma imagem pior do que a doméstica. Eu já entrei em um cinema minúsculo e ouvi um menino com seus amigos sentados na fileira da frente dizer a eles que a tela parecia a televisão lá da casa dele. Pode isso?

Engraçado é que, depois de todos esses anos, colecionar filmes continua um suplício. E porque não abdicar de colecionar e aderir de vez ao streaming? Simplesmente porque o colecionador quer ter o filme em casa, pode escolher e não pesquisar on-line o filme que quiser, e assistir quando quiser, ao invés de tentar achar um serviço que o tenha disponível.

O cinema é a maior forma de arte do século passado. Mas, somente o cinéfilo ou o entusiasta é que pode valorizar isso. Nós todos ganhamos a chance de poder ter em casa, através do home vídeo, um som de excelente qualidade, e de uma imagem com qualidade aceitável, que tende a ser melhor com o aprimoramento dos displays que ainda não estão disponíveis. Voltar tudo isso para trás é impensável! Outrolado_

. . .

 

Serviços de streaming versus colecionadores de discos

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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4 respostas

  1. Olá Paulo. Num dia desses me interessei por assistir um DVD antigo (Capitão Sky) no meu player de Blu-Ray. Fiquei perplexo como esse filme (que possuí metade da resolução de um filme em Blu-Ray), possa reunir uma qualidade de imagem consideravelmente boa. Mas traçando um paralelo, as plataformas de Streaming torcem o nariz em manter em seus catálogos títulos antigos. Diante dessa realidade as coleções particulares dos cinéfilos ainda terão utilidade por muitos anos ainda. Acho que as mídias de filmes novos ainda terão um nicho no mercado, até quando eu não saberia prever…

    1. Oi, Rogério,

      Exatamente, e vejo uma certa decadência, por exemplo, da Netflix, que reprisa como lançamento filmes atuais que a gente vê em outras plataformas. Eu sempre encarei as coleções como uma forma de preservar o que se viu de bom, e/ou, de guardar um bom momento das idas aos cinemas.

      Aproveito para te informar que, a pedido do nosso editor, estou novamente editando artigos para o Webinsider, site onde tudo começou e é mais lido do que O Outro Lado.

      Informo também, caso seja do seu interesse, que eu estou participando de um projeto do in70mm.com, para listar os filmes em 70 mm exibidos por aqui: https://www.in70mm.com/library/country/brazil/index.htm. É um projeto em andamento, mas no que me tange está praticamente no fim, porque, para variar, as fontes de pesquisa são escassas. Muitos daqueles títulos eu tive que usar a memória, que ainda está mais ou menos intacta…

      1. Sensacional Paulo, meus efusivos Parabéns pela sua iniciativa, pois nesse país não existe compromisso com a Cultura de preservação dos filmes de cinema, prova disso foi a ocorrência do incêndio no galpão da Cinemateca no bairro da Vila Leopoldina, na cidade de São Paulo, somando-se a isso, os pais não estão educando/estimulando os filhos jovens para frequentar as salas de Cinema, que estão perdendo espaço para televisão/streaming. Mas por outro lado, que ótima iniciativa de voltar a publicação de matérias no Webinsider.

        1. Pois é, Rogério, é também o ponto de vista sobre a educação de base que eu sempre defendi, parece que impossível na nossa cultura. Eu soube deste incêndio, lastimável por se tratar de uma entidade onde foram arquivados centenas, talvez milhares, de materiais áudio-visuais, inclusive, se não me engano, de material de televisão de emissoras que fecharam.

          Obrigado pelo apoio. O Webinsider agora se tornou parte integrante do Outro Lado, mas ainda não sei como ele vai ser formatado. Ao longo dos anos só a minha produção ocupou um longo espaço no site original, e tudo isso leva tempo para arrumar em outro formato.

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