Jogos que mudaram o mundo nos últimos 100 anos – parte I

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Com Luciene Santos.

O filme 42 – A história de uma lenda – reascende o debate sobre a importância dos jogos (reais, virtuais e newsgames) como plataformas das grandes transformações culturais, sociais e políticas nos últimos 100 anos. E melhor, de forma pacífica e sem a necessidade do uso de forças beligerantes. Na ficção baseada na vida real, o jogador Jackie Robinson deu uma enorme contribuição contra o preconceito racial e mudou para sempre o mundo, começando pelos jogos de beisebol nos Estados Unidos.

Em 1946, Jackie foi o primeiro jogador americano a quebrar a linha racial da Liga Principal de Beisebol. Antes dele, negros não podiam jogar ao lado dos brancos. Carregando o número 42 às costas, Jackie deixou o seu talento no campo falar mais alto. Em 1962 entrou para o hall da fama como um dos melhores do beisebol americano. No filme 42, a história de Jackie constata como os jogos podem ser ferramentas úteis para promover as grandes transformações que o mundo precisa.

Jogos reais que transformam

Sempre que se aproximam as olimpíadas, a mídia traz invariavelmente à tona o histórico dia em que o americano Jesse Owen desafiou o ditador alemão Adolfo Hitler, arauto da suposta superioridade racial ariana. Ao vencer a prova dos 100 metros nos Jogos Olímpicos de 1936, o velocista Jesse Owen entrou para a história não tanto como o homem mais veloz do mundo da época, mas por ter colocado em xeque o mito de superioridade racial alemã.

Ao final dos Jogos de Berlim, Owen ostentaria no peito outras três medalhas de ouro, derrubando quase tudo que aquela falsa premissa representava. Se o racismo ainda perdura 60 anos após aquele ato político dentro de uma simples pista de corrida, a mídia não nos deixa esquecer que aquilo tudo serviu de base para criar as ações governamentais que não encaram mais os negros como pessoas inferiores, mas como cidadãos com os mesmos direitos e deveres de todos.

Ato Black Power em 1998

A imagem mais marcante das Olimpíadas de 1968 no México, que se tornou um ícone dos anos 1960, foi proporcionada pelos dois atletas negros norte-americanos Tommie Smith e John Carlo, ouro e bronze nos 200 metros rasos. Após receberem suas medalhas no pódio, levantaram seus braços esticados com as mãos cobertas por luvas negras e punhos fechados (saudação black power do partido revolucionário negro dos Panteras Negras).

O ato era em protesto à segregação racial e apoio aos movimentos negros em seu país, e abaixaram a cabeça enquanto o hino dos Estados Unidos tocava. Após seu ato, transmitido ao vivo pela TV para o mundo todo, os dois foram expulsos da delegação americana e da vila olímpica. O que pouca gente sabe é que o segundo colocado na prova, o branco australiano Peter Norman, apoiou o gesto de ambos, carregando consigo no pódio uma insígnia do Olympic Project for Human Rights, organização que denunciava a face vil do racismo.

Foi também Norman quem sugeriu que Smith e Carlos dividissem o mesmo par de luvas, o único disponível na ocasião, razão pela qual o primeiro ergue o braço direito e o segundo, o esquerdo. O australiano foi muito criticado em seu país, onde ainda ocorria legalmente a segregação da população aborígene, medida a qual ele se opunha publicamente.

O dia que Pelé parou uma guerra

Edson Arantes do Nascimento, que ganhou fama e respeito como Pelé, é uma das personalidades mais conhecidas em todo o mundo. Eleito o Atleta do Século XX, recebeu merecidas homenagens pelos quatro cantos do planeta. Durante a carreira, marcou 1281 gols, façanha jamais alcançada por outro jogador. Campeão do mundo aos 17 anos, colecionou quase todos os títulos possíveis a um atleta profissional de futebol.

Mas, uma de suas façanhas mais extraordinárias é pouco conhecida: sua fama e prestígio chegaram a tal ponto que foi capaz de parar uma guerra. O fato inusitado ocorreu durante uma excursão do Santos à África, em 1969. O antigo Congo Belga vivia uma sangrenta guerra civil. Logo que o Santos de Pelé chegou ao país, onde disputaria apenas uma partida amistosa, o clube foi informado do conflito e o consequente cancelamento do jogo.

A notícia de que a população não poderia ver o rei do futebol jogar causou uma grande comoção. Segundo o que foi publicado na época, as forças em conflito fizeram um acordo e a guerra parou para que o jogo fosse realizado. O Santos acabou realizando duas partidas na região e a paz teria perdurado até o retorno da delegação brasileira.   Agora, a história de que ‘nenhum tiro foi disparado’ enquanto o Santos esteve no Congo pode muito bem entrar para a galeria do folclore do futebol brasileiro.

Assim que a delegação, escoltada até o aeroporto, deixou o país, a guerra recomeçou…

A luta do século

Mais do que uma simples luta, o famoso duelo entre George Foreman e Muhammad Ali ficou marcado muito mais por questões raciais, religiosas, sociais e políticas. A tão aguardada luta entre as duas lendas do boxe mundial aconteceu no dia 30 de outubro de 1974, em Kinshasa, no Zaire (atual Congo), bem longe da reluzente Las Vegas. Naquela época, além da luta pelos direitos civis, ainda havia uma grande tensão racial nos Estados Unidos, com forte impacto na área política.

ali_foreman

Essa luta não entrou para a história apenas como a luta do século por causa do duelo em si, mas pelo cenário político efervescente fora do ringue. Em cima dele, Ali, um negro, que por ter se convertido ao Islamismo, optou por não lutar na Guerra do Vietnã. Na ocasião, Foreman, aos 23 anos, era o atual campeão dos pesos-pesados, após ter vencido o também lendário Joe Frazier.

Foreman foi o mais jovem lutador a tornar-se campeão mundial e tinha em seu cartel a incrível marca de 40 vitórias, sendo 37 por nocaute. Era considerado um fenômeno do boxe. Do outro lado, a lenda Muhammad Ali, já aos 32 anos, estava voltando aos ringues. Em 1967, Ali perdeu o cinturão por ter se recusado a combater no Vietnã e foi suspenso por três anos e meio. Após voltar aos ringues, essa seria a sua terceira luta. Como Ali não havia empolgado o público nas suas duas primeiras, o duelo foi encarado na época mais como uma jogada de marketing.

Esse fato teria empanado um pouco a questão política que envolvia a luta. No oitavo round, Ali aproveitou um descuido de Foreman e acertou uma sequência de três golpes impressionantes e Foreman desabou no ringue. Naquele  momento, o mundo conhecia o maior lutador de boxe de todos os tempos. Mais do que isso, a luta que foi disputada fora dos Estados Unidos deixou marcas indeléveis no direito civil americano e um forte legado social e político para as gerações futuras em todo o mundo.

Quando a Unicef  joga junto

Em um evento realizado em 2012, o clube espanhol do Barcelona e a UNICEF reafirmaram o compromisso de trabalhar em conjunto em prol de milhões de crianças através do esporte e da educação. Desde 2006, o Barcelona mantém uma parceria com a UNICEF para quem reverte anualmente 1,5 milhão de euros para o desenvolvimento de projetos em nome de crianças de todo o mundo. Até então, era a primeira vez na história do futebol mundial que um clube patrocinava uma organização, e não o contrário.

Também foi a primeira vez desde a criação do Barcelona que o nome de outra organização vinha impresso na frente da camisa do clube catalão. A partir de então, outras associações esportivas aderiram à parceria. Tal iniciativa revela como os jogos reais contribuem para o desenvolvimento cultural, social e político em qualquer sociedade. A questão é apresentar projetos sérios que visem melhorar a relação social e política entre cidadãos, empresas privadas, associações de classe, ONGs e governos.

Uma força da Fondation Benetton

Em recente publicação no jornal italiano Il Gazzetino, a Fondation Benetton Studi Ricerche lançou um concurso para premiar dissertações acadêmicas com temas ligados a jogos. A iniciativa visa mudar um velho olhar da sociedade em relação aos videogames: aquele que relega ainda qualquer expressão lúdica a coisas consideradas não sérias, esquecendo-se da importância do papel que o ‘passatempo’, a ‘festa’, o ‘esporte’, o ‘tempo livre’, sempre tiveram em qualquer lugar da nossa sociedade.

Em parceria com a Viella Libreria Editrice e a revista Ludica, a fundação vai distribuir nove bolsas de estudo no valor de 2.500 euros, cada uma, a universitários italianos que produzirem pesquisas sobre os seguintes temas: o jogo e a história dos jogos até os esportes contemporâneos. A proposta da fundação Benetton revela a urgência de a sociedade passar a encarar os jogos para muito além de sua condição básica de mera recreação e entretenimento. Afinal, existe a outra face ainda ‘escondida’ dos games que todos precisam conhecer.

Na segunda parte desse artigo falamos dos jogos virtuais e do impacto desses na sociedade. [Webinsider]

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Geraldo Seabra, (@newsgames) jornalista e professor, mestre em estudos midiáticos e tecnologia, e especialista em informação visual e em games como informação e notícia. É editor e produtor do Blog dos NewsGames.

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