Lidando com audiófilos e suas esquisitisses

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Conviver com audiófilos nos leva a conhecer mitos criados sem fundamento técnico nenhum. É melhor ficar calado nestes casos.

 

Eu sempre soube que uma relação interpessoal entre seres humanos, que acabam se transformando em amizade, é muito mais fácil de ocorrer quando os envolvidos têm pontos em comum, ou comungam das mesmas ideias. Mas, infelizmente, nem sempre é o caso, porque existem outros fatores em jogo, como personalidade, caráter, etc.

O “audiófilo”, como o nome justifica, é aquela pessoa que gosta de ouvir som. Mas, não existe necessariamente uma correlação entre gostar de música e gostar de áudio. Quantas vezes eu conheci pessoas que adoram música, mas com zero de interesse pela sua tecnologia de reprodução. Como também já conheci pessoas loucas por áudio, mas a apreciação da música era notoriamente secundária.

As relações interpessoais são particularmente complicadas, quando a gente se defronta com o ego alheio. E, em se tratando de “audiófilos”, eu aprendi que todo o cuidado é pouco! Muitas vezes convicções são formadas, a ponto de virarem mitos indestrutíveis. Um exemplo histórico disso foi a disputa entre som analógico versus digital, ocasião onde foram proferidas na mídia todo o tipo de afirmação sem base alguma!

Visitas a audiófilos por mim desconhecidos

Aquele meu grande amigo, que faleceu sem eu ser avisado, era uma pessoa com ouvido privilegiado, conhecedor e projetista por hobby em circuitos de áudio sofisticados. Muitos dos seus designs, amplificadores e caixas acústicas, eram montados e depois vendidos, em uma contínua pesquisa de novas formas de reprodução. Por isso, e tudo mais, eu poderia classifica-lo com uma pessoa altamente capaz na área de áudio, e amante de música de bom nível, desde o erudito, passando pelo Jazz, e pelo popular de bom gosto.

Pelo fato de ele montar e acabar vendendo seus projetos, este meu amigo conhecia e circulava entre audiófilos de todos os tipos. Depois de um certo tempo que nos tornamos amigos, eu ouvi várias estórias, onde ele me relatou as excentricidades e preconceitos dos seus conhecidos.

Como aquela que aconteceu na época do lançamento do Compact Disc. Foi ele quem importou imediatamente o Sony CDP-101 e alguns discos, ficando naturalmente entusiasmado com a novidade. Levou o aparelho e os discos na casa daqueles amigos, e os viu torcendo o nariz para o som digital.

Em 1983, nós ainda não éramos conhecidos, e eu só pude ver o CDP-101 porque um produtor da Rádio JB FM, que tinha um programa de música clássica, mandou importar o aparelho, que chegou com apenas dois discos. E eu tinha uma amizade com um técnico da emissora, que me chamou imediatamente para dar uma olhada.

Eu levei comigo o meu colega e ex-professor de química Affonso do Prado Seabra, também projetista de amplificadores e com uma imensa coleção de discos elepês de música erudita. Nós dois ouvimos o CDP-101 dentro do estúdio da JB, com caixas JBL profissionais, e saímos de lá impressionados. Ele, logo na saída, me disse que esta seria a sua última coleção de discos, e aqui eu lembro ao leitor que o CD foi projetado pela Philips justamente para o ouvinte de peças clássicas, com uma altíssima relação sinal/ruído e dinâmica em torno de 90 dB.

Mas, já nesta época, as revistas de áudio (eu lia Audio, Stereo Review e High Fidelity todo mês) já haviam se dividido entre artigos e comentários de gente que amou o Compact Disc e gente que odiava o som digital e que detestou o novo disco, chamando-o de “mid-fi”. Ironicamente, naquela época muitos elepês eram cortados com fitas magnéticas digitais e eles eram tranquilamente aceitos pelos opositores!

Foi com o meu amigo que eu visitei vários audiófilos radicais, desses que criavam e acreditavam nos seus próprios mitos a respeito de reprodução do áudio. Eu me precavi, evitando dar a minha opinião a respeito do que se estava ouvindo. Eu sabia, de antemão, pelos relatos do meu amigo, que o clima nesses encontros ficava tenso e beligerante, provocado por diferenças de opiniões. Em uma daquelas visitas, o senhor olhou para mim, viu que eu estava quieto, e me disse que eu podia malhar à vontade, porque ele estava acostumado com isso.

Ignorância e montagens equivocadas

Eu estive, com o meu amigo, na casa de um outro senhor que havia acabado de mandar montar um par de caixas acústicas tipo torre, enormes, com design baseado em linha de transmissão. Durante muitos anos, este tipo de sonofletor ganhou uma reputação de ser capaz de estender a resposta de baixa frequência, até níveis próximos do infrassônico, ou seja, seria melhor do que um bom subwoofer, e sem os problemas de casamento com o mesmo.

Logo que eu entrei na residência daquele senhor, a primeira coisa que eu notei foi uma parede enorme, com um espelho cobrindo toda a sua extensão, no local onde as caixas estavam instaladas. Só este detalhe iria denunciar para mim, que nunca fui técnico em acústica, mas que também não sou tão ignorante assim, que o local de audição era inadequado, porque o som tende a se refletir em superfícies duras, neste caso se tornando virtualmente impossível de ser bem aproveitado por qualquer caixa acústica.

Quando começamos a ouvir, o resultado era mais ou menos o esperado, mas nem o meu amigo nem eu comentamos nada. E para complicar mais as coisas, o som apresentava uma distorção, que deixou o dono da casa desconcertado. Então nós nos dirigimos para uma sala adjacente, onde estava um daqueles toca-discos sofisticados com braço linear. Não me lembro se o design era passivo ou ativo (braço com passo acionado por motor), mas o tubo central do braço era colocado em suspensão em outro tubo, com a ajuda de ar insuflado por uma bomba parecida com as bombas de aquário, por sinal, muito barulhenta, motivo pelo qual o toca-discos estava rodando eu uma sala separada.

Um toca-discos desses era caríssimo, e prometia uma reprodução de elepês virtualmente sem distorção provocada por erros de trilhagem. E como não era o que acontecia ali nós fomos ver do que se tratava. A agulha foi limpa, mas isso não surtiu nenhum efeito.

O senhor resolveu trocar de disco. Logo de cara, nós nos deparamos com um elepê conhecido da RealTime, com a gravação do trompetista Jack Sheldon, que eu já tinha em CD. Notem que a RealTime Records era uma gravadora do grupo Miller & Kreisel (M&K Sound), especialistas no design de caixas acústicas para uso profissional. Aliás, eu tive a chance de ouvi-las no estúdio de mixagem da Double Sound, e pude constatar a qualidade de todas as caixas, frente e surround.

A RealTime fez discos em corte direto, mas abandonou o formato para se engajar avidamente em gravações digitais, que também foram prensadas em elepês, caso daquele senhor.

É importante assinalar que a gravação digital deles era guiada por critérios específicos, como, por exemplo, o uso de microfones (AKG C-414) calibrados na fábrica. O estúdio onde a gravação foi feita era notoriamente seco, ou seja, reverberação quase zero. O nível de gravação em geral era baixo, mas, a reprodução devia ser feita com cuidado, porque se alguém aumentasse o volume e a dinâmica aumentasse, estava arriscado a queimar um alto-falante. Várias etiquetas desta época (vide Telarc) faziam este alerta, inclusive nas capas dos elepês.

Eu me arrisco a dizer que o pessoal da Miller & Kreisel só oferecia elepês daquelas gravações, para satisfazer os partidários do som analógico, que diziam que o som digital somente é tolerável se reproduzido em disco de vinil.

Eu não saberia dizer se eles davam um jeito de contornar problemas de dinâmica excessiva na sala de cortes, por exemplo, aplicando compressão, mas o fato é que com uma gravação de dinâmica elevada, em uma superfície de vinil, por si só com problemas crônicos de relação sinal/ruído, é de se esperar alguma limitação de reprodução. E naquele momento, o meu amigo e eu vimos no sofisticado toca-discos um elepê empenado, e sem que aquele senhor tivesse se dado ao trabalho de colocar um peso em cima do rótulo, que desempenaria momentaneamente o disco.

Naquele momento, ele continuou achando que ainda era sujeira na agulha, limpou e… a distorção continuava lá. É aquela velha estória: contra fatos não há argumentos, e certamente não seria eu, nem o meu amigo, as pessoas que tentariam convencer alguém que gosta tanto de som analógico, que está tudo errado, desde a sala com espelho até o front-end de reprodução.

Mitos que eu não tenho esperança de ver derrubados

Eu já cheguei a uma fase da minha vida, tendo sido testemunha de tanta coisa fora dos eixos, que desisti de esperar que as pessoas mudem de atitude para acabar com certos mitos e entrar de vez na realidade dos fatos.

Eu uso atualmente, por exemplo, um condicionador de energia muito bom, marca Engeblu, modelo FPC1900, mas somente para a proteção do meu home theater contra os transientes da rede elétrica, nunca para obter um som melhor, como muitos audiófilos insistem em afirmar. Nem o engenheiro fabricante deste aparelho tem a coragem ou a ousadia de sair falando alguma coisa deste tipo. Se ele fez isso eu nunca soube. Eu precisava proteger os meus equipamentos da energia suja que os alimenta, entrei em contato com o Marcelo, engenheiro da Engeblu, e troquei ideias com ele a este respeito. Ele pode ser visto neste vídeo promocional, explicando tudo:

Pois um dos audiófilos que o meu amigo me apresentou, insistiu com a Light para alterar a rede elétrica da rua, porque a energia que ele recebia estaria distorcendo o som, e pressionou os técnicos da empresa para fazer as modificações que ele queria. Se conseguiu ou não, eu não sei. Mas, esta insistência aconteceu porque ele acreditava piamente no mito de que a energia da rede elétrica tem influência sobre o áudio, provocando distorções no sinal musical. Daí o uso de condicionadores de energia para supostamente “purificar” o som.

Quando é preferível ficar calado

Diz o antigo provérbio popular que “em boca calada não entra mosca”.

Eu cansei de ver que o meu amigo se sentia intimidado na frente de pessoas que ele implicitamente sabia a priori que elas estavam erradas ou falando besteira a respeito de áudio, e foi este um dos motivos pelos quais ele, confessadamente, me pedia para acompanha-lo na casa de alguns audiófilos.

A amizade tem fundamento e perdura (entre esse amigo e eu durou cerca de 36 anos) quando pontos de vista em comum têm prevalência. Depois de um largo período de convivência nós já tínhamos uma intimidade razoável para que ousássemos discutir opiniões de vez em quando. Mesmo assim, alguns dos nossos argumentos provocaram faíscas no calor da discussão, mas em momento algum houve desrespeito à posição adotada por um de nós. O respeito espontâneo entre amigos sempre terá prevalência quando se quer preservar as amizades. E existem várias maneiras de dar um opinião sem ferir suscetibilidades. Porque, no final, em algum dia alguém chega a uma conclusão tardia, de que alguns conceitos julgados como corretos anteriormente estariam errados, e nós, como audiófilos, este meu amigo certamente muito melhor do que eu em todos os sentidos, sempre demos prevalência à música e não ao áudio. Este último é uma ferramenta e deve ser encarado como tal.

Quanto aos nossos antagonistas, nenhum deles iria nos tirar do sério, e eu, sinceramente, sempre achei, como diz o ditado, que cada um cai do bonde como entende, então que eles fossem felizes com os mitos que quisessem.

Lidando com os vícios do dito ser humano

Eu acho engraçado quando assisto vídeos sobre a pesquisa da presença de seres supostamente vindos do espaço neste planeta, e as pessoas envolvidas nesta descoberta em tentativas obsessivas de tentar uma comunicação de qualquer tipo. Em alguns vídeos já se fala em contatos do quinto grau.

Mas, e o pessoal daqui da terra? O dito ser humano é capaz de tudo. A busca desenfreada por poder e controle sobre outras pessoas expõe falhas de caráter gravíssimas. E eu tenho 99,99% de certeza de que vai ser sempre mais difícil a gente se comunicar e lidar com seres humanos do que com extraterrestres!

Em sala de aula era fácil observar que determinados alunos se tornariam bons profissionais e outros não. Em muitas circunstâncias dentro da Faculdade de Medicina, meus colegas me contavam quando ficavam revoltados e perdiam a paciência diante de alunos que demonstravam total falta de respeito com o paciente no leito hospitalar. É inclusive aí que a academia tem obrigação de examinar caso a caso, e jubilar o aluno recalcitrante, quando for o caso. Se um aluno não respeita o paciente, como seria a sua atitude na vida profissional dali para a frente?

Ambição, perseguição a terceiros, sede de poder, opressão, repressão, censura e tantos outros vícios de comportamento, fizeram parte dos piores eventos do século passado. As mudanças culturais, se existentes, levam muito tempo e nem sempre são positivas. Roteiristas de filmes falam em um futuro sem dinheiro, com integração social e sem fronteiras, mas outros preveem um futuro tenebroso. Qual dos dois irá prevalecer, ninguém sabe! Outrolado_

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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