É impossível, para quem gosta de música e aprecia músicos eruditos que influenciaram na evolução musical de um país em algum momento, deixar passar despercebido o aniversário de 150 anos do nascimento de Ernesto Nazareth.
Embora notoriamente popular, Nazareth era um estudioso e, portanto, erudito no sentido do seu conhecimento musical e dos gêneros que o precederam. Junto com Chiquinha Gonzaga, ele compôs peças que eles mesmos classificaram como “tango brasileiro”. Historiadores e scholars chamam a atenção para a influência do lundu na obra do compositor, espécie de dança trazida pelos escravos negros que colonizaram o país.
Ernesto Nazareth compôs uma “polca-lundú” aos 14 anos, por consequência de seus estudos precoces com o professor de piano custeado pelo pai.
A obra de Ernesto Nazareth está muito bem preservada, e a sua memória estudada por pessoas dedicadas. Aqui eu me resguardo da tarefa inútil de fazer este retrospecto, e sugiro ao leitor o exame do trabalho de pesquisa de Luiz Antonio de Almeida, cuja entrevista pode ser lida em um site dedicado aos chorinhos. Nela são traçados os perfis do compositor e do músico, em datas diferentes e com um enfoque bastante inteligente.
Tudo indica que o maior acervo sobre Ernesto Nazareth está reunido no site do Instituto Moreira Salles, coletado pelo músico Alexandre Dias e exposto para a comemoração dos 150 anos do nascimento de Ernesto Nazareth.
E uma leitura da melhor qualidade, sintetizando o compositor e a evolução de gêneros e estilos musicais da época pode ser vista em um blog do escritor Zemaria Pinto. No texto, o leitor tem uma ideia bastante precisa da influência da música europeia e dos ritmos africanos que se tornaram uma espécie de dança sincrética popular, conhecida como maxixe, muito antes da música carioca oficial ser rotulada de “samba”.
Também o choro se origina de enorme influência destas danças, mas, ao contrário do blues precursor do jazz, e apesar do nome, é um gênero adaptativo alegre e de ritmo insinuante, muito bem preservado até os dias de hoje.
Tanto a música de Ernesto Nazareth quanto de Chiquinha Gonzaga se prestam sobremaneira à execução do choro moderno, com um número maior de instrumentos. Neste particular, a produção de música gravada é bastante ampla, e eu guardo até hoje com muito carinho uma produção independente do gênero: trata-se da gravação do pianista Antonio Adolfo alternando músicas destes dois compositores.
O disco foi lançado e vendido em bancas de jornal, pelo selo Artezanal, e com o título “Os Pianeiros – Antonio Adolfo abraça Ernesto Nazareth”. Posteriormente, foi relançado em CD pelo selo Imagem, sob licença, e com o título “Antonio Adolfo abraça Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga”, cuja capa pode ser vista abaixo:
A gravação foi feita nos estúdios da falecida Polygram da Barra da Tijuca, se a memória não me trai. E conta com uma plêiade de músicos de peso, entre eles o notável Paulo Moura. A lista dos músicos mais detalhada está exposta em página da internet, e o encarte com a participação e créditos mostrado abaixo:
Chiquinha Gonzaga, por seu turno, mulher de conquistas extraordinárias em sua época, tem também um enorme acervo de partituras em domínio público, que merece ser visitado e estudado.
É reconfortante saber que a memória da música brasileira da virada do século 19 para o século 20 está tão bem documentada. Creio eu que a tarefa de ensinar a evolução musical brasileira caberia ao ensino básico em todas as escolas do país, mas a decisão política de tornar isto uma realidade parece não ter ressonância nas esferas decisórias, e nem parece que terá tão cedo. Que pena! [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
5 respostas
Boa tarde!
Fico muito feliz em abrir uma página da internet com um conteúdo tão maravilhoso como este, tive o prazer de construir minha manografia, na época falando de Chiquinha Gonzaga e
hoje ajudo um amigo fornecendo dados para a construção do seu trabalho a respeito de Ernesto de Nazarteh.
Parabéns pela Postagem Caro Paulo Roberto Elias !
Ah se muitos soubessem, como é rica a nossa história musical !
Andre Felipe,
É com prazer que respondo a leitores como você. Não há perda de tempo nenhuma nisto.
Conheci o trabalho do Neschling, mas não o acompanhei por muito. Sei do esforço didático no qual se envolveu, o que foi muito meritório. Se a memória não me trai, foram feitas gravações para o selo BIS, mas posso estar enganado.
Veja bem: os grandes estúdios desapareceram, a maioria fechou as portas, para viver de selo. Dois casos recentes, um da Som Livre, onde estive algumas vezes, e outro, de importância histórica, o da Musidisc, cujo local está à venda, mas devia ser tombado, se é que isto é possível ou de interesse do filho do antigo dono (Nilo Sergio). Há um projeto de digitalização do acervo, mas o desperdício do local é uma tristeza!
Mesmo com os estúdios e a indústria fonográfica, solapadas deste jeito, a promoção de mídia continua a mesma: interesse cultural ou de preservação = zero!
Assim, só mesmo com a iniciativa institucional, seja nas organizações públicas (OSB, por exemplo) seja nas patrocinadas.
O problema central é sempre divulgação, por um lado, e alienação educacional do outro. E esta é, infelizmente, uma área da qual eu entendo alguma coisa. Não vi, mas um dia espero ainda estar vivo para ver, os nossos sistemas e educadores darem algum valor para o ensino básico de música nas escolas. Se fizerem isso, muita gente jovem vai “descobrir” que não é só de rebolado em cima de algum palco que vive a música popular e erudita brasileiras.
Olá novamente,
Obrigado Paulo Elias pela gentileza em responder. Claro que sei de seu conhecimento de MPB e dos clássicos brasileiros, como mostrado em sua outra crônica onde você fala dos nossos músicos exilados.
Houve um quase início de gravações importantes quando John Neschling estava à frente da OSESP, mas, por razões políticas ele não manda mais lá. Ele chegou a gravar algumas obras em vídeo, como o dvd Samba, totalmente sinfônico, e tinha a intenção de ter concertos anuais de fechamento de ano, como fazem as grandes orquestras européias. Se não assistiu aconselho-o.
Felizmente Neschling agora rege o Municipal de São Paulo. Espero que esteja inspirado e continue a fazer essas gravações. Há outros bons maestros, mas nem sempre podem fazer o que desejam. O estado não incentiva. Em outros países, orquestras são empresas privadas lucrativas apoiadas por bom marketing. Este é o problema, tanto para clássicos como para o popular, investir em marketing e promover o ótimo, ao invés de promover o medíocre, como acontece aqui.
Olá, André Felipe,
Obrigado pelos seus comentários, e agradeço a sua deferência ao meu trabalho. Garanto a você que estou ciente das dificuldades que os nossos artistas e compositores enfrentam na produção de música de bom nível neste país.
Por acaso, conheci Leila Pinheiro, por conta de uma amizade em comum com a Claudia Jimenez, esta última minha vizinha de porta do lado por muitos anos. A Claudia sugeriu naquela época, sabendo que eu era muito ligado em bossa nova, que eu acompanhasse o trabalho da Leila, mas ficou na sugestão, infelizmente.
Só para você ver como esta coisa é complicada. É claro que eu teria muito prazer em acompanhar ou divulgar trabalhos de muita gente que está por aí, mas é preciso um contato que não existe mais há anos.
Concordo contigo totalmente. É um vexame, por exemplo, as nossas entidades de mídia sem fim lucrativo, como, por exemplo, a TV Brasil, não se lançarem em projetos ousados sobre o erudito brasileiro, que muita gente não conhece, mas fazendo este trabalho com técnicas e métodos de alto nível, e oferecendo depois em mídia a quem quiser ter em casa.
Sobre Villa Lobos, existe um trabalho da Biscoito Fino, com 3 discos Blu-Ray, com o Quarteto Radamés Gnatalli, em gravações “ao vivo” (sem edição), dos quartetos de corda do Villa Lobos. Você pode acessar o YouTube e ver alguns trechos (http://www.youtube.com/watch?v=3_Zut7GPnXg).
A gravação foi feita aqui no Rio. Eu não tenho os discos, mas vi na casa de um amigo. Achei a qualidade de vídeo apenas razoável (o meu amigo não gostou), mas, bolas, já é um começo, principalmente porque o quarteto é excelente.
O samba, o lundu, entre outros ritmos foram durante décadas considerados música menor e sem valor, fruto do preconceito da “elite” que queria mesmo é ser francesa. Chiquinha e Nazareth, como outros que vieram depois, vide Villa Lobos com suas cirandas, emboladas e maracatus souberam juntar, num “sincretismo” musical todas essas manifestações. É uma pena que esse legado artístico seja tão mal divulgado e conhecido e você, Paulo Elias, pode fazer parte desse movimento de divulgação com seus textos excelentes.
É uma pena que não tenhamos gravações em HD das execuções dessas obras,tanto em áudio quanto em vídeo. Talvez tenhamos gravações em HD de grupos sertanojos e só.
Recentemente Leila Pinheiro, uma das poucas pianistas-cantoras brasileiras, declarou o quão difícil está para ela (como para outros ), que tentam ser fiéis a um repertório de qualidade, viverem de discos e shows no Brasil. É uma lástima a degradação cultural por que passamos. Abraços.