As raízes do Dolby Stereo

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O Dolby Stereo, ícone do som estereofônico multicanal analógico da década de 1970, não foi somente mais um formato de áudio para o cinema. Primeiro, porque ele se transformou em um divisor de águas entre o antigo e o moderno, segundo porque ele retorna o foco dos engenheiros de mixagem para o som multicanal, abandonado na maioria das produções da época, e finalmente porque o formato permitiu a montagem das primeiras instalações de home theater com sucesso no que tange à reprodução do som do cinema dentro de casa.

As grandes e mega produções de cinema, particularmente aquelas feitas em solo norte-americano, usaram o som multicanal analógico como forma de complementar o aumento da largura das telas de cinema. Com o advento do CinemaScope, que foi projetado para telas na relação de 2.55:1 e depois 2.35:1, o número de canais na tela, em um total de três, e mais o canal para surround, com o uso de banda magnética em múltiplas trilhas, se tornou parte integral do filme 35 mm. No início (tela de 2.55:1) a banda ótica mono foi totalmente suprimida, mas isto acarretou um problema de distribuição, porque nem todas as salas dos exibidores eram dotadas de som multicanal.

É sempre bom lembrar que uma das premissas do CinemaScope era de que seria possível mudar a tela quadrada original do padrão da academia para a tela panorâmica apenas com a troca no projetor da lente convencional por uma lente anamórfica. Mas, com cópias scope com banda magnética somente era preciso montar o resto do equipamento: unidades leitoras, amplificadores e caixas acústicas. E como nem todo exibidor tinha capital para fazê-lo, a solução foi distribuir cópias CinemaScope com som ótico mono. Como o som estereofônico fazia falta, por ser parte importante do novo formato, eventualmente, para satisfazer gregos e troianos, foram distribuídas cópias com ambas as trilhas sonoras magnética e ótica, as chamadas “magoptical”, quando então o formato passou para 2.35:1, um pouco menos largo, para compensar a área do filme ocupada pelas mesmas.

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Mas isto era apenas parte do problema. Ao longo dos anos onde o uso da banda magnética multicanal se tornou um padrão de qualidade em filmes 35 mm, um outro tipo de empecilho começou a dar sinais de vida: a manutenção constante das unidades leitoras era imperativa para o bom desempenho do formato e o custo elevado das cópias com este tipo de trilha. E o que aconteceu a seguir foi o virtual abandono de trilhas estereofônicas em produções com cópias “scope”, que ficaram relegadas a produções de maior custo.

A percepção de que o som multicanal ainda era um quesito importante no cinema tecnicamente moderno continuou na mente e nos corações de muitos fãs e cinéfilos, e o mesmo se pode dizer dos engenheiros e projetistas dos laboratórios Dolby.

 As origens do Dolby Stereo

Diante da inviabilidade comercial cada vez maior do uso de cópias 35 mm com banda magnética, os estudos da Dolby se concentraram na banda ótica. Logo cedo os projetistas da empresa se deram conta de que os quatro canais do CinemaScope não poderiam ficar contidos em quatro trilhas óticas separadas na mesma banda. Um dos problemas persistentes da banda ótica era a baixa relação sinal/ruído e neste caso a divisão em quatro era ainda mais prejudicial à qualidade do áudio. Isto sem falar que logo nas primeiras observações com mais de duas divisões da banda ótica os projetistas se deram conta de que seria ainda necessário mudar as unidades leitoras nos projetores, o que acarretaria um aumento de custos significativo.

A solução veio da indústria fonográfica: um velho sonho deste segmento era o aumento do número de canais, tal qual como no cinema, mas isto só foi tecnicamente viável inicialmente com o uso de fitas magnéticas. No início da década de 1970, a Sansui apresenta um formato quadrafônico para Lps de vinil, com o nome de QS (Quadraphonic Synthesizer), e que consistia em encarcerar os quatro canais em apenas dois canais, tornando, portanto, factível o seu uso em Lps convencionais.

A estratégia do QS foi a de usar o formato matricial, onde as diferenças de fasamento são calculadas e depois codificadas em uma matriz. Neste caso, os canais esquerdo (L ou left) e direito (R ou right) passam a ser esquerdo total (Lt ou Left total) e direito total (Rt ou Right total), respectivamente, por conterem os sinais de cada canal somados aos seus respectivos canais traseiros.

A matriz QS usa um desvio de fase de 90 graus na sua codificação, para derivar os canais traseiros esquerdo e direito. Note que não há preocupação alguma com a derivação de um canal central e nem com a formação do que se convencionou chamar de surround, que consiste na dispersão de som ambiental no espaço entre as caixas. No QS sons 90 graus fora de fase em um canal serão reproduzidos no canal traseiro correspondente, e não em ambos os canais traseiros com dispersão entre si. Se isto tivesse sido feito, os sons traseiros esquerdo e direito perderiam direcionalidade em ambos os lados.

Este formato é satisfatório para a música doméstica com a intenção de aumentar o palco frontal para os lados ou para frente, mas não para a reprodução em cinema, que exige um canal central, por conta da largura da tela e som ambiental. Na matriz do Dolby Stereo, o mesmo som, totalmente em fase em ambos os canais, irá derivar o canal central, enquanto que sons de ambos os canais rodados a 90 graus fora de fase irão derivar o ambiente surround, formado neste caso pelos canais esquerdo e direito traseiros:

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No Dolby Stereo Lt e Rt são gravados na banda ótica dividida em duas trilhas. A ideia não é nova nem original, mas foi ressuscitada pela Kodak, para a reprodução de programa estereofônico de dois canais, por volta desta época, e com o uso de sistema de redução de ruídos Dolby A, já usado em gravação de estúdio em fita magnética. Para o formato da banda ótica propriamente dita usou-se a gravação por variação de área bilateral, já explicada nesta coluna. Por causa disto, o Dolby Stereo foi conhecido no início como Dolby SVA (acrônimo de Stereo Variable Area):

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Com a parceria Dolby-Kodak para o desenvolvimento do formato, a nova matriz pode então ser construída com um sistema redutor de ruído (Dolby A) capaz não só de resolver o problema crônico da banda ótica convencional, como também aumentar significativamente a fidelidade do áudio gravado.

Nos primeiros testes somente os três canais da tela foram codificados. Isto foi feito na produção do filme do excêntrico diretor inglês Ken Russel “Lisztomania”, de 1975. Com a introdução do canal surround mono, foi realizado o melodrama “A Star is Born” (no Brasil, “Nasce uma estrela”), no ano seguinte, sem grande repercussão até então.

George Lucas se interessou pelo formato e fez parceria com a Dolby para o seu uso no lançamento de “Star Wars”, episódio IV, que deu origem à saga, em 1977. Este filme terminou por ficar conhecido pelos fãs como aquele que lançou o Dolby Stereo, por causa do seu sucesso comercial. A propósito: que eu me lembre, os cinemas brasileiros (pelo menos os do Rio de Janeiro) custaram a instalar o Dolby Stereo. Por causa disso, Star Wars foi exibido em mono. As cópias expandidas para 70 mm foram pouco distribuídas mesmo nos Estados Unidos, e eu não me recordo de ter visto o filme em seu lançamento neste formato.

Uma decisão sobre a mixagem iria mudar permanentemente a maneira como os filmes CinemaScope eram originalmente apresentados. Por medida de segurança, os diálogos passam a ser ancorados no canal central. Mesmo o Dolby Stereo em banda magnética gravado nos filmes em 70 mm, 6 canais, este princípio seria mantido.

 As origens dos primeiros home theaters

A descoberta, feita pela própria Dolby, de que a codificação Lt e Rt do Dolby Stereo passava intacta durante a transcrição da trilha sonora de um filme para vídeo foi o que, em última análise, incentivou a empresa e depois os hobbyistas, na tarefa de montar os primeiros home theaters com sucesso no que tange à reprodução do som em casa idêntica à da sala de cinema.

Os primeiros decodificadores domésticos foram construídos com design passivo (circuito eletrônico sem alimentação elétrica), porque a matriz usada permitia isso. O nome comercial então adotado foi “Dolby Surround”, referente à trilha sonora e ao espalhamento de som no ambiente.

Anos mais tarde, coube à própria Dolby explicar que se tratava de um nome de fantasia e que na realidade Dolby Surround nada mais era do que o Dolby Stereo. E quando a empresa modificou o decodificador, para adotar um chip dedicado, o nome mudou outra vez, para Dolby ProLogic, sem que nada da trilha sonora tivesse de fato mudado.

Ao nível do usuário, o nome Dolby Surround não trouxe nenhum impacto perceptível que eu pudesse notar. Não só eu como conhecidos e um punhado de aficionados pelo mundo todo adotamos o chamado circuito Hafler, previamente comentado nesta coluna, em artigo sobre quadrafônico.

E de fato, o Hafler foi projetado para aquele formato, mas se prestou admiravelmente à reprodução do Dolby Stereo da mídia de vídeo, Os meus melhores videodiscos da época, já com trilha sonora em PCM, exibiram som de invejável qualidade, e com apenas um amplificador estéreo. Por conta desta qualidade, as revistas especializadas recomendaram o uso do Hafler e este passou a ser referência por um longo período de tempo. Aqui em casa mesmo, eu só abandonei o Hafler depois da chegada do Dolby Digital no videodisco, lá pelo meio da década de 1990.

 Reflexões de um tempo perdido

Até hoje, eu vejo no Dolby Stereo o mérito do que ele significou para mim e muitos outros: o de ter permitido a nossa primeira instalação com sucesso do que viria a ser um “home theater”, o cinema em casa sem película. Foi o sonho de um potencial colecionador de filmes tornado realidade.

Sob o ponto de vista do áudio, eu pessoalmente nunca enxerguei grandes méritos no que tange à fidelidade de som da trilha, mas sempre dando um desconto por se tratar de banda ótica. Quem passou pelo som estereofônico magnético, particularmente o das cópias em 70 mm como eu, dificilmente conseguiria ver termo de comparação. O som multicanal magnético era notória e auditivamente superior, e a própria Dolby reconhece isso, ao incorporar o Dolby Stereo em pistas magnéticas dos filmes em 70 mm.

A transcrição da trilha sonora direta ao videodisco (e mais tarde para o VHS Hi-Fi) nos permitiu aquilatar a influência negativa da banda ótica na reprodução da mesma trilha. Sem esta no caminho o som Dolby Stereo melhora muitíssimo, embora eu tenha notado vícios de equalização em vários filmes, que lembram e muito a reprodução distorcida no cinema.

Não creio até hoje que os laboratórios Dolby estivessem também satisfeitos. Ao longo do tempo, a trilha sonora Dolby Stereo foi aperfeiçoada, tanto na película quanto no bloco ótico leitor, quanto no uso de sistema redutor de ruído. Por causa dessas mudanças a mesma trilha sonora adotou o nome de Dolby Spectral Recording (ou Dolby SR), em uso até hoje, e parte do sistema de backup do Dolby Digital em projetores. Quando este falha, o Dolby SR garante a continuidade da projeção. Na verdade, várias salas de multiplex que eu ainda frequento anuncia Dolby Digital, mas dá logo para perceber que é o Dolby SR que está tocando.

Em tempos recentes filmes em Dolby Stereo ou mono foram recuperados para som multicanal 5.1, 6.1 e até 7.1 (Blu-Ray). Por causa da mídia de vídeo, o hiato pronunciado da ausência de som multicanal da década de 1970 foi esquecido e enterrado.

No início do home theater com Dolby Digital, alguns usuários mais conservadores reclamaram da não preservação do som original, inclusive e principalmente no advento do DVD, que permitiria a inclusão de mais de uma trilha sonora. De fato, a não inclusão da trilha original está errada, mas ignorar o benefício atingido no melhoramento da trilha sonora com som multicanal é querer ver o progresso da tecnologia andar para trás.

Finalmente, me arrisco a dizer, sem querer nunca ser dono da verdade, que não usar os recursos de restauração que os novos softwares nos oferecem, é de uma tolice sem par, e só mesmo alguém sem conhecimento de causa poderia ter a coragem de advogar isto! [Webinsider]

 

 

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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8 respostas

  1. Pedi socorro ao Nolan Leve, que me informa com notável precisão o que eu já havia esquecido faz tempo:

    O primeiro filme com Dolby Stereo brasileiro lançado nos cinemas foi “Lili, A Estrela do Crime”. Se alguém for na página do IMDb (http://www.imdb.com/title/tt0273739/?ref_=fn_al_tt_1) vai quer que não tem quase nada de informações por lá.

    O filme foi produzido e supervisionado por Mariza Leão (http://www.filmeb.com.br/quemequem/html/QEQ_profissional.php?get_cd_profissional=PE312) A trilha foi codificada com a ajuda técnica de Ray Gillon, assessor senior da Dolby. A mixagem foi feita em um estúdio dentro da Som Livre.

    Lá também, várias gravações de áudio foram feitas com Dolby Stereo, nada a haver com as trilhas de cinema. Eu, por acaso, tenho um CD do grupo Chovendo na Roseira, gravado com Dolby e perfeitamente decodificável em qualquer home theater. Mas, era só para dar um pouco de ambiência.

    Uma certa feita, eu estive na Som Livre ainda a tempo de ver este equipamento. Infelizmente, o estúdio foi desmontado e o equipamento para codificação, instalado em comodato, devolvido aos seus legítimos donos.

    Na Internet há uma informação que eu achava equivocada, mencionando que “Corações A Mil”, com trilha feita pelos estúdios Álamo, de São Paulo, teria sido o primeiro filme com Dolby Stereo. Mas, o Nolan me informa que o Álamo ainda estava fazendo testes quando “Lili” foi lançado no Roxy.

    Eu assisti “Lili” no América, ainda em mono, e não me lembro quando foi.

  2. Oi, João Carlos,

    Obrigado pela colaboração.

    Eu não sei se estas informações dos jornais estão totalmente corretas. Eu me lembro perfeitamente que assisti Star Wars ep. IV em mono mesmo, e ao mesmo tempo não me recordo do Odeon estar funcionando com Dolby Stereo imediatamente. Entretanto, é possível que Star Trek já tenha sido em Dolby Stereo, pelo menos no Rian.

    Na verdade, muitos dos cinemas da cadeia do Severiano Ribeiro custaram a trabalhar com Dolby Stereo, e várias delas continuaram por 1980 a dentro com som stereo magnético ou mono.

    Aliás, o Odeon era uma dessas salas equipadas com som magnético mas eu nunca ouvi nada estéreo lá dentro com o uso deste formato, e isto durou até eles começarem com o Dolby Stereo.

    A propósito de A Rosa, eu tive este filme em videodisco, trilha PCM, se não me engano. A mixagem era boa, para um filme daquela época. Quando a versão em DVD saiu, eu não me interessei em recomprar, portanto não sei como eles fizeram a remixagem para 5.1.

  3. Paulo
    De acordo com os Jornais “O Globo” e “Folha de São Paulo”, os primeiros filmes exibidos em Dolby Stereo no RJ e em SP foram:

    – Rio de Janeiro (RJ): Star Trek – 03/04/80 – Cines Odeon e Rian;

    – Santos (SP): O Império Contra Ataca – 21/07/80 – Cine Alhambra;

    – São Paulo (SP): A Rosa – 21/08/80 – Cines Paulistano e Iguatemi.

  4. Acabei de ser avisado do falecimento do Ray Dolby (http://www.theguardian.com/film/2013/sep/13/ray-dolby-dies-80-inventor).

    Ele morreu aos 80 anos, no dia 12 de setembro pp., uma perda para o mundo do áudio, e que nos deixa aí um grande legado.

    Foi com a assessoria de técnicos da Dolby on-line que eu aprendi quase tudo o que eu sei sobre Dolby Digital, cortesia esta que a empresa se propôs a dar na década de 1990, e eu só posso ser grato a pessoas como Roger Dressler e outros. Muito obrigado!

  5. Nolan,

    Quem passou pelas fitas cassete também sofreu com o alinhamento. Talvez tenha sido este o grande percalço dos companders da Dolby.

    Você se esqueceu de mencionar que foi na Som Livre que o primeiro filme em Dolby Stereo brasileiro foi mixado e codificado. Não me lembro o nome dele, mas se você tiver um tempo coloque o nome na lista dos comentários, ok?

  6. O Dolby stereo usado nos estudios se prestava unicamente a mixagem em fitas magnéticas. Ele era usado também em 16/24 canais.O padrão profissional era o A (equipos domésticos usavam o B e C),que permitiam ajustes line in/out e console in/out através de um “wroble” tone para diferenciar dos tons de alinhamento normais.Esse tom era gravado na fita para identificá-la como sendo portadora da codificação dolby e também para futuro alinhamento de reprodução.Devo dizer que esse alinhamento era crítico e não foram poucas as fitas mixadas com decodificação errada.
    Tivemos inclusive um “gênio”,(hoje se tornou um empresário)que by-passava a decodificação dolby para o som da fita “ficar mais transparente”. Fica fácil dizer o que um sujeito desses tinha na cabeça… Naturalmente com a era digital,tudo isso virou pó. Devo dizer…santos bytes?
    Abraços,Paulo

  7. Parabéns Paulo por mais essa bela aula sobre Áudio. Concordo plenamente contigo quanto ao uso dos novos softwares. Profissionalmente falando, é suicídio, não só em Áudio, mas em qualquer tecnologia.

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