Alucinações nas telas de cinema – Altered States

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Um cientista que faz uso irresponsável de uma infusão de cogumelo, sem saber o que está lá dentro, e principalmente sem saber quais as implicações farmacológicas resultantes no seu organismo

O filme Viagens Alucinantes (Altered States) faz parte de uma época em que o cinema típico de Hollywood tentou se firmar como cinema de arte.

 

Eu tive a sorte e o privilégio de trabalhar como assistente de pesquisa de um colega mais velho, que foi meu mentor durante anos. Ele havia se formado em medicina, com residência em psiquiatria, mas largou tudo para estudar mecanismos de doença no laboratório. Uma vez ele me diz que o cérebro humano era dividido em 2 partes: uma delas é o cérebro velho, aquele que acumula toda a memória dos antepassados, e a outra é o cérebro novo, que acumula as experiências de vida, que depois serão repassadas aos seus descendentes.

Na década de 1980, o cinema enfocou a época em que drogas alucinatórias estavam sendo testadas em ambiente acadêmico, como aconteceu, por exemplo, com Timothy Leary, e o seu envolvimento com o ácido lisérgico (LSD), citado na mídia várias vezes.

O excêntrico diretor inglês Ken Russel, muito badalado nesta época, levou às telas a obra do premiado escritor e roteirista Paddy Chayefsky. Mas, este não gostou do resultado, brigou com o diretor, e exigiu a supressão do seu nome nos créditos, que foi substituído por “Sidney Aaron”:

O filme segue a linha do psicodelismo vigente, com um clara referência ao uso de drogas alucinatórias no ambiente universitário norte-americano. O roteiro faz crítica à falta de responsabilidade dos experimentadores.

Para quem, por acaso, não sabe, todo e qualquer trabalho de pesquisa que envolve drogas e pacientes, precisa passar primeiro por uma comissão de ética, que julga os riscos envolvidos, e só depois o projeto de pesquisa é aprovado. E ainda assim, a participação de pacientes tem que ser obrigatoriamente acompanhada por um termo de consentimento, no qual ele ou ela entendem que estão sendo submetidos aos testes de uma nova droga ou medicamento, e os riscos que isso implica.

Em Altered States (no Brasil, Viagens Alucinantes), o professor/cientista Dr. Eddie Jessup está convencido de que a esquizofrenia não é uma doença per se, mas sim uma mudança de estado de espírito, onde o cérebro do paciente “migra” para um outro plano de vida.

Para testar esta hipótese ele e seus colegas criam um tanque onde o paciente flutua de forma isolada, monitorado por eletródios eletroencefalográficos (que medem a atividade cerebral). Dentro do tanque, a pessoa se submete a uma privação dos sentidos, de maneira a se afastar da realidade. Fascinado com as possíveis repercussões das suas hipóteses, Jessup resolve testar a si próprio.

Anos se passam, ele e sua mulher ganham emprego docente em Boston, e então se mudam para lá. O antigo projeto ainda é alvo da cobiça de Jessup, porque ele entende que faltam informações a respeito da evolução do cérebro humano. Assim, partindo deste princípio, ele precisaria descobrir uma maneira de tornar consciente anos de memória do seu próprio cérebro.

Jessup ouviu falar de que índios mexicanos faziam cerimônias com substâncias extraídas de um cogumelo, que produziriam o efeito de regressão que ele desejava. Indo ao México e trazendo consigo o extrato do cogumelo, ele volta secretamente a uma nova câmara de isolamento. Os resultados são uma obra de ficção científica, misto de terror e mistério. Não vou contar, senão o filme perde a graça para quem ainda não assistiu!

Drogas de plantas e alucinação

Eu trabalhei por anos a fio, próximo de colegas cuja atividade de pesquisa era a extração, purificação e análise química de substâncias extraídas da flora brasileira, riquíssima e com enorme potencial na indústria farmacêutica. O meu chefe e depois orientador na tese de mestrado, o Professor Paulo Lacaz, reuniu cientistas brasileiros, americanos e ingleses, para formar o então chamado Centro de Pesquisas de Produtos Naturais (CPPN), depois Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais. Foi na central analítica de lá, inclusive, que eu vi o primeiro equipamento científico associado a um computador enorme, anos mais tarde substituído por um microcomputador.

Meus colegas do NPPN (hoje Instituto) me ensinaram muito sobre análise orgânica, aplicável em trabalhos com bioquímica. Várias das nossas conversas informais abordavam a forma irresponsável como extratos de plantas vendidas nas feiras, prometendo a cura de alguma doença. Esses extratos são obtidos na forma de um chá de folhas, e eram potencialmente tóxicos. Quando as infusões para fazer o chá são feitas, um monte de substâncias eluidas a quente passam para o chá. O emprego farmacológico dessas substâncias é, em princípio, desconhecido, e elas podem ter um efeito colateral imprevisível. Na prática, isto significa tentar curar uma doença provocando outra muito pior.

Muitos dos pesquisadores do NPPN eram oriundos da minha faculdade, e então eu convivi com eles ainda muito jovem. Nos últimos anos do meu contato com eles, eu ousei chamar a atenção de alguns deles que não bastava somente separar e purificar substâncias de interesse farmacológico. Era necessário estudar a biotransformação dessas substâncias e isso nenhum deles tinha feito até então. Como os meus contatos foram perdidos, eu nunca soube se tal pesquisa foi feita, pelo menos naquela época, infelizmente, não foi.

A base de raciocínio na crítica usada em Altered States é exatamente esta: um cientista que faz uso irresponsável de uma infusão de cogumelo, sem saber o que está lá dentro, e principalmente sem saber quais as implicações farmacológicas resultantes no seu organismo. Em outras palavras, é a ambição paranoide de alguém que quer ser reconhecido como o esclarecedor da origem do ser humano, sem se preocupar com as consequências dos seus métodos de pesquisa.

O interessante, para quem assiste o filme, é que o roteiro não tem solução para o desfecho da estória. E assim, o final do filme não tem explicação sobre o que acontece depois, o filme simplesmente acaba e ponto final.

O filme sugere que é possível que a regressão de memória cerebral tenha acabado no nada, desmistificando o lado religioso da criação do homem, e da passagem da alma para o céu ou inferno. Indagações sobre princípios e ensinamentos da religião Católica são expostos durante as viagens alucinatórias, como se o roteiro indagasse se aquilo tudo foi verdade, ou somente fruto da imaginação ou fé de cada um.

Bem, a verdade é que, se a ciência fosse, na vida real, estritamente seguida, o experimentador teria que morrer e depois voltar a viver, para fazer um relatório desta experiência. Hipóteses surgem diuturnamente, até hoje, com leigos e médicos tentando explicar o que acontece, mas sem nenhuma prova pautável. Altered States sequer tenta provar qualquer hipótese, seja esotérica, psicodélica ou racional. Quem assiste, fica sem resposta.

O filme em Blu-Ray

A Warner Brother, hoje se sabe, assumiu Altered States, depois da Columbia ter desistido do filme por causa das infindáveis brigas entre Paddy Chayefsky e os seus potenciais realizadores. Nem depois da Warner indicar Ken Russel, as brigas e discussões pararam.

O estúdio tentou inovar com a introdução de um formato de som chamado Megasound. Apenas poucos filmes foram produzidos com este tipo de trilha sonora. As bandas magnéticas usadas para o formato eram as das cópias em 70 mm. O objetivo era basicamente aumentar o impacto de sons graves e realçar os demais sons, exigindo a instalação de mais alto-falantes e caixas acústicas.

É provável que, na edição em Blu-Ray, a trilha 5.1 tenha sido tirada do original pretendido para o Megasound. Fica patente, pelo menos, que a trilha Dolby Stereo convencional da cópia em 35 mm foi descartada, haja visto a separação surround e o impacto sonoro dos efeitos sonoplásticos.

Viagens Alucinantes, para mim, faz parte de uma época, onde o cinema de natureza comercial, típico de um Hollywood pós studio system, mas ainda sem identidade como cinema de arte, tentou se firmar entre os fãs do cinema moderno. Alguns filmes chegaram a ter status como tal, e os cineastas da época, de qualquer forma, fizeram um esforço que merece reconhecimento. [Webinsider]

 

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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