A preservação de um local de gravação histórico em Nova York é um belo exemplo e que devia ser por nós seguido!
Nem todo mundo gosta ou tem hábito de ler créditos. Tanto assim, que não é incomum ver frequentadores de cinema se levantarem logo depois que o filme acaba. E em se tratando de material fonográfico, é mais ou menos a mesma coisa.
Para aqueles que apreciam saber quem fez e como fez, esta leitura é indispensável, quando ela está disponível nos encartes dos discos. E para aqueles que viveram nas décadas de 50 e 60 do século passado ouvindo jazz, popular ou clássico, o nome “Webster Hall” traz à baila algumas lembranças.
Para o audiófilo em particular, este local tem uma importância histórica inegável. Recentemente, o Webster Hall foi tombado, reformado e preservado, e tem um site com toda a sua programação, inclusive a do estúdio de gravação.
O seu tombamento não aconteceu sem esforço, por parte das várias comunidades nova-iorquinas. Cansadas de perder imóveis e locais históricos, elas se mobilizaram para manter em pé o Webster Hall. Nós aqui deveríamos ter feito o mesmo, antes da derrubada de prédios de valor histórico e cinemas de rua, que desapareceram para sempre, e só estão guardados nas memórias daqueles que os viram.
O Webster Hall me veio à lembrança há alguns dias atrás. Ali foi o local onde os engenheiros da RCA começaram o seu trabalho com gravação estereofônica de música clássica, em 1952-53, dando origem à serie com o nome de “Living Stereo”, já comentada nesta coluna anteriormente. A série foi inicialmente comercializada na forma de fitas magnéticas pré-gravadas e posteriormente em Lps.
No Webster Hall, a RCA fez mais do que gravar peças clássicas: a empresa usou o ambiente para gravar música popular, em uma quantidade enorme de Lps com excelente vendagem na época. A idéia por trás do uso daquele ambiente era de aumentar a sensação de espaço e realismo nas gravações estereofônicas, iniciativa da qual, diga-se de passagem, a RCA não foi a única, mas ganhou com méritos a sua importância na história dos registros fonográficos.
Mas, curiosamente, coube a uma pequena gravadora, usando métodos parecidos, e no mesmo estúdio, a Audio Fidelity, lançar o primeiro disco estereofônico em Lp no mercado fonográfico.
A gravação de música estereofônica tem um histórico interessante
O histórico da gravação de música é longo e complexo, e a busca do som estereofônico ganhou precedência no momento em que técnicos e inventores se deram conta do potencial de “fidelidade” e de “ambiência” que o formato pode dar ao material gravado.
Das primeiras tentativas de se fazer registro em mais de um canal, em disco fonográfico, na década de 1930, passando pelo som magnético multicanal do início da década de 1950, até chegar ao disco Lp estereofônico, em 1957, muita coisa aconteceu.
Os primeiros trabalhos de grande qualidade para gravações estereofônicas foram resultado das pesquisas do engenheiro inglês Alan Blumlein, fazendo uso de apenas dois canais. O seu arranjo de microfones é usado até hoje pelos selos puristas e por entusiastas de áudio.
O problema é que nunca houve, até onde eu conheço esta história, um consenso no número de canais de gravação e reprodução ideais para a música estereofônica. E uma das primeiras barreiras rompidas foi passar de dois para três canais, com o uso de gravadores construídos a partir de filme magnético de 35 mm, para uso inicialmente no cinema. Este sistema foi usado por engenheiros de gravação, como Bob Fine e outros, para a captura de material estereofônico usado para Lps.
A RCA no Webster Hall
A RCA experimentou com dois gravadores mono em síncrono e depois, com o aperfeiçoamento do processo, em uma única máquina em três canais. Embora o uso de um canal central fosse apenas de garantir coerência de fase em discos Lps monaurais, a audição desse material em edições SACD de três canais hoje em dia demonstra conclusivamente que ele se presta ao conjunto da captura e complementa significativamente a formação do palco frontal, quando reproduzido corretamente.
Foi por conta da acústica do local que peças sinfônicas foram gravadas, a partir de 1952, com um mínimo de mixagem. A idéia da gravação “ao vivo”, que é a de posicionar microfones estrategicamente, de maneira a se conseguir uma captura completa e com coerência de fasamento, foi largamente empregada. E, a partir desta idéia, é compreensível alimentar a saída desses microfones em um pré-amplificador de baixo ruído e daí direto para o console de gravação.
Para o ouvinte, isto significa ele ou ela serem capazes de localizar no espaço cada seção de instrumentos com absoluta fidelidade. Este não é senão, no julgamento de muitos, o principal mérito das primeiras gravações estereofônicas de grande qualidade, seja ela feita em dois ou três canais. O método se aplica também ao antigo conceito da eletrônica do fio reto: o sinal passa da fonte ao destino com um mínimo de tratamento elétrico, de maneira que ele nunca seja adulterado.
A RCA pode experimentar do jeito que quis, detentora que era do desenvolvimento e fabricação do seu próprio material de gravação e com a inclusão do melhor de outros fabricantes.
A série Living Stereo não ficou somente nas gravações pioneiras de música clássica. Uma enorme quantidade de artistas populares passou pelo Webster Hall e deixou lá os seus registros. Infelizmente, a quase totalidade deles está indisponível, na forma digital de um CD ou principalmente em SACD. Neste último é possível conseguir muita coisa do catálogo clássico, a preços abordáveis, e a partir dele se consegue perceber toda a qualidade preservada deste material, desde a década de 1950 até o início de 60.
A Audio Fidelity e o Webster Hall
De forma mais corajosa pela iniciativa, o selo criado por Sidney Frey em 1954, se destacou pelo lançamento do primeiro Lp estereofônico em 1957. Muito embora outras empresas tivessem acesso ao torno Scully para corte do acetato em dois canais, Frey foi quem decidiu e fez força para colocar um disco estéreo no comércio.
A qualidade do torno de corte Scully deveu-se à engenhosidade do design: uma cabeça de pré-leitura da fita magnética matriz acionava um ajuste automático de passo variável no torno, evitando assim saturar o sinal gravado no disco. O ajuste permitia também economizar espaço em disco, para os trechos da fita onde a faixa dinâmica era menor.
O disco só foi para as lojas de fato em 1958, e continha os Dukes of Dixieland de um lado e efeitos sonoros de trens do outro. Mais, tarde (1960), o Webster Hall foi usado para gravar várias sessões com os Dukes of Dixieland, ao lado do grande Louis Armstrong:
O álbum se presta muito para se avaliar o esforço da gravadora. Há uma clareza no timbre dos instrumentos e na voz dos solos de Louis Armstrong, sem que perceba um só traço de distorção ou ausência de brilho, para os padrões da época.
Mas, existem também, por outro lado, algumas inconsistências, que serão comentadas mais abaixo. E o que nos permite tirar ilações a este respeito foi o fato de que “Louis and The Dukes of Dixieland” reapareceu na era pós-CD, em um momento em que se julgava que as matrizes estariam perdidas nos arquivos do que sobrou da gravadora.
Primeiramente, esta gravação foi editada no Brasil em CD, pela Som Indústria e Comércio (que havia herdado parte do acervo da Audio Fidelity do Brasil), sob licença da Audio Fidelity Enterprises (dona dos fonogramas) e ficou nas prateleiras das lojas um certo tempo. O fac-símile mostrado acima é da capa deste CD.
Recentemente, todas as sessões, incluídas aquelas de um segundo álbum, foram recuperadas a partir das matrizes originais, e se tornou possível verificar a diferença entre esta edição nacional e as remasterizações das matrizes.
Em primeiro lugar, nota-se que os canais estão trocados na edição brasileira, o que indica que a fita master usada nos CDs desta época foi a mesma que a empresa usou para os Lps. Em seguida, a equalização muda radicalmente e aí não se sabendo qual é a fonte usada nas edições nacionais, não é possível determinar por que.
Sidney Frey também experimentava com o uso de microfones e com a acústica local. Um método desenvolvido por ele foi imodestamente chamado de “cortina de som Frey”. Nos diagramas expostos nas contracapas dos Lps a tal cortina nada mais era do que o arranjo dos músicos em torno dos microfones.
O resultado do uso do Webster Hall nestas sessões da Audio Fidelity mostra uma irregularidade acústica inacreditável, quando se compara uma faixa com outra. Em várias delas, as vozes instrumentais são perfeitamente focadas, porém aliadas a uma agressividade tonal que faz com que os instrumentos soem desequilibrados. Em outras, a situação acústica é muito pior: há uma incoerência na posição dos músicos e com ela aparece uma disparidade na reverberação do som dos instrumentos no estúdio, uns com pouca outros em excesso!
É possível que algumas dessas sessões tivessem sido descartadas, em função deste tipo de problema, mas depois recompiladas para o segundo Lp. Esta hipótese não é totalmente desprovida de base, porque no Lp original todas as faixas têm a mesma coerência acústica, que é correta, e no segundo Lp a reverberação é constante e às vezes até irritante pelo exagero. É como se, durante o registro, o ambiente do Hall não tivesse sido devidamente adaptado ou controlado.
Este excesso de reverberação torna o registro dos instrumentos particularmente confuso, e não deixa de ser um indício de que o nosso bom Sidney Frey não tinha o mesmo domínio de técnica que os engenheiros da RCA, no uso do Webster Hall, em todas as sessões. Para se ter uma idéia comparativa da gravação de jazz corretamente feita no Webster Hall basta ouvir as sessões do quarteto de Benny Goodman (“Together Again”), gravado lá em 1963 pela RCA, e disponível em CD.
Finalmente, a compressão acústica no som dos instrumentos induz o ouvinte, mesmo aqueles com bons sonofletores, a baixar o volume master dos seus amplificadores. É importante notar que nem toda gravação Audio Fidelity soa desta maneira, mas ainda assim ouvir as melhores tomadas da formação original dos Dukes of Dixieland preservadas já é um grande alento.
É também bastante possível que a equalização da fita master do estúdio não tenha sido a mesma usada nos cortes de acetatos dos Lps, coisa que era comum nesta época. Assim, uma boa parte da agressividade do som de alguns instrumentos percebidos nas transcrições em CD pode ser facilmente atribuída à ausência da compensação feita na sala de corte.
Existe, a propósito, um falso mito entre audiófilos, de que o Lp suaviza e enobrece o som de certos instrumentos, mas a verdade é que as gravadores sempre tiveram o saudável hábito de preparar uma fita master para o corte do acetato, e não era incomum se fazer o chamado “test pressing”, e reajustar parâmetros. Em alguns casos, e isso eu vi na minha frente, o engenheiro de corte tocava a matriz de acetato logo após o corte, para ver se estava soando bem ou não. A reprodução é feita com o acetato ainda no torno, e era, em princípio, evitada para que a agulha de reprodução não deformasse ou destruísse os sulcos recém-cortados.
Na disparidade de equalização entre a edição brasileira e a recuperada, para se achar uma causa só mesmo rastreando a origem das matrizes em fita. Mas, a discrepância entre ambas é notória, particularmente na reprodução de baixa freqüência com mais ênfase no CD brasileiro, e que se aproxima menos do som dos Lps originais, que eu ainda guardo na memória.
Mesmo com as limitações citadas acima, ainda assim pode-se inferir que a excelência do esforço da Audio Fidelity só teria sido factível dentro de um espaço como o Webster Hall. Claro que nós que somos ouvintes e fãs só poderíamos ter certeza se estivéssemos estado lá pessoalmente, mas pela audição do material em SACD da RCA citado anteriormente, resta muito pouca dúvida a este respeito!
A herança cultural não tem preço!
Quem me acompanha, sabe que eu venho sistematicamente insistindo na preservação de valores culturais. E este exemplo do Webster Hall não poderia ser mais feliz, e a meu ver, deveria ser seguido fanaticamente.
E se não for de todo possível se preservar os locais, que se preserve pelo menos a obra! A indústria fonográfica, no passado não tão distante assim, enriqueceu proprietários e até artistas, ou seja, tirou do público o que era de seu legítimo direito tirar.
E mesmo que essas gravações nunca tenham caído no domínio público, o mínimo que se espera é uma reedição condizente com as facilidades tecnológicas de hoje, e a preços que qualquer um possa investir sem doer no bolso.
Há uma situação em curso, no mercado norte-americano, já citada nesta coluna, da colocação de música clássica gravada até 1970 à disposição do público, sem cobrança de direitos autorais. Foi isto, em última análise, o que possibilitou a pequenos selos, como o High Definition Tape Transfers, criar material novo para revenda.
Não há indícios de que isso vá se estender ao mercado fonográfico como um todo. No tocante ao jazz, muita coisa boa foi registrada entre 1940 e 1970, mas que nunca viu a luz do dia.
O risco maior é a ação implacável do tempo sobre todo este material. E se no cinema acabou-se por se deflagrar um movimento preservacionista agressivo, para a indústria fonográfica não poderia ser diferente.
Para a preservação do cinema, métodos novos mais precisos vêm aparecendo e reaplicados ao material preservado, e o resultado está aí, na mídia digital moderna. Porque é que para fonogramas não faz o mesmo?
Os conceitos de preservação são os mesmos. E com os programas hoje disponíveis, até mesmo para computadores domésticos, não há porque não fazê-los.
Existem notícias de que gravações estereofônicas em filme 35 mm, prática usada pelos selos Mercury, Command, Everest, etc., estavam se deteriorando, devido à sua base de acetato, e quem já ouviu algumas Webinsider no Twitter.
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
3 respostas
Oi, Rogério,
Isso é o tipo da coisa cujo maior exemplo eu vivi quanto morei na Europa, onde o antigo convive pacificamente do lado do novo, porque as pessoas não querem perder a memória!
Eu sei que a minha voz é minúscula e de pouco alcance neste universo, mas porque não fazê-lo? A gente nunca sabe quem um dia vai ler o que a gente escreve.
Enquanto eu puder e tiver espaço, eu pretendo voltar ao assunto preservação sempre que possível.
Caro Paulo
Depois de ler essa matéria pude concluir que nós estamos envelhecendo, e as novas tecnologias literalmente chegam com seus poderosos motores de 8, 10, 12 ou mais cilindros, querendo atropelar o que resta de milhares de registros sonoros análogos tão importantes.
Tenho conciência que independente do lançamento de novos equipamentos digitais que as empresas ainda farão, jamais chegarão ao nível do que tinhamos do melhor do analógico.
Digo isso numa referência de um passado não muito distante em que trabalhava com a nata dos equipamentos de gravação analógico, quero citar um caso em especial, o gravador de fita magnética de 1 pol. da Studer modelo A800. Sabe Paulo é uma pena que essa moçada que vem chegando agora, e bradando aos quatro cantos sobre a “qualidade” de um POTOOLS HD; não terão a possibilidade de ter contato ou a verdadeira “referência” do audio analógico com as nuances e profundidade dos graves, e agudos vivos e brilhantes dos toca discos de vinil, ou com amplificadores com sistemas hibridos (transistor/valvula).
Ééé Paulo é uma pena, pois nos dias de hoje fico refletindo sobre o que será dos grandes grupos musicais, bandas, cantores/as de grande sucesso e repercução no futuro, com isso que “dizem” ser a nova geração do audio.
Sei que me chamarão de saudosista, mas eu nasci cresci e vivenciei na era do audio “PURO” analógico.
E que desculpem os que defendem as novas tecnologias, mas chegará o dia (espero estar vivo até lá) em que alguêm, em qualquer equipamento atual, ou até que vier a ser lançado em sistema de audio digital, consiga gravar, e reproduzir com toda a perfeição, profundidade e expectro sonoro do analógico.
Um abraço
Ótimo artigo.
Bem completo, pena que prservação ainda é algo que aqui em “terras brasilis” ainda é artigo raro.
Mas vale a tentativa.
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