Walt Disney foi um visionário. Produziu o primeiro filme de animação com som estereofônico surround Fantasia foi um fracasso no lançamento mas provou a utilidade do formato de som décadas depois.
Com a ajuda de seus engenheiros William. E. Garity e J. N. A. Hawkins, Walt Disney lançou, em 1940, o filme Fantasia, com exibição em som estereofônico, a primeira feita até então, para as plateias americanas. Com isso, Walt Disney se tornou o primeiro cineasta a ter a visão do impacto do som estereofônico nas salas de exibição, e poderia ser assim considerado como “o pai do som stereo surround para o cinema”.
Diz a lenda que Walt Disney teria encontrado Leopold Stokowski, alguns anos após a experiência dos Laboratórios da Bell, feita em 1933, para testar a transmissão do som stereo pelas linhas de telefone. Stokowski teria sabido do projeto para colocar música clássica em uma coletânea de desenhos, reunidos em um longa-metragem, e assim teria convencido Disney a mandar seus engenheiros de áudio a procurar os engenheiros da Bell, para viabilizar a mesma coisa, para dentro das salas de cinema.
E Disney, sabendo depois que o projeto seria tecnicamente viável, propôs a seus colaboradores a demonstração do som stereo, com a gravação da peça “O vôo do besouro”, de tal forma que o som orquestral do voo pudesse circundar a plateia.
Mas os problemas técnicos ainda a serem enfrentados seriam no mínimo formidáveis. Um deles, era a maneira como o som era gravado oticamente nos filmes: a relação sinal/ruído era muito baixa e a resposta de frequência também. Na década de 1930, a turma de engenheiros da Bell conseguiria desenhar equipamentos de transmissão de áudio, para fins de telefonia, com uma resposta de frequência que se estendia até 15 Khz, que era suficiente para um som de alta qualidade. Entretanto, o som ótico do cinema, com muito custo, chegaria até 10 Khz, e a quantidade de ruído produzido pelo circuito de leitura iriam inibir consideravelmente a faixa dinâmica da gravação.
As soluções viriam com o desenvolvimento do Fantasound, criado para o filme Fantasia, a partir de 1938. O trabalho foi posteriormente publicado no Journal of the Society of the Motion Pictures Engineers (SMPTE), em agosto de 1941 (pp. 127-146). As ilustrações abaixo são tiradas desta publicação. O Fantasound introduziu uma série de avanços, entre eles o da gravação multicanal, e a sua respectiva mixagem, o desenvolvimento do som stereo surround, métodos de “overdubbing” (som sobre som) na gravação das partes orquestrais, e o de um canal de controle (o 9º para gravação), usado também para sincronismo, evitando assim as armadilhas técnicas do som ótico.
O sistema Fantasound introduziu também o potenciômetro de “panning” (controle do panorama stereo, ou da colocação de segmentos de gravação em posições estratégicas, durante a reprodução), e para a reprodução, introduziu também um outro canal de controle, que iria ditar o nível de pressão sonora de cada canal, com a ajuda de sonofletores de corneta, dotados de câmera de dispersão do áudio no ambiente.
O som capturado pelos microfones dos técnicos do estúdio Disney foram levados aos consoles de gravação através de linhas telefônicas dedicadas. Depois disso, foram gravados em filme 35 mm, por método ótico, numa máquina chamada de “optical printer”, com capacidade para até 4 canais.
Os oito canais gravados consistiram de seis canais com seções individuais da orquestra, o sétimo com a mistura desses seis, e um oitavo para toda a orquestra. Na fase final de transferência para a trilha sonora definitiva (“re-recording”), 8 a 10 canais foram usados.
A mixagem de Fantasia exigiu uma complexa lista de soluções técnicas. Um dos motivos era de que a cópia final para a exibição nos cinemas deveria ter um máximo de quatro canais, sendo um deles para controle automático do programa.
A distribuição de alto-falantes nas instalações das salas de exibição seguiria também um arranjo complicado: eram montados três canais na tela (esquerda, centro e direita) e três canais fora da tela, correspondendo à lateral esquerda, lateral direita, e centro, para ser instalado no teto.
Estes canais iriam compor o som surround, mas como só era possível reproduzir três canais de cada vez, o som desses três canais surround era derivado dos canais esquerdo e direito da tela, e controlados pelo quarto canal gravado. Este quarto canal daria as bases para o que se convencionou chamar de canal de controle.
A missão dele era controlar a amplitude de cada canal, ou mudar a mixagem, de acordo com tons de controle. Este princípio foi posteriormente usado, na década de 1950, pelo formato “Perspecta Sound”, que derivava um único canal ótico, para simular stereo. Depois, em 1974, a Universal lançou o sistema Sensurround, usando o canal de controle para acionar caixas acústicas separadas para os efeitos de som de baixa freqüência (o precursor dos atuais LFE digitais, o chamado “.1”).
E o princípio da derivação de um canal a partir do outro foi também usado nos sistemas Quadrafônico (para Lp’s domésticos) e Dolby Stereo, derivando 4 canais a partir de 2. E finalmente, o sinal de controle de tempo (“timecode”), que é a versão eletrônica mais recente do canal de controle usada pelos sistemas DTS.
Para as exibições, o Fantasound exigia dois projetores: o projetor normal, que continha o filme, dotado de banda ótica mono, e um projetor especial (ver abaixo), contendo a trilha sonora multicanal. Caso este último desse defeito ou falhasse, o projetor com a trilha mono seria então acionado, de forma a não interromper a projeção. Note que este princípio é usado até hoje, nos sistemas de áudio multicanal digitais, incluindo Dolby Digital, DTS e SDDS, exceto que no lugar da banda ótica mono, os filmes usam uma trilha em banda ótica Dolby Stereo, introduzida no fim da década de 1970, com o filme Star Wars.
Durante a projeção, estes dois projetores eram sincronizados com equipamento eletromagnético, chamado genericamente de “selsync”, onde um dos motores fornecia dados da sua posição e as transmitia de modo a rodar o segundo motor, mantendo assim o sincronismo.
A gravação original das peças vistas em Fantasia foi feita em 1939, na Philadelphia Academy of Music, com a Philadelphia Symphony Orchestra, mas os segmentos de Aprendiz de Feiticeiro (gravado em 1938), e da Ave Maria foram registrados em Hollywood, em equipamento multicanal semelhante, no Pathé Studio, em Culver City. No caso do coral de Ave Maria, o som foi capturado em três canais: dois deles separariam as vozes femininas das masculinas, e o terceiro iria capturar o conjunto das mesmas, mas numa distância que aumentaria a reverberação das vozes.
A reprodução do som multicanal Fantasound foi experimentada previamente à circulação do sistema nos cinemas. Nada menos do que dez diferentes sistemas foram construídos e testados. Inicialmente, achava-se que técnicos especializados deveriam estar presentes nas salas de projeção, de modo a mixar o som através de um roteiro. Mas, como os resultados seriam inconsistentes, no final decidiu-se pelo uso de um equipamento que tornasse o processo totalmente automático. Este processo seria baseado no canal de controle previamente descrito.
Ele entrou em operação no sistema Mark III, mas somente no sistema Mark X foi que todos os tons de controle e os equipamentos eletrônicos alimentados por eles (estes desenvolvidos pelos engenheiros da RCA) ficaram finalmente estabelecidos. A alimentação dos tons de controle era feita diretamente num módulo chamado de “Togad” (Tone operated gain-adjusted device), que por seu turno controlava o ganho dos amplificadores, em três níveis diferentes.
Um dos principais objetivos do Togad era contornar um problema crônico do som em banda ótica: o da pobreza da relação sinal/ruído. A música clássica, para ser bem gravada e reproduzida exigiria uma faixa dinâmica (relação entre sons altos e baixos) elevada, que a banda ótica não teria condição de atender. O canal de controle entra em cena, para diminuir o ganho de amplificação, nas passagens de áudio mais baixas, e com isso aumentar a faixa dinâmica.
Em contrapartida, as partes orquestrais de som mais alto foram gravadas no máximo de amplitude compatível com a ausência de distorção no sistema. O resultado final, segundo testemunhas, ficou bastante aceitável, e infinitamente superior em dinâmica, com o som ótico convencional do cinema, adotado até finais da década de 1970.
A exibição original de Fantasia no chamado “roadshow” não teve o sucesso esperado, e para complicar mais ainda, a instalação de equipamento Fantasound nos cinemas era cara e por isso poucas cadeias exibidoras se interessaram pelo processo.
Os motivos eram vários, mas o primeiro e mais fundamental deles foi o custo do equipamento e o tempo necessário para fazer instalação e testes nas salas de exibição, dando assim prejuízo financeiro aos exibidores. Além disso, o tamanho e a quantidade de equipamentos necessários dificultavam a sua instalação em cabines de projeção de pequenas dimensões. Sem ter como resolver estes problemas, Disney entregou, em 1941, as cópias de Fantasia, remixadas em formato monaural ótico, e com o tempo de projeção cortado de duas horas para 82 minutos (o que enfureceu Disney, segundo testemunhas), exigido para distribuição pela RKO, e ficou assim até 1956.
Relançamento e restaurações de Fantasia
A volta do som estereofônico no cinema, na década de 1950, animou Walt Disney a reconsiderar o relançamento de Fantasia. O estúdio retirou dos arquivos as gravações óticas (em filme 35 mm de base de nitrato) que sobraram das gravações originais, em 4 canais, e usaram o mais moderno gravador magnético da época, e através de linhas telefônicas classe A, o som foi transferido para master magnética de 4 canais. Esta master, que não conteria nenhum canal surround, seria usada para o re-lançamento do filme no formato widescreen Superscope, em 1956. Durante anos subsequentes, os técnicos do estúdio fizeram cópias regulares dos originais, em fita magnética, e só assim foi possível recuperar a mixagem original, muitos anos mais tarde.
Entretanto, com o advento das gravações digitais, na década de 1980, os estúdios Disney contrataram o seu veterano maestro, compositor e arranjador Irwin Kostal, para regravar a trilha completa de Fantasia. A gravação foi feita em equipamento Soundstream, de 4 canais, com amostragem a 50 KHz. Naquela época, entretanto, o som digital não havia chegado ainda às telas do cinema, e então a solução foi exibir o filme, em 1982, com trilha ótica 4 canais Dolby Stereo. A versão de Kostal desagradou aos fãs e críticos, ainda com a versão original de Stokowski na memória.
Com o desaparecimento da gravação ótica original, devido à decomposição dos filmes em base de nitrato, as gravações magnéticas foram reutilizadas pelo engenheiro de áudio Terry Porter, depois de analisar todas as instalações e métodos das gravações originais em Fantasound.
Terry usou as fitas magnéticas de 1956 para a base do trabalho de restauração, e com o auxílio de equipamento adequado, procedeu à limpeza de todo o material de áudio, com a preservação e posterior exibição do mesmo em 1990, em seis canais de áudio magnético em gravador para 70 mm, em alguns cinemas. Este trabalho também serviu de base para o lançamento, um pouco depois, das versões em home video.
O som surround desta versão é um pouco mais agressivo, se comparado à versão que surgiu depois em DVD, que supostamente recriou o som de cinema da exibição original de Fantasia, em Fantasound. Em contrapartida os pannings radicais, originalmente propostos por Stokowski, estão bem mais evidentes nesta versão, do que na versão posterior em DVD.
Esta primeira versão do original em home video (edição de 50 anos), foi lançada em meados do início dos anos 90, em VHS e laserdisc. A ela foi acrescentada o material fotográfico restaurado, mas a versão “roadshow” original do filme permaneceu sem divulgação pública.
Isto foi corrigido na edição em DVD, em 2000, que apresentou a edição original “roadshow” completa. A edição, que comemorou 60 anos do lançamento do filme, trouxe consigo elementos de censura indesejados pelos fãs, entre eles o da eliminação digital de um pequeno centauro preto, do segmento completo de uma criada centaura (Sunflower), também preta, e de adulteração por zoom digital de personagens expondo partes íntimas, no segmento da Pastoral.
As lições de Fantasia
Walt Disney era considerado por muitos de seus colaboradores e antagonistas, como um homem difícil, e segundo alguns historiadores, isto ficou patente depois da organização sindical e posterior greve dos artistas envolvidos com a produção de filmes de animação, o que teria deixado Walt bastante irritado.
Mas, no caso específico de Fantasia, o gênio controlador de Disney deixou o animador alemão Oskar Fischinger aborrecido a ponto de deixar a produção do filme, e exigir que o seu nome fosse retirado dos créditos. Fischinger foi um pioneiro da animação abstrata, na Alemanha, trabalhando de forma totalmente artesanal, chegando a pintar os negativos, para obter desenhos coloridos. Disney convidara Fischinger para trabalhar na animação do segmento da Tocata e Fuga em Ré Menor, do início do programa do filme. Trechos dos desenhos de Fischinger foram resgatados para o DVD da edição de 60 anos, e colocado no disco de material de suplementos:
Fischinger era um artista sem comprometimentos de qualquer natureza, mas Disney tinha uma visão do gosto do público. Inevitavelmente, os dois bateram de frente, e todo o segmento da Tocata foi substituído por um desenho novo. De Fischinger, sobraram apenas as ideias para um desenho abstrato, que os artistas de Disney provavelmente aprenderam com ele. Uma visão um pouco mais aproximada da obra de Fischinger pode ser observada em Fantasia 2000, no segmento da 5ª Sinfonia de Beethoven.
Nas observações sobre a reprodução do som multicanal nos cinemas, William. E. Garity e J. N. A. Hawkins tiveram o mérito de perceber que a pressão sonora do som em apenas um canal era mais desagradável aos ouvidos da plateia do que a mesma pressão, mas distribuída em vários canais. Com isso, foi possível se conseguir um alto nível de volume na reprodução, e assim manter o impacto da dinâmica do programa de Fantasia, sem contudo causar qualquer desconforto em quem estava assistindo o filme. Esta observação se pode verificar nos sistemas multicanal atuais, e forma a base de processos como o Dolby ProLogic II, em modo de música, para a audição de CDs e outras fontes, em instalações 5.1, e o mesmo se pode dizer da reprodução discreta de filmes neste formato.
Apesar do fracasso de bilheteria de Fantasia, mesmo em lançamentos subsequentes, e do fiasco que foi a reedição do filme quando cortado para SuperScope, em 1956, a obra de Disney e seus artistas permanece como a principal referência do som multicanal no cinema. A maioria dos conceitos desenvolvidos à época para gravação, e principalmente para reprodução do som nas salas de exibição está aí até hoje.
Tudo isso, me arrisco a dizer, não teria sido possível sem o espírito visionário de Walt Disney, e sem o seu espírito ousado para enfrentar os riscos financeiros. Como em qualquer trabalho pioneiro, Fantasia exigiu um exército de técnicos, que foram obrigados a criar soluções e colocá-las em prática. Não há dúvida que este trabalho deu origem às exibições modernas, com som multicanal, nos cinemas e nas instalações de home theater. Outrolado_
. . .
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
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