Privacidade, que bicho é esse?

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Eu soube bem cedo em minha vida o quanto a privacidade era importante.
Daniel Day-Lewis (Ator inglês, 1957 – )

Entre os animais mais magníficos deste planeta, sem dúvida o tigre é um deles. Entre as diferentes espécies, o tigre de java (Panthera tigris sondaica) é uma das mais bonitas. Seu habitat, a ilha de Java na Indonésia, é um dos lugares onde a presença do homem tem feito estragos severos.

No caso, promoveu a extinção deste magnífico animal. Desde 1993 nenhum cientista foi capaz de encontrar qualquer traço da presença do tigre de Java. Extinto!

Nossa vida, em especial o desenrolar de nosso dia, pode ser entendido como uma sucessão de eventos. Do momento em que despertamos, até tarde da noite quando voltamos para nosso quarto, pensamos, agimos, conversamos com amigos e… publicamos. Esta última atividade é um fenômeno recente, resultado não somente da nova internet social a qual exige de cada um de nós a atualização quase que diária de nosso “eu virtual”, mas também das mudanças dramáticas que ocorrem nos dispositivos computacionais, tornando-os móveis e ubíquos (ou pervasivos).

De fato, vivemos um momento de “hipervisibilidade”. Para Andrew Keen: “Neste mundo transparente, estamos ao mesmo tempo em toda parte e em parte alguma, a irrealidade absoluta é a presença real”.

Somos levados pelas redes sociais e as novas tecnologias de compartilhamento, a abrir o livro de nossas vidas de forma irrestrita, sem limites, a todo momento. Perdemos completamente o juízo do que é pessoal e do que é público. Tudo pode e deve ser compartilhado para o bem da nova onda social, ou melhor para os anunciantes das redes sociais que precisam conhecer detalhes de nossa vida para postar anúncios “contextualizados” de acordo com nosso perfil e gostos pessoais. Não por acaso, Dan Fletcher escreveu que “O Facebook está mudando nosso DNA social, nos tornando mais acostumados a transparência”.

A questão é: qual o preço a pagar?

Para as megaempresas virtuais, proprietárias das redes sociais, somos consumidores, sem grandes ilusões, é o que somos. Indo mais além, na medida em que precisamos nos apresentar sempre saudáveis, alegres, viajados e descolados, nos tornamos nós mesmos “mercadorias”.

Nesse sentido, bom ouvir o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Para ele, numa sociedade de consumidores, somos levados a nos tornar “mercadorias vendáveis”, aumentando nosso valor a partir de construções de nossos perfis, muitas vezes artificiais, para podermos estar sempre bem diante de nosso público, seja este virtual ou não.

Neste novo jogo virtual social, o que estamos deixando de lado, em especial a nova geração digital, é a privacidade. Porém não estamos sendo “coagidos” a abrir mão de nossa privacidade. A cultura ou cibercultura atual, midiática, influenciada por uma frenética busca por visibilidade (culto às celebridades, por exemplo) nos leva a ignorar por completo nosso direito de preservar nossa identidade, os eventos particulares de nossa vida e muitas vezes, nossos momentos de solidão.

“Se antes os mecanismos de identificação feriam a privacidade do indivíduo (moderno, romântico e introspectivo) e eram sentidos como uma verdadeira invasão, a larga adesão às redes sociais digitais parece testemunhar, na modernidade tardia, o arrefecimento do sentimento de “eu” em perfis e avatares publicizados nas instâncias midiáticas da visibilidade ciberespacial.”
Dal Bello, 2011

Então quando o assunto é preservar a privacidade, minha, sua e de todos cibercidadãos, vivemos de fato, um paradoxo dentro do universo das redes sociais. Considerando que o atual modelo de negócios das redes sociais está ancorado (praticamente 100%) em mídia publicitária contextualizada, fundamentada em informações pessoais fornecidas pelos usuários consumidores-mercadorias, não há como preservar as informações fornecidas pelos usuários de uso por parte das empresas que sustentam as redes sociais.

Quanto maior a quantidade de dados, quanto mais informações pessoais as redes sociais possuem de você, mais “precisa” e “efetiva” será a publicidade e maior a rentabilidade do negócio. Esta é a lógica.

Assim, para termos todos os benefícios da era das redes sociais precisamos abrir mão de nossa privacidade, espontaneamente ou não.

Privacidade, que bicho é esse?

Privacidade é a capacidade e direito que temos de controlar as informações sobre nós mesmos. De certa forma, nosso direito de viver em sociedade de forma anônima. Mas a privacidade vai ainda mais longe, pois ela também existe para garantir que informações pessoais, uma vez compartilhadas com uma organização, não sejam usadas, vendidas ou distribuídas sem autorização. Mas, ao que parece, estamos felizes com o fato de vivermos num mundo virtual sem paredes, com as portas e janelas de nossas vidas escancaradas, sentimentos, relacionamentos, hábitos de consumo e tudo mais.

Todos queremos viver plenamente esta nova onda virtual, usando freneticamente smartphones e gadgets de compartilhamento de fotos, vídeos e textos. Quem deseja sair debaixo dos holofotes virtuais? De fato, muitos de nós somente irão descobrir o valor da privacidade quando a tiverem perdido. A privacidade também está associada a vigilância e segurança, e uma vez que tenhamos perdido o controle sobre nossas informações pessoais, quem estará fazendo uso delas e com que finalidade?

Não acredito que o caminho seja eliminar por completo nossa presença virtual, inclusive existe um software para isto, o Web 2.0 Suicide Machine. Mas se continuarmos ad infinitum sustentando as redes sociais e outras ferramentas Web 2.0 com nossas informações pessoais, chegará o momento em que as grandes corporações virtuais, empresas e governos saberão tudo sobre nós.

Penso em fazer uma viagem para Indonésia. Me contaram que a privacidade habita a ilha de Java. Infelizmente, faz alguns anos, entrou para lista dos bichos em extinção.

Referências

BAUMAN, Z. Vida para Consumo – A transformação das pessoas em mercadorias. Zahar Editora, Rio de Janeiro, 2008.

BAUMAN, Z. Amor Líquido. Zahar Editora, Rio de Janeiro 2004.

CAMPBELL, R., AL-MUHTADI J., NALDURG P., SAMPEMANEL G. and MICKUNAS M. D. Towards security and privacy for pervasive computing. In Proceedings of International Symposium on Software Security, Tokyo, Japan, 2002.

DAL BELLO, C. Visibilidade, vigilância, identidade e indexação: a questão da privacidade nas redes sociais digitais. O Estatuto da Cibercultura no Brasil. Vol.34, N 01, 1º semestre 2011.

FLETCHER, D. How Facebook is redefining privacy. Time. 20 mai. 2010. Disponível em: http://www.time.com/time/business/article/0,8599,1990582-1,00.html. Acesso em: 1 março de 2013.

GUHA S., TANG K. and FRANCIS P. NOYB: Privacy in onlinesocial networks. In WOSN, 2008

KADUSHIN, C. Understanding social networks: Theories, concepts, and findings. Oxford University Press, USA, 2011.

KEEN, A. Vertigem digital – Porque as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando. Zahar Editora, Rio de Janeiro, 2012.

NARAYANAN, A., SHMATIKOV, V. De-anonymizing Social Networks. 30th IEEE Symposium on Security & Privacy, 2009.

PARISER, E. O Filtro Invisível – O que a internet está escondendo de você. Zahar Editora, Rio de Janeiro, 2012.

Notas

Computação pervasiva ou ubíqua. Esta nova tecnologia prevê um mundo onde processadores embutidos, sensores e comunicações digitais são commodities de custo insignificante, sendo assim, estarão disponíveis em todos os lugares. Isso elimina barreiras de tempo e lugar, fazendo com que serviços computacionais estejam disponíveis aos usuários a qualquer hora e em qualquer lugar. [Campbell, 2002]

Para teologia, ubiquidade é a faculdade divina de estar concomitantemente presente em toda parte.

Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, assinou a “declaração dos direitos de privacidade online”, documento que coloca uma série de limites ao uso das informações pessoais publicadas na internet pelos cidadãos ao mesmo tempo que amplia o conhecimento e controle sobre quais destas informações estão sendo explorados pelas empresas. Na União Europeia, o assunto ainda é mais sério e restritivo, com leis para proteção de dados com base em uma diretriz de 1995 que estabeleceu princípios para a coleta de informações pessoais.

No Brasil, o art. 5º, X, da Constituição da República, diz que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

O tigre de Java na Wikipedia.

Política de uso de dados do Facebook. Última atualização: 11 de dezembro de 2012. Acesso em: 1 março de 2013.

[Webinsider]

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Leia também:

Ricardo Murer é graduado em Ciências da Computação (USP) e mestre em Comunicação (USP). Especialista em estratégia digital e novas tecnologias. Mantém o Twitter @rdmurer.

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Uma resposta

  1. Prezado Prof. Murer:
    Excelente reflexão. Discordo em parte da falta de alternativa: o fim da privacidade vai chegar e ponto final. Sempre há alternativas e tendências paralelas ainda não analisadas podem descobrir novas tendências.Assim como já foram noticiados casos de espécies consideradas extintas que ressurgiram. No caso da web, um concorrente do Facebook pode ser criado e tomar o seu lugar, através de um diferencial que considere a não utilização dos dados pessoais ou uma menor exposição. Penso que o Governo deve ser o primeiro a ter 100% de transparência, que as empresas devem ser cobradas sempre que necessário para abrirem seus dados. Mas o cidadão comum precisa resguardar sua privacidade desses dois atores poderosos. No momento atual, uma geração de crianças e adolescentes precisa ser educada para não flertar de forma irresponsável com a internet e suas seduções.Para isso, a regulação é fundamental, mas pais e mestres devem também fazer sua parte. Enfim, a privacidade corre riscos por certo.É o preço a pagar de uma sociedade cuja cultura tem um jeito voyer e narcísico de ver e ser visto. Abraços,
    Gaulia

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