Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on telegram
Share on pocket

No poema Eu, Etiqueta, Carlos Drummond de Andrade mostrava sua perplexidade com a publicidade em nossos corpos por intermédio das roupas que vestimos:

Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome… estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.

Escrito na década de 1970 mas publicado no livro O Corpo (Record, 1984), Eu, Etiqueta é uma crítica inteligente ao que hoje em dia chamamos de coisificação, ou seja, a transformação do ser em objeto.

Naomi Klein já tinha cantado a pedra já há algum tempo no clássico Sem Logo, ao mostrar o caso de uma escola onde um aluno foi suspenso por usar uma camiseta com a marca do refrigerante concorrente da marca que patrocinava a instituição de ensino.

E antes dela, muito antes dela, autores de ficção científica famosos (lá fora, claro, e que precisam ser publicados no Brasil) como Frederik Pohl e C.M.Kornbluth, autores do classicíssimo The Space Merchants, um livro que é uma sátira ácida ao mundo da publicidade e um toque sobre um mundo cada vez mais dependente das marcas, e que não se reconhece sem marcas que o balizem (a coisa chega a um paroxismo de ridículo na cena em que o protagonista, um superpublicitário do futuro, entra num sebo com uma namorada e, enquanto folheia anúncios clássicos de revistas antigas, surpreende-se ao ver a garota folhear um tal de Moby Dick, livro no qual ele nunca havia ouvido falar).

São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permanência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.

O tempo passa (e cada vez mais rápido – every year is getting shorter, como na canção de Roger Waters), e o que era preocupação e crítica acaba sendo retrabalhado, retransformado nesta geléia geral pós-moderna (no tempo de Drummond se dizia ultramoderna) e volta sob outra forma. Mais divertida e sincronizada com nosso tempo.

O melhor exemplo disso agora é a nova campanha viral da Coca Zero. Com a campanha da Língua Patrocinada, a Coca-Cola tirou a propaganda da roupa e pôs no corpo.

O princípio é simples: fure sua língua com um piercing que é uma propaganda da Coca Zero, deixe-se fotografar e pronto! A Coca-Cola assumiu tão completamente o marketing viral nessa campanha que colocou no site de fotos Picasa os registros com as fotos das pessoas que entraram de cabeça (ou de língua, para sermos exatos) na campanha.

A criação da campanha é da Espalhe, a primeira agência de marketing de guerrilha no Brasil, e que fez um grande trabalho de divulgação enviando kits para formadores de opinião e deixando que eles postassem em seus sites e blogs a curiosa proposta de propaganda-piercing.

Em tempos de crise na América Latina e desilusão generalizada com a política, em que as camisetas de Che Guevara viraram marca (e são retransformadas com a cara do Seu Madruga, por exemplo) uma questão interessante se impõe neste momento: ainda que o método (ou a tática) da campanha seja brilhante (porque eu achei brilhante), será que não estamos finalmente nos rendendo a uma coisificação?

Será que, sem querer, não estamos entrando de cabeça no olho do furacão do capitalismo selvagem disfarçado de coisa-bacana-e-divertida-que-não-faz-mal-nenhum? Absolutamente nada contra a Espalhe e contra o marketing de guerrilha (ainda que eu ache essa expressão uma contradição em termos, mas é a pós-modernidade), mas fecho com Drummond:

Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comparo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou – vê lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender

Dica: ouçam aqui o poema na íntegra, lido pelo saudoso Paulo Autran. [Webinsider]

.

Avatar de Fábio Fernandes

Fábio Fernandes é jornalista, tradutor e escritor. Na PUC-SP, é responsável pelo grupo de pesquisa Observatório do Futuro, que estuda narrativas de ficção científica e a forma como elas interpretam e são interpretadas pelo campo do real.

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on telegram
Share on pocket

6 respostas

  1. Salve, Alexandre! Tudo bem?

    Não estou encanado com o marketing de guerrilha não – aliás, se você reler o artigo, vai perceber que eu achei essa estratégia brilhante.
    Só estou tentando entender como funciona o processo de aceitação de uma marca – e do próprio conceito de guerrilha, que definitivamente não possui mais o mesmo sentido de 30 ou 40 anos atrás. A guerrilha não é mais revolucionária, mas foi assimilada pelo sistema. Ela é criativa pra chuchu, mas foi assimilada. E não tem como voltar atrás. 😉

  2. Fábio, desencana! O marketing de guerrilha está aí e não tem como voltar atrás. Ainda bem. Ou você ainda prefere a propaganda tradicional, que em 2008 continua sendo feita como se ainda estivéssemos no século 20 (veja as campanhas para pastas de dentes, por exemplo)?

  3. Nicholas, você sabe que ontem mesmo me recomendaram esse livro? Vou correr atrás – parece mesmo ter tudo a ver com o que comentamos, e com o que Frederik Pohl e Naomi Klein já disseram antes. Obrigado pela dica!

  4. Um livro bastante interessante que trata das marcar invadindo a vida das pessoas é Eu S/A, de Max Barry. É um romance que apresente um futuro, plausível ao meu ver, em que o governo perdeu seu poder e o mundo é gerido pelas empresas agrupadas em grandes corporações. O nível de invasão retratado na vida das pessoas é tão grande que ele indica que um funcionário da Coca Cola que for pego bebendo Guaraná Antártica pode ser demitido sem maiores problemas. É uma leitura fácil e agradável.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *