A falta de memória é um problema crônico no Brasil

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se as documentações inexistem ou são escassas, o pesquisador vê tudo desaparecer como que por encanto. A memória que se quer pesquisar fica retida nas lembranças que pessoas daquela área vivenciaram

Quando a ausência de documentação a respeito de qualquer assunto se torna o principal motivo de dificuldade de qualquer pesquisa, as fontes de informação são aquelas da memória dos que viveram os respectivos campos de trabalho, e quando estes morrem, nada mais se pode fazer a respeito.

 

Não foram poucas as vezes que os meus professores de História nos recomendavam que nós estudássemos o passado, tirássemos lições e conferíssemos se a história se repete ou não, com as implicações de todas as lições aprendidas, caso elas tivessem existido.

Durante muitos anos da minha vida eu não dei muita bola para isso, muito embora reconhecesse que os meus professores tinham toda razão. E, de anos, para cá, eu acabei aprendendo lições amargas a este respeito, quando comecei a fazer pesquisa sobre música, sobre cinema e outros assuntos, que mesmo com o advento da presença de gigantescos bancos de dados na Internet, as informações continuam a ser escassas, ou, em alguns casos, inexistentes!

Nos últimos anos da minha vida, eu fiquei perplexo comigo mesmo, com o péssimo serviço oferecido por várias bibliotecas públicas importantes na cidade. Na vida acadêmica, os problemas existiam, mas se contornava de uma forma ou de outra. Em muitos casos, escrevia-se uma carta para um dos autores da publicação pretendida, e eles enviavam um “reprint” (cópia) do texto procurado. Depois do advento do CD-ROM ficou muito mais fácil achar qualquer coisa e imprimir o texto, para uma leitura posterior. Após a introdução da World Wide Web, esses bancos de dados migraram para websites, o que nos facilitou mais ainda.

Uma das principais virtudes da vida on-line foi a desnecessidade de alguém se locomover para entrar em uma biblioteca e tirar uma cópia de algum manuscrito contido em revista ou livro. Quando eu comecei a tentar descobrir o que fosse possível sobre cabines de cinema, as minhas idas a bibliotecas chegaram a ser quase inúteis.

É a tal estória: se as documentações inexistem ou são escassas, o pesquisador vê tudo desaparecer como que por encanto. A memória que se quer pesquisar fica retida nas lembranças que pessoas daquela área vivenciaram. Foi o caso dos cinemas: as salas fecharam, a maioria demolida, e ninguém do público foi lá para ver aquilo de perto. Entre as que sobraram e que viraram igreja evangélica, as cabines foram desmontadas ou abandonadas com o que sobrou lá dentro, como foi o caso do Cinema Pathé. O Ivo Raposo havia me avisado que os projetores Incol ainda estavam lá. Quando eu cheguei, tive que implorar ao pastor para entrar na cabine e dar uma olhada. Esse senhor, tenho certeza, não sabe ou não tem interesse em preservação da memória, seja lá de que assunto for. Se fosse o contrário, ele teria me ajudado a entrar naquela cabine, e não impedir que eu fosse lá. Depois de conseguir entrar, o que eu vi foi o retrato do descaso, os projetores já com sinais de ferrugem, módulos da aparelhagem de som jogados no chão, algumas ainda ligados.

A falta de memória dos estúdios fonográficos

Em 2019, eu andava fazendo uma pesquisa sobre os estúdios sobreviventes da Capitol. E o leitor Fernando Vinil me fez a gentileza de informar nos comentários o endereço correto do estúdio da Odeon, no Rio de Janeiro, onde Nat King Cole havia gravado A Meus Amigos, em 1959: Avenida Rio Branco 277, Centro, Rio de Janeiro:

A propósito do disco de Nat King Cole, o interessante é que eu nunca havia percebido, apesar de ser ávido colecionador, do lançamento da edição em CD de A Meus Amigos. O CD saiu de catálogo, estava muito difícil de achar, mas o meu filho achou um exemplar usado, felizmente em bom estado, e comprou para mim. Nos créditos, se vê uma descrição dessa reedição, cuja lista de faixas, não sei por quê, não é a mesma do disco original:

No texto apócrifo da contracapa, menciona-se que duas faixas extras foram gravadas no México, em 1961 e a terceira na Odeon, mas excluída do disco. As faixas extras tradicionalmente aparecem com o rótulo de “Bonus Tracks”, listadas ao fim das faixas do disco original, na ordem em que elas foram gravadas no elepê, mas isso deixou de ser feito.

Aparentemente, a produção do CD não teve à disposição o fac-símile da contracapa do elepê, que eu repasso aqui, digitalizada do meu antigo elepê, versão Capitol estéreo:

Esta contracapa veio da última edição do elepê que sobrou da minha coleção, com selo Capitol, ao invés de Odeon, disco que eu restaurei e preservei, antes de me desfazer dos meus elepês. Comparando o som do elepê e do CD nota-se que este último, seja lá qual foi a fonte usada, é bem mais detalhado do que o som parcialmente distorcido do elepê. No CD não se menciona se a master usada é a mesma do elepê, ou se a gravação de 1959 foi feita com apenas dois canais. O fato é que, nesta época, muitos estúdios ainda gravavam em mono, e ficaram assim durante anos.

Décadas atrás, conversando com um vendedor de uma loja enorme de elepês usados, ele me afirmou que gente da Odeon correu até lá para tentar achar capas dos discos que eles não tinham mais. A Odeon usava uma capa proprietária de plástico, horrível, e este senhor as viu desmontadas para se conseguir a capa propriamente dita que ficava dentro do plástico. Segundo ele, vários discos remasterizados da Odeon saíram dessas embalagens. Na primeira edição em CD do álbum Milton Banana Trio, a capa original do disco aparece em um compósito:

Na série 100 Anos de Odeon, o CD foi relançado com a capa integral. Presume-se que deve ter vindo da coleção de alguém, ou então achada em algum arquivo da Odeon.

A falta de créditos nos discos fonográficos gravados no Brasil sempre foi historicamente notória. Nos discos do trio do Milton Banana, por exemplo, os músicos eram citados pelos respectivos primeiros nomes. Quer dizer, se alguém não os conhecia, jamais poderia depois saber quem eram! No site Discogs se pode ler hoje a lista dos participantes.

Pagando caro pelos arrependimentos

Desde adolescente, eu sempre quis ter noção como os estúdios da indústrias fonográficas funcionavam. Através de conhecidos, eu dei a sorte de pelo menos conhecer os seguintes locais: estúdio da Rádio Transamérica, que ficava na Rua São Francisco Xavier, estúdio da Polygram, da Barra da Tijuca, estúdio da CBS, da Rua Visconde do Rio Branco, estúdio TBS, do Toninho Barbosa (ex-Sonoviso), na Rua Pedro I, Centro do Rio, estúdio da Som Livre, em Botafogo. E ainda, a fábrica da Tapecar, a primeira próxima da Avenida Brasil, que duplicava fitas, e a outra, em Bonsucesso, com prensagem dos discos, e a fábrica da Companhia Industrial de Discos, também na Avenida Brasil ou arredores, onde vi pela primeira vez um disco ser prensado.

Nada disso, entretanto, me trouxe conforto e paz de espírito pela burrice de ter tido a chance de conversar com o notável compositor Durval Ferreira, que visitava o meu amigo que eu visitava ali na Rua São Salvador, onde ambos moravam, e não ter aproveitado os encontros dos dois. O Durval, segundo soube, foi um dos mais assíduos frequentadores de estúdio, e teria sido uma das mais importantes fontes de informação. Ele conhecia tudo e todo mundo, aqui e lá fora. Eu conheci o Durval antes de um show, mas pouco nos falamos, eu inclusive fiquei retraído, diante da estatura dele. E ele era uma pessoa acessível, segundo este meu amigo, gostava de um bom papo.

Diz o profeta que na estrada da vida nunca se passa pelo mesmo caminho duas vezes. As pessoas que são interessantes e precisavam ser entrevistadas quando ainda vivas, desaparecem com a idade, e aí nada se pode fazer a respeito. No curso de todas as pesquisas recentes que eu fiz, ficou valendo o antigo provérbio “se arrependimento matasse eu já estava morto”. A memória e a documentação são instrumentos valiosos para a preservação do conhecimento e para a instrução continuada de todas as gerações. [Webinsider]

 

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Durval Ferreira, simplesmente!

 

Inauguração do velho novo Cinema Pathé e o resgate da memória

A torre da Capitol Records

 

Milton Banana e a ausência de memória de músicos brasileiros importantes

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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