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Existem artistas que ficam eternamente associados com a arte que representam. Quem pensa ou fala em Billie Holiday se lembra imediatamente de uma das maiores cantoras de jazz de todos os tempos, e o seu nome ligado ao Blues moderno.

A sua discografia, entretanto, é relativamente pequena, e a explicação é muito simples: Billie Holiday morreu aos 44 anos, quando então as suas sessões em estúdios já andavam cada vez mais raras.

Com forte influência vocal de Louis Armstrong, Billie adotou uma forma de cantar o Blues de uma maneira singular: seu fraseado é lento, cada palavra da letra pronunciada com grande sofisticação e até de maneira afetada, mas acima de tudo, com grande dose de romantismo, ao invés de embarcar na choradeira de suas predecessoras, típicas do gênero. A influência de Armstrong é possível ser percebida pela dissociação da linha melódica do andamento natural da música.

Em várias de suas interpretações existe um tom melancólico ocasional, que caracteriza o amor não correspondido, estilo este presente no repertório de outras cantoras célebres, como, por exemplo, Ella Fitzgerald. A influência de Holiday em outras cantoras existe até hoje e basta que o ouvinte conheça um pouco do que está preservado em gravações, para se dar conta disso.

 Vida difícil

O que distingue Billie Holiday de todas as outras grandes cantoras de jazz da época é o seu intenso sofrimento e vida pessoal conturbada, a partir de tenra idade. Embora muito do que se relatou por terceiros e ela própria em sua autobiografia esteja amplamente descrito, uma grande parte deste histórico é ainda obscura.

Holiday é filha de pai músico que nunca se casou com sua mãe, e só foi reconhecer a sua paternidade quando a cantora já estava no início do sucesso de sua carreira.

Constantemente negligenciada pela mãe, Holiday foi vítima de estupro aos 11 anos de idade por um vizinho. Cerca de três anos mais tarde, sua mãe se tornou prostituta no Harlem (N.Y.) e ela terminou por acompanha-la, sendo assim presa por prostituição, mas libertada pouco depois.

Em anos subsequentes Billie Holiday começou a cantar em casas noturnas do Harlem, e logo foi descoberta por John Hammond, produtor de discos da Columbia. Depois de passar como coadjuvante de várias orquestras em selos subsidiários, Holiday foi contratada pela Decca e depois pela Clef Records de Norman Granz, que se tornaria mais tarde Verve Records. Suas últimas sessões foram feitas na Columbia. Em seu último disco, intitulado Last Recordings (M-G-M), ela entra visivelmente embriagada no estúdio. A voz está trôpega, e o disco difícil de ouvir, mesmo pelo mais benevolente dos ouvintes. Um fim triste, para uma cantora que marcou a sua época e influenciou gerações de seus pares.

Em sua fase de maturidade, as constantes brigas e disputas com a mãe fez a cantora cair na realidade da miséria financeira. Foi também nesta fase que ela escreve “God Bless The Child”, com a ajuda do pianista Arthur Herzog, Jr. Na letra, Holiday fala uma grande verdade: a que quando se tem dinheiro, os amigos rondam a sua porta, mas se o seu dinheiro acaba, todos eles se vão. Na verdade, a parte central da música faz referência aos pais que não dão suporte financeiro aos filhos, do qual Holiday foi vítima.

 O trauma racial no cinema

No filme de 1947 New Orleans, Billie Holiday faz o papel de uma empregada doméstica. Segundo um suposto depoimento de Louis Armstrong, que também participou do filme, a cantora teria ficado furiosa com a pouca importância e a subserviência da personagem.

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Segundo algumas fontes o filme era parar ser uma biografia do trompetista Louis Armstrong, em projeto da RKO com direção de Orson Welles, mas terminou em uma produção independente, distribuída pela United Artists. O roteiro é medíocre, assim como o filme. A trama tenta mostrar como o jazz teria sido influenciado pela cultura europeia e como depois os músicos emigraram para outras cidades, depois que Storyville, o bairro de prostituição e cabarés, foi fechado.

Historicamente, Hollywood maltratou músicos e compositores, com histórias fantasiosas e melodramáticas a respeito de suas vidas. Em “Lady Sings The Blues” (no Brasil, “O Ocaso De Uma Estrela”), drama criado para “homenagear” Billie Holiday, o que mais se vê são detalhes sórdidos sobre supostos eventos da vida da artista. Isso sem falar que Diana Ross nem de longe lembra a cantora que ela personifica. Em outras palavras, um desastre cinematográfico, que insulta os fãs e não esclarece nada do drama de Billie Holiday na vida real.

 O envolvimento com os músicos

Músicos de jazz são particularmente intolerantes aos que maltratam a sua música, e o respeito por cantores ou cantoras não é de fácil conquista.

Até hoje me passa a sensação de que quando Billie Holiday se dirigia aos estúdios ou exibições frente a plateias este respeito já havia sido conquistado. A interação entre ela e os músicos ao seu redor, durante a execução das peças, é bastante perceptível. São almas velhas que se encontram para conversar na linguagem musical, e com um sentimento de identificação recíproca tão forte, que é como se, naquele momento mágico, o mundo parasse de rodar e todas as pessoas ao lado desaparecessem como que por encanto.

Em registros fonográficos, é possível sentir isso em sua fase com o produtor Norman Granz (Clef e Verve Records). “Songs For Distingué Lovers”, de 1957, é uma das poucas, senão a única, gravação capturada com som estereofônico de alta clareza, para o selo Verve:

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As sessões incluem acompanhantes de reconhecida estatura, como o estupendo tenorista Ben Webster, o trompetista Harry “Sweets” Edison e o pianista Jimmy Rowles, todos eles com um som aveludado (Webster) ou doce e quente (Edison), ou ainda cerebral (Rowles).

A interação entre Webster e Edison é profícua nesta fase, e está compilada na edição em CD intitulada “Billie Holiday: The Ben Webster/Harry Edison Sessions”, editada pelo selo Lonehill Jazz. Curiosamente, a mixagem do CD acima citado é mono, e é possível que o produtor do disco tenha incorporado a noção de que gravações em dois canais daquela época eram intencionadas para mixagem em Lp mono. Mesmo assim, o som é excelente e inclui todos os discos para a Verve, com a adição dos registros do Festival de Jazz de Newport de 1957.

Críticos de hoje acham a voz de Holiday desgastada nestas sessões. A produção musical, entretanto, revela a capacidade da cantora em se superar, sendo bastante possível que a presença do produtor nas sessões tenha sido decisiva para que tal acontecesse.

Se desgastada a sua voz é, a verdade é que estas gravações são excepcionais, sob o ponto de vista de qualquer ouvinte de jazz, me arrisco a dizer. Tanto assim, que todas elas mereceram uma reedição em SACD, pelo selo Analogue Productions, em cuja mixagem o som estereofônico de Songs For Distingué Lovers é mantido.

 O final previsível

Billie Holiday iria pagar com a sua vida pelos abusos com tóxicos e com o alcoolismo. Justiça seja feita, não foi a única. O histórico de abuso de drogas é imenso com músicos de jazz, independente da cor da pele. Muitos afundaram, outros conseguiram sobreviver ao vício de alguma maneira. O assunto está muito bem descrito no filme de Martin Ritt “Paris Blues” (no Brasil, “Paris Vive À Noite”), feito em 1960, e claramente inspirado nas atribulações do pianista Bud Powell, e enfocando a saída de músicos dos Estados Unidos para a França, na busca de paz e inspiração.

É difícil, para quem está de fora, avaliar corretamente as razões pelas quais pessoas que se dedicam às artes procuram refúgio no uso de drogas. Como cientista fora desta área, eu ainda assim entendo a condição do drogado como o resultado do rompimento da homeostase mental, provocada pela sua incapacidade de se adaptar às agruras que tornam a sua vida incompreensível.

A discriminação social não é só restrita à cor da pele de uma pessoa. Em tenra idade, adolescentes sentem isto na forma de ameaças e intimidações diversas, principalmente no ambiente escolar, aonde certas tendências ao requinte da maldade, vinda de crianças que não recebem carinho ou atenção paterna, se manifestam socialmente de forma implacável e constante.

Existe, por outro lado, um inconformismo na carência afetiva e a sensação de falta de conquista daquilo que se idealiza como a interação, principalmente amorosa, entre seres humanos, que poderia deslanchar um estado de depressão, o qual é propício, dentro de certas circunstâncias, ao suicídio ou ao uso de drogas como forma de escapismo.

Um exemplo que quase sempre me vem à mente sobre a frustração afetiva é o do poeta Vinicius de Moraes, cuja lembrança aconteceu este ano, por conta da data de 100 anos de seu aniversário. Vinicius escreveu sobre o amor como ninguém, suas letras de música são de uma beleza quase utópica, mas na vida real ele se casou nove vezes, sem contar as aventuras que não deram em nada, e que se tornaram parte de sua vida íntima ou de seus familiares.

Billie Holiday morreu de cirrose, ao substituir a cocaína por álcool, prática comum entre os viciados. O tecido hepático tem defesas diversas para detoxicar drogas, mas existe um ponto de saturação nesta defesa, fazendo com que a substância ingerida (álcool etílico, inclusive) permaneça mais tempo na circulação, causando danos, às vezes irreversíveis, aos tecidos periféricos. A cirrose é um estado de doença onde o tecido hepático perde a sua capacidade de metabolizar transformações importantes, as quais o organismo como um todo precisa para sobreviver.

A morte de Billie Holiday deixou uma lacuna na música jazzística difícil de ser preenchida. O que sobra é a lembrança por parte do fã ou de seus pares atuais, da busca pela encarnação do sentimento na interpretação de músicas com letras e melodias às quais os músicos se identificam. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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2 respostas

  1. Paulo, gosto de Jazz, mas não tenho conhecimentos para opinar sobre o assunto. Repito sempre: Não pare de escrever. Em 2014 paro de trabalhar profissionalmente e terei ais tempo para curtir seus ensinamentos’

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