Você imagina que H. G. Wells, autor do clássico A guerra dos mundos, possa ter tido preocupações mesquinhas como pessoas mexendo em seus escritos? Difícil, mas provável. Foi ele quem disse que “nenhuma paixão no mundo é comparável à paixão por alterar os textos de outra pessoa”. Até parece que ele era publicitário e estava fazendo piada sobre o cliente durante um happy hour com o pessoal da agência.
Esse vício incontrolável por mexer no texto alheio faz parte das características básicas da maior parte dos clientes. Eles não resistem a tirar ou colocar um adjetivo; trocar por um sinônimo pobre a palavra perfeita que você demorou horas procurando; inserir um clichê no texto que você lapidou com todo o cuidado.
Peraí: texto alheio? Mas o texto é do cliente!
Bem, a gente até entende que Wells tenha se sentido ofendido quando algum editor quis mexer em suas histórias. Afinal, a obra de um escritor é autoral, a razão dela se encerra no próprio texto. Diferente de um anúncio publicitário, onde o texto é parte de um todo, e a razão desse todo não está em si mesmo, mas nos objetivos pré–determinados que deve ajudar a alcançar.
Por mais que o seu nome, redator, esteja nos melhores anuários de criação, a grande maioria dos leitores do texto que você escreveu para um anúncio nunca vai saber que o autor daquela brilhante sacada é você. Sua assinatura não vai aparecer. No máximo, a assinatura da agência. Mas o grande “autor” daquele texto é o anunciante. É quase como se o redator fosse um ghost writer. O cliente paga para você escrever o que ele vai dizer ao consumidor.
Essa é a realidade, às vezes meio dura de engolir. Os redatores publicitários têm uma relação umbilical com seus textos. Normalmente, porque são apaixonados pelo que fazem. Algumas vezes, porque o ego se materializa na escrita. Não importa o motivo dessa relação. Qualquer pitaco de cliente na cria dos redatores dói como ataque à integridade de um rebento.
É preciso reconhecer que, algumas vezes, o cliente tem razão. Em outras, porém, os pitacos podem parecer pura implicância ou um desejo irresistível de dar o toquezinho dele no texto. Quando esses palpites não agregam nada e até prejudicam a peça, é preciso tentar contê–los. Essa é uma tarefa do atendimento no momento da apresentação, mas também do redator ao embasar e defender sua criação.
O cliente precisa confiar nos criativos que trabalham para a sua conta. E confiança se conquista com embasamento técnico, quando a gente mostra que sabe o que está fazendo. O perfil do criativo pirado, viajandão, que defende qualquer idéia com expressões como “é uma grande sacada, você não tá vendo?”, está em extinção. É preciso compreender o negócio do cliente, ter noções de marketing e, principalmente, entender tudo da matéria–prima das suas criações: a língua.
Bons redatores sabem que se aprende a escrever lendo. Lendo de tudo, de bula de remédio a tratados filosóficos. É nas leituras que nada têm a ver com publicidade que aparecem as técnicas que utilizamos no texto publicitário. A sacadinha genial que você colocou no anúncio provavelmente tem nome, sobrenome e história de família – na literatura, na poética, na semiótica. Conhecer essa “genealogia” das técnicas de redação publicitária faz toda a diferença na hora de elaborar – e defender – um texto.
A defesa criativa com embasamento é sólida e tem muito mais credibilidade. Prova que você sabe do que está falando, que não se trata apenas de uma piração de criativo. Por exemplo: quando se defende um título explicando que foi usada uma metonímia e que essa figura de retórica é ideal naquele caso, porque mostra da melhor maneira o todo através de uma de suas partes (e um anúncio normalmente não tem espaço para apresentar o todo, só partes), entende–se que o criativo tem o conhecimento e a técnica necessários para realizar seu trabalho.
Mas a gente sabe que, na prática, a teoria é outra. Em alguns casos, mesmo que você tenha o mais sólido dos argumentos, seu texto vai ser impiedosamente detonado. Nesta situação, relaxe e faça como os budistas: exercite o desapego.[Webinsider]
Adriana Baggio
Adriana Baggio (adriana@caixadetexto.com) é é redatora freelancer, faz doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP e ensina em cursos universitários de Comunicação Social.
5 respostas
Apego ao texto. Isso vem da relação que a pessoa tem com a escrita. Geralmente redatores publicitários, não são só redatores publicitários, são romancistas, poetas, cronistas…Enfim, o fato é que muitas das vezes você transfere o tipo de relação que você tem com o seu texto particular para o texto profissional. E eis que surge o apego. Falo por mim, que escrevo poesias e não sofro interferência de ninguém, nem/principalmente de editor, mas que padeço quando vou para a publicidade, pois tenho de me soltar para ouvir, sem ranço, o que os outros tem a dizer sobre o meu texto. E nem me refiro ao cliente. As pitadas começam mais perto, com o diretor de arte. Um abraço.
Eu sempre deixei mexer nos meus textos, com todo desapego. Porém, sempre deixei de fazer certas alterações que considero desnecessárias ou prejudiciais aos textos.
Afinal, a quantidade de alterações nos textos é inversamente proporcional à qualidade do briefing. Dificilmente textos criados em briefings bem feitos sofrem alterações severas.
Abraço!
“quando se defende um título explicando que foi usada uma metonímia e que essa figura de retórica é ideal naquele caso(…)”.
Juro, já tentei defender vários assim, mas infelizmente, o atendimento não entende nada do que se quer dizer. Pior é que você ainda sai de nerd-que-se-acha-o-BAM, e ainda te olham com cara de gramática ambulante. Não adianta: atendimento não entende e o cliente também não. O negócio, como falaram por aí, é mesmo praticar o desapego e guardar tua sacada, porque um dia, certeza, ela vai ser usada.
O texto aborda alguns fatores importantes da vida de um redator publicitário. Pirar por pirar não rola, se a sacada é genial, têm – se que fazer jus dela, afinal, qdo alguém questiona ou dá pitaco no seu texto, argumentos vc tem que possuir para rebater o ataque; mas se a pessoa tem razão, vale utilizar-se tão somente da humildade e assim, colocar na balança os pós e os contras daqula suposta alteraçaõ.Vale a pena deixar o ego de lado!!!Vc ganha não só o cliente como aquele velho e indispensável traquejo!!!
Adriana,
Parei em alguns momentos para pensar até onde vai a interferência do cliente em um texto publicitário. O seu artigo me respondeu muito bem essa questão. Também deparo-me com problema semelhante quando faço preparação e revisão de textos para serem impressos. A interrelação entre domínio autoral, técnica na utilização da linguagem, objetivo do discurso e abertura para um diálogo construtivo são ingredientes indispensáveis. E, como vc bem disse, é uma boa oportunidade para o exercício da quebra da vaidade egóica.
Abraço
Gal Vieira