O legado cinematográfico de A Noviça Rebelde

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“A Noviça Rebelde” foi o filme que salvou a Fox da bancarrota, mas os seus méritos como obra cinematográfica vão muito além disso. Na nova versão em Blu-Ray do negativo restaurado por processo digital finalmente se tem um visão correta da sua imagem e som nas telas dos cinemas.

Eu estou escrevendo este texto em um momento bem antes do lançamento oficial (2 de novembro na América do Norte e 27 de outubro aqui) da próxima edição em Blu-Ray do filme de Robert Wise The Sound of Music ou “A Noviça Rebelde”. É claro, ainda não vi, mas, diante da minha experiência recente com edições de filmes restaurados em alta definição, não hesito em afirmar categoricamente que será espetacular, no sentido literal da palavra.

E se algum leitor quiser ter uma visada prévia disso como eu tive, basta acessar o press-release da restauração, passado na Internet em alta definição, para quem tem acesso à banda larga.

Sound of Music foi o filme que me motivou, décadas atrás, a investir em um leitor de Laserdisc, o videodisco da Pioneer, na década de 1980. A imagem era 4:3, standard, totalmente analógica, e a gente vibrava com aquilo. O fotograma aparecia todo cortado, mas o som, já em PCM digital na era pós-CD, era de uma qualidade que nos impressionava.

Na época do Laserdisc as restaurações fotográficas já existiam, mas a tecnologia de vídeo digital engatinhava. Nos últimos anos, o telecine digital, a varredura dos negativos e processos diversos de limpeza dos originais chegaram a um ponto que jamais poderia ter sido antecipado naquele momento.

Mesmo com as primeiras tentativas de masterização de negativos de bitola larga (65 mm) bem sucedidas, a partir do início da década de 1990, a qualidade da imagem se mostrou inadequada para filmes feitos em processos como o Todd-AO, o Super ou Ultra Panavision e similares.

Por causa disso, os trabalhos em laboratório feitos até então foram refeitos, acompanhados ou não da necessidade de se restaurar novamente, por processamento digital, os mesmos negativos. Os resultados falam por si próprios, e a cada passo dado, mais a gente se aproxima do que se viu no cinema, na época dos lançamentos desses filmes.

Noviça Rebelde foi primeiro exibido aqui em CinemaScope, com quatro canais de som estereofônico. Anos depois, o filme foi relançado em 70 mm plano (o Todd-AO original é exibido em tela muito curva, próxima da tela do Cinerama). Embora tecnicamente superior, esta segunda exibição não conseguiu superar o sucesso da primeira, em termos de volume de público.

A Noviça Rebelde é um filme caro para a Fox!

Considerado por muitos um filme ingênuo e até meio bobinho, Noviça Rebelde tirou a Fox do que se prenunciava ser a sua virtual bancarrota e iminente fechamento de portas. O filme salvou literalmente o estúdio do desastre que foi a produção de Cleópatra. E o que sobrou de confusões diversas neste último filme encontrou o seu extremo oposto no filme dirigido por Robert Wise.

O filme foi baseado em outro, feito na Alemanha em 1956, e distribuído no Brasil pela UFA, com o nome de A Família Trapp, tradução literal do título original. Contam seus historiadores que a atriz da Broadway Mary Martin teria visto o filme alemão e levou a ideia à dupla Rodgers e Hammerstein, que transformaram a estória em uma peça musical.

O filme de Robert Wise, entretanto, pega emprestado dos dois lados, chegando a fazer menção em seus créditos, de Georg Hurdalek, que co-escreveu o original alemão.

A produção é toda realizada no processo Todd-AO, com cópias do negativo original em 70 mm e também em CinemaScope 35 mm. A equipe usa também as então revolucionárias câmeras MCS-70, para as belíssimas tomadas aéreas, vistas no início do filme.

Robert Wise é um diretor competente e organizado. Ganhou experiência como montador de filmes, exibindo técnica exuberante na obra prima de Orson Welles “Cidadão Kane”. Seus dotes de editor continuam sendo vistos em filmes subsequentes, mas em Noviça Rebelde ele exibe uma mestria no posicionamento da câmera e principalmente nos travellings, de fazer qualquer cinéfilo(a) babar na gravata ou na blusa!

Logo no início do filme, a câmera faz um travelling aéreo em plano geral, vai descendo, até cortar em seco para o plano médio da atriz Julie Andrews, começando a cantar a canção tema do filme. Em raras vezes, o cinema nos mostrou cena tão bonita. Ela ainda conta com a magnitude da orquestração de Irwin Kostal, e com o som magnificamente capturado pelo hoje lendário Murray Spivack.

A contribuição de Spivack para a qualidade do som do filme esteve melhor refletida na edição em Laserdisc (apesar de estar no formato Dolby ProLogic) do que no DVD. Na edição em Blu-Ray, além de restaurado, o som é transferido em formato DTS HD MA de 7.1 canais, mais próximo, portanto, da edição pretendida para o processo Todd-AO (6 canais em banda magnética). É de se esperar um avanço significativo, para quem aprecia o som do cinema.

A restauração digital fotográfica

O que tem acontecido ultimamente, toda vez que um negativo de câmera é submetido ao processo de varredura do telecine digital, é que para compensar a ação do tempo, um técnico especializado em cores é chamado para colocar a cor perdida de volta no lugar.

Detalhe da varredura dos fotogramas 65 mm de A Noviça Rebelde, em 8 mil linhas de resolução.
Detalhe da varredura dos fotogramas 65 mm de A Noviça Rebelde, em 8 mil linhas de resolução.

Como Robert Wise não está mais aí para ver isso pessoalmente, e notem que ele supervisionou a primeira transcrição de negativo 65 mm para widescreen de West Side Story e outros títulos, a Fox entregou a restauração a estudiosos preservacionistas da PhotoKem. A julgar pelo visto no press-release da Fox, o equilíbrio obtido na reprodução das cores traz de volta os méritos da fotografia Todd-AO, como se nunca viu em nenhuma mídia de vídeo.

Captura do press-release da Fox, exibindo o processo de restauração fotográfica digital e correção de cores. Note a diferença na renderização das cores. O lado da esquerda lembra claramente a imagem da edição em DVD.
Captura do press-release da Fox, exibindo o processo de restauração fotográfica digital e correção de cores. Note a diferença na renderização das cores. O lado da esquerda lembra claramente a imagem da edição em DVD.

Em várias sequências do filme, principalmente na sua abertura em tomadas aéreas, a edição em DVD já foi um avanço, mas o conjunto da obra é pálido o suficiente (sem trocadilho) para merecer o repúdio dos fãs de cinema e do 70 mm em particular.

E para garantir que nenhuma informação fotográfica fosse perdida, a Fox investiu desta vez em uma varredura do fotograma com 8 K (ou 8 mil linhas) de resolução! Nada mais justo, para um filme que lhe é tão querido e que em tempos de outrora lhe salvou a pele da falência.

Uma pequena análise sobre o filme

Nos filmes de cinema a mensagem pode estar na cara da plateia, mas ela não percebe, a não ser anos depois, e foi exatamente isso o que aconteceu comigo. Revisitando o filme depois de longo tempo do seu lançamento, algumas conclusões óbvias saltam aos olhos:

O sucesso das relações interpessoais depende muito de uma coisa chamada de “confiança”. Ela é fundamental na relação terapeuta-paciente, alunos e professores, marido e mulher e muitas outras.

No filme, Maria chega à mansão de um viúvo de classe média alta, carregado de filhos desprovidos do carinho e da presença da mãe. Até então nenhuma governanta conseguira lidar com este tipo de problema. Para alcançar seus objetivos como educadora de filhos que não são seus, Maria usa de um artifício imbatível: o envolvimento das crianças com a música. O título original em inglês, The Sound of Music, reflete muito mais este aspecto do que o nosso, ao rotular a personagem como uma espécie de “noviça rebelde”!

Este talvez seja o grande trunfo da trama: acreditar que a música funcione como elemento formador e de exposição do lado de sensibilidade de pessoas jovens! A música, de fato, é uma linguagem universal, sem fronteiras, raça ou credo, embora ela possa ser usada de forma específica por etnias diversas. Então, baseado neste raciocínio, tudo isto faz muito sentido.

O roteiro dá destaque a dois momentos em que esta virada é vista: o primeiro, no quarto de Maria, em sua primeira noite, com uma tempestade nas vizinhanças. A canção My favorite things, que depois se tornou um standard de música popular e de jazz, é talvez uma das músicas mais bonitas da peça. Ela é trazida à cena, para acalmar os espíritos e também para iniciar o processo de conquista, por Maria, dos sete filhos de outra mulher. Aqui, Maria passa a confiança a que me referi, e a certeza de que não há nada de assustador em uma tempestade que passa ao longe. A imagem psicológica da proteção e do maternalismo catalisam o estabelecimento da relação com confiança.

Num segundo momento, o diretor usa com proficiência uma série de planos gerais e médios, que se iniciam com Maria “ensinando” as crianças a cantar, com a inserção de Do-Re-Mi, o bê-á-bá musical. Nos próximos segmentos, Maria está ao lado das crianças na brincadeira, e não em frente a elas! E a cinematografia, com a câmera viajando em travellings planejados à perfeição, reflete com competência visual a alegria deste momento.

Julie Andrews encarna seu personagem com notável fidelidade ao conceito exposto no roteiro. Ela é séria e alegre ao mesmo tempo. Seu controle como educadora e líder é perfeito. A conquista da confiança se desenvolve na amizade e na solidariedade dela, para ajudar as crianças a conquistar o pai de volta.

Já o ator Christopher Plummer aparece visivelmente desconfortável em algumas cenas, o que lhe rendeu críticas locais um pouco exageradas na década de 1960, mas seu desempenho como admirador de Maria não é dos piores. Na verdade, com o bem planejado jogo de luzes usado pelo diretor, as expressões dos dois personagens nada deixa a desejar neste particular.

No lado dos atores mais jovens, está em Daniel Truhitte (o Rolf) a encarnação germânica adolescente mais consistente, mas todos se comportam na personificação dos personagens. Existe, a meu ver, em todos os atores do elenco um pouco da cultura britânica refletida nos maneirismos, forma de falar e atitudes, mas nada disso empana o brilho do filme.

Convenhamos que fazer um filme rodar quase três horas, sem contar com os tradicionais 15 minutos de intervalo, e prender a atenção da plateia o tempo todo, não é fácil! Na época do seu lançamento, as salas de cinema ficavam superlotadas, e não foi à toa que a bilheteria foi depois considerada uma das maiores de todos os tempos, incluindo a comparação com aquela obtida pelo filme “E o Vento Levou”.

É só pedir para embrulhar pra presente!

Pessoalmente, eu acho um exagero, mas quem gosta de edições comemorativas, assinadas e limitadas, a Fox tem tudo para agradar o cliente. Em termos dos discos, a edição normal não é diferente: são dois discos Blu-Ray e, sabe-se Deus para que, um disco com o filme em DVD. Eu imagino que seja para preservar os Blu-Rays inclusos.

A edição em Blu-Ray de A Noviça Rebelde é um exemplo a ser seguido pela própria Fox! Detentora do título do primeiro estúdio lançador do processo Todd-AO, ela foi capaz de lançar Oklahoma em um dos piores DVDs que eu já vi na minha vida!

A primeira edição de Oklahoma em DVD, cheia de artefatos diversos, nem sequer anamórfica era. Na segunda, criou-se uma expectativa de que o estúdio se redimisse, mas a cópia tirada do original é um verdadeiro desastre. E até onde eu acompanhei isso, não houve redenção nenhuma.

A Fox Filmes, como nos mostra a sua história, é um dos melhores e mais completos estúdios do mundo. Com o seu departamento de desenvolvimento e pesquisa, ela lançou o CinemaScope 35 e 55 mm. Na área de 70 mm, ela também foi pioneira, com o formato Grandeur, de curta duração. E depois associou-se a Mike Todd, para levar adiante a filmagem de inúmeros filmes no processo Todd-AO.

Na parte de som, a Fox inovou com o Movietone, na sua fase de som de filme em banda ótica. Depois, com o advento do som magnético em película, a Fox inovou também com o som estereofônico para as cópias em CinemaScope, processo este licenciado para outros estúdios. O som magnético em película foi usado também para o 70 mm, tanto na cadência de 30 quanto de 24 quadros por segundo, com qualidade excepcional.

E finalmente, a Fox foi um dos poucos estúdios a acreditar e dar suporte ao Blu-Ray exclusivamente. O seu apoio implicou no prestígio do formato, e hoje é muito fácil ver em que isto resultou. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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3 respostas

  1. Bom dia Paulo,
    Grato pela presteza em responder meu comentário.
    Estou tentado a adquirir o disco aqui mesmo no Brasil. Penso que comprar lá fora é complicado para quem é marinheiro de primeira viajem.
    Abraço.

  2. Oi, Celso,

    Os meus discos chegaram ontem, por culpa minha, que os encomendei com a trilogia de De Volta Para o Futuro. Já havia assistido parte na casa de um amigo, mas na casa da gente a apreciação muda.

    A minha opinião continua a mesma: a imagem é a melhor que eu já vi deste filme, desde que eu o assisti na década de 60. Eu fiquei particularmente impressionado com o detalhamento e com o foco conseguido em diversas tomadas. A correção de cores finalmente restabeleceu o filme à sua glória fotográfica original.

    Na parte do som, uma surpresa: os restauradores se detiveram em observar a mixagem Todd-AO original e resistiram à tentação de inventar surround aonde nunca existiu. É que na imensa maioria dos filmes em som estereofônico da era pré-Dolby o surround era escassamente usado e quando isso acontecia, era mais para dar ambiência.

    Eu não estou aqui para fazer a cabeça do leitor quanto a gasto de dinheiro, mas se alguém me perguntar se deve investir em uma das edições, eu diria claramente que sim. Continuo achando os preços praticados nos Blu-Rays extorsivos, e se alguém tiver a paciência de esperar pela entrega, coisa que eu não fiz, eu sugiro comprar fora, porque os discos são iguais e o preço bem menos do que a metade.

  3. Olá Paulo,
    Grande artigo sobre o que mais admiramos: o cinema na sua maior amplitude. Projetei a Noviça…lá atrás e foi sempre um grande prazer assisti-lo diversas vêzes. E agora em blu-ray. Você afirma que ainda não viu nessa nova roupagem. Não deixe de comentar quando vê-lo.
    Você fala na imagem com resolução 8k. Isso deve ser fantástico! As mídias domésticas estão passando a perna na telona. Já tive oportunidade de comentar contigo que as salas IMAX são agora digitais e em assim sendo as perdas foram enormes: vi recentemente na sala de S.Paulo “A Origem” do Chris Nolan e acredite, nas tomadas de grande conjunto no sobrevôo de cidades a qualidade de imagem é vergonhosa. É sofrível nos primeiros e primeiríssimos planos.
    Encerrando, pesquisei na DVD WORLD essa nova apresentação da Noviça… e encontrei dois preços: R$ 79,90 e 359,90. Que discrepância, não?
    Abraço.

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