Oppenheimer e a relatividade do tédio

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A produção de Oppenheimer é impecável, o filme é tecnicamente perfeito, fotografia belíssima e os atores de primeira linha

Uma sinopse bem realista do filme Oppenheimer (2023) cabe numa frase bem curta: são três horas de dramatização da estupidez humana.

 

Quando os militares ou agentes políticos entram em cena, os diálogos são tão estúpidos que parece ficção. O único problema é que é tudo verdade.

Estamos falando da quinta-essência da burrice, do suprassumo da ignorância. Visualize mentalmente um debate entre Donald Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orban e o falecido (amém) Silvio Berlusconi. Você escuta, mas não consegue acreditar no que está ouvindo.

A produção de Oppenheimer é impecável, o filme é tecnicamente perfeito, fotografia belíssima e os atores de primeira linha. Um investimento milionário nos pequenos detalhes, embora a maioria dos espectadores não vá perceber as sutilezas em série porque a projeção foi pensada, idealizada e montada para cinemas com a plataforma IMAX, mas o IMAX de verdade, não o IMAX do jeitinho brasileiro.

Para quem não gosta ou não acompanha ciência e história, o filme pode ser um pouco entediante pelo excesso de diálogos e tentativas de explicações didáticas. Já para quem gosta de verdade dos temas abordados… o resultado é pior. Pela ótica do conhecimento, Oppenheimer é um tédio de proporções atômicas. Porque é muita notícia velha transfigurada de novidade.

Então, de certo modo, provavelmente quem mais sai do cinema satisfeito é quem está na coluna do meio em termos de interesses.

O tédio de Oppenheimer é pela tentativa de requentar um assunto tão conhecido sem trazer nada de novo ou inusitado. A surpresa do filme só aparece quando acaba: ao observar quantas pessoas saem da sala boquiabertas com a história, espantadas com o que acabaram de assistir, como se fosse uma grande revelação ofertada pela sétima arte.

A versão ocidental de toda a história da bomba atômica é estudada há 80 anos, todos os detalhes e pormenores já foram esmiuçados a contento há pelo menos cinco décadas.

E o roteiro é todo baseado num (excelente) livro que já tem 18 anos de idade. A obra American Prometheus foi publicada em 2005, venceu o Prêmio Pulitzer e ficou no topo da célebre lista “The New York Times Bestseller”. Não são credenciais humildes e nem fontes obscuras de conhecimento, do tipo “achamos um bloco de anotações perdido” ou “encontramos documentos inéditos num bunker abandonado”.

Mesmo assim, ninguém precisa ler o livro (não é fácil, são 700 páginas) justamente porque, mesmo em 2005, já não havia nada novo para se aprofundar ou apresentar, além das nuanças (a maior parte insignificantes) da vida pessoal do personagem J. Robert Oppenheimer, sua família, seus amigos e muitos casos extraconjugais. No filme, evidentemente, essas questões são vistas de relance, não é o meio adequado porque as três horas de duração iam se transformar em três dias.

É diferente, por exemplo, de um outro acontecimento também bastante estudado e retratado no cinema e na literatura: o assassinato de JFK. Até hoje, estão descobrindo novas pistas, documentos, personagens ou, ao menos, criando novas teorias alucinógenas da conspiração para escrever novos livros e fazer novos filmes. Porque ninguém sabe exatamente os pormenores, não é ciência. E não é coincidência, aliás, que JFK seja citado sutilmente em Oppenheimer, abrindo mais uma brecha para teorias conspiratórias.

Homo quasi sapiens

Oppenheimer me abriu os olhos para uma frustração recorrente. Apesar de ter achado um tédio do tamanho de uma bomba atômica, adorei ter assistido ao filme. Porque me ajudou a esclarecer uma dúvida que há muitos anos me deixa inquieto e, às vezes, frustrado comigo mesmo.

Desde sempre, a gente se acostuma a ler que conhecimento é poder, não é? Mas, contrariando a teoria, na prática a gente entende que, ao menos na vida real da maioria das pessoas, conhecimento não gera poder algum, aliás, o normal é exatamente o oposto. Observe bem quem são as pessoas com poder e quem são as pessoas que chegam ao poder.

Sim, é verdade que existe muita arrogância disfarçada de conhecimento, mas você vai precisar de conhecimento para identificar isso, certo?

Anos atrás, tentando entender um pouco mais sobre comportamentos humanos, encontrei uma assertiva que na época me pareceu arrogante: o conhecimento é um grande gerador de tédio. E esse tédio geralmente chega em duas camadas interdependentes: ou você se torna uma pessoa entediante ou as outras pessoas vão lhe parecer entediantes.

Fiquei bem frustrado porque sempre achei o exato oposto. Que conhecimento pode até não gerar poder, mas gera pessoas interessantes e transforma palavras inúteis em diálogos produtivos. E embora não haja poder no sentido coloquial, conhecimento lhe dá uma plenitude sobre suas próprias ações. É poderoso e psicologicamente libertador.

O tédio de Oppenheimer me ajudou a entender que, provavelmente, estou muito errado e esses cabeçudos da filosofia é que estão certos.

Comecei a entender ao refletir sobre o que aconteceu nas três horas de duração: foram três horas assistindo uma coisa que é discutida, debatida, processada e analisada há 80 anos, mas agora é apresentada como trunfo, novidade ou inovação, uma obra prima revolucionária e uma grande revelação histórica que só a “sétima arte” poderia trazer, apenas para citar duas afirmações comuns que li recentemente.

Qualquer semelhança com palestrante-estrela, coach sistêmico, influenciador digital e outras pragas, não é mera coincidência. É o mundo de hoje, quer dizer, destes últimos 15 anos, ao menos.

Oppenheimer me lembrou bastante o livro Sapiens, de Yuval Noah Harari, um bestseller global de 2015 que até hoje vende igual a pipoca na praça. Depois de ler Sapiens, me senti meio burrinho por não entender onde estava o fenômeno que toda a imprensa noticiou sobre a “obra prima”. A versão original de Sapiens, em hebraico, é de 2011.

Sapiens é o que a gente chamava, na minha época de colégio, do “resumo do resumo”. É a história da humanidade numa versão extremamente bem escrita e didática, em linguagem acessível para todas as idades e neurônios, porém, com tantos atalhos e atropelos que ignoram todas as sutilezas, incongruências e inconsistências da história dessa mesma humanidade (!) para chegar a um livro que você lê em três noites com preguiça.

Sapiens é somente um exemplo entre centenas, claro, e não é culpa do autor e acredito (por ingenuidade ou falta de conhecimento) que não seja proposital. Inclusive, considero o título até honesto: Sapiens, uma breve história da humanidade. Seria mais justo se fosse: Sapiens, atalhos para uma brevíssima história da humanidade.

A exemplo de Oppenheimer, Sapiens tem zero revelações, zero questionamentos, zero apresentações de novos olhares, prismas ou interpretações sobre tudo que já se sabe de cor e salteado. Entre os chamados “resumos dos resumos”, Sapiens é ótimo porque o autor domina a arte da palavra como poucos. Você acha que aprendeu, mas não chegou nem perto da superfície. Até os documentários do Discovery Channel, nos anos 1990, são mais completos, profundos e detalhados do que Sapiens, quando deveria ser ao contrário, já que estamos falando de meios diferentes, livro e televisão.

Mas, como hoje em dia todo mundo quer ser inovador ou fonte de inovação, agora nós temos resumos dos resumos em versão resumida e, provavelmente, em versão para Stories do Instagram. [Webinsider]

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Oppenheimer em 70 mm

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Paulo Rebêlo é jornalista, escritor e consultor em política, tecnologia e estratégias corporativas. Diretor da Paradox Zero e da Editora Paradoxum.

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Uma resposta

  1. Oi, Paulo, lembra de mim?

    Eu ontem, finalmente, consegui assisitir às 3 horas de Oppenheimer. Quando o filme estava no IMAX local, eu não pude ir, por problemas de saúde, infelizmente. Mas, vejo que não perdi muita coisa.

    Concordo, ipsis litteris, com o que você escreveu. Na minha vivência no meio acadêmico, seus participantes se dividem entre aqueles que descobrem e querem ensinar, e os que acumulam conhecimento somente para se distinguirem dos seus pares. E, neste particular, eu tive experiências que davam para escrever um livro, sem exagero.

    Com o passar dos anos, eu descobri como é fácil atingir o poder sem ter conhecimento meritório. E isso, infelizmente, meu amigo, crassa no meio acadêmico. Geralmente, pessoas desse tipo se impõem pela agressividade, e só serão afáveis quando lhes convêm em algum momento. É triste, mas a realidade que eu vi sempre foi essa.

    Quanto ao filme, ele passa batido sem aproveitar as tais cansativas 3 horas para acrescentar alguma coisa de útil na caça às bruxas paranoide norte-americana, que perseguiu e destruiu vidas. Nolan, tem, entretanto, um mérito, que é o de resgatar o lado técnico do cinema, que se extinguiu ao longo das décadas. No nosso parque exibidor, as chances desse resgate são pífias!

    Espero que esteja tudo bem você. Se eu estou aqui, é por culpa sua!… Grande abraço.

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