Gary Kildall, pioneiro esquecido dos sistemas operacionais de disco

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O MS-DOS, idealizado para a plataforma IBM, é totalmente compatível com o CP/M, permitindo desde logo rodar programas escritos para este sistema em ambiente DOS

Gary Kildall foi pioneiro na construção do sistema operacional de discos CP/M, que permitiu o início do uso disseminado dos primeiros microcomputadores. Seus comandos ainda são úteis para muita gente.

 

Pode parecer hoje um absurdo, mas eu aposto todas a minhas fichas que nenhum técnico, ou pelo menos, a maioria deles, de nível secundário ou superior em ciências da computação ouviu falar em Gary Kildall, um gênio que criou, nesta área, o primeiro sistema operacional de discos que eu conheci: o CP/M, sigla acrônimo de Control Program for Microcomputers.

Foi graças a este desenvolvimento que nós hoje podemos usar com enorme flexibilidade os microcomputadores e sistemas operacionais mais recentes. Começando seus estudos com processadores de apenas 4 bits, o Intel 4004, Gary eventualmente fez seu doutorado em Ciência da Computação em 1972. No ano seguinte, ele desenvolveu uma linguagem de programação de alto nível (PL/M) e logo a seguir, a partir dos processadores Intel mais avançados (8008 e 8080), ele criou o CP/M, software básico que iria permitir o uso dos computadores a partir de um sistema operacional de disco.

E para tornar o CP/M ainda mais eclético, ele ainda criou um software interno, gravado em ROM, chamado depois de BIOS (Basic Input/Output System), que iria permitir rodar o CP/M em qualquer máquina. Posteriormente, Gildall desenvolveu o CP/M-86, para os processadores Intel 8088 e 8086, das plataformas IBM-PC.

Uma experiência pessoal

Antes de ir adiante, eu gostaria, se me permitem, de relatar alguns estágios da minha vida como pesquisador na área de Bioquímica:

Em 1976, eu comecei a projetar o que seria depois o meu trabalho de tese de mestrado, defendido posteriormente no Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ. Aproximadamente nesta época, eu comecei a ouvir falar de microcomputadores, assunto ainda pouco conhecido no meio acadêmico onde eu trabalhava (Centro de Ciências da Saúde). Mas, os meus colegas do então Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais também queriam se informar a respeito, e convidaram um palestrante, que desfilou um monte de possibilidades em aplicações do uso do microcomputador em trabalhos científicos. Infelizmente, naquele momento ninguém se sentiu capaz de tornar essas possibilidades aplicáveis.

Antes de começar a fazer o meu trabalho experimental, eu usei os meus 45 dias de férias para estudar a programação de uma calculadora de mesa Hewlett Packard, modelo HP-9810A. O aparelho chegou no departamento com manuais que mais pareciam bíblias, e ficaram lá jogados por muito tempo. Eu gastei as minhas férias todas para aprender o que era um programa, e como escrever um.

E assim foi, quando consegui finalmente vencer a ignorância e criar um software capaz de calcular uma regressão linear, aplicável nas minhas curvas de calibração, e permitindo cálculos precisos de concentração de substâncias em amostras desconhecidas. A HP-9810A tinha uma linguagem de programação primitiva, mas permitia salvar os programas em cartão magnético.

A minha tese, toda ela informatizada, foi defendida em dezembro de 1981, quando um membro da banca leu sobre o assunto e me rotulou como “exagerado”. O meu irmão mais velho Sergio, que foi formado na General Electric como técnico em programação ainda em computadores a válvula, saiu daquela defesa revoltado com os comentários do examinador, que havia sugerido que eu só precisava de uma simples calculadora de bolso.

Este incidente me mostrou, ao longo dos anos, que a microinformática era um assunto tabu ou desconhecido na área acadêmica. O que aquele examinador havia me mostrado era a completa falta de visão do que ainda vinha por aí.

Meus estudos iniciais deram algum resultado, mas incipientes em todos os sentidos. Assim, quando o Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ abriu em 1984 o primeiro curso de Programação em BASIC, eu me inscrevi rapidamente. Na realidade, este curso era basicamente sobre o CP/M.

Professores do NCE, protegidos pela lei de reserva de informática, haviam criado um computador pessoal, alguns deles ficavam no laboratório, à disposição dos estudantes e usuários. Mesmo com a famigerada reserva de informática, a fabricação dessas máquinas parece que nunca foi adiante.

O meu primeiro disquete era de 8 polegadas, para uso no enorme drive, um tanto ou quanto barulhento. Os monitores do laboratório nos disseram que era preciso “preparar” o disquete antes do primeiro uso, mas, acreditem se quiserem, se recusaram a explicar o que era a tal “formatação”, cujos detalhes eu fui aprender sozinho, muito tempo depois!

A primeira visão do teclado usado para a digitação dos comandos em CP/M com a qual eu e meus colegas do curso nos deparamos foi assustadora, porque ninguém sabia o que eram as teclas Control ou Esc, etc. O professor do nosso curso era um colega do Instituto de Matemática, ele mesmo declaradamente incipiente na programação em Basic, falando para a gente testar o que ele escrevia no quadro-negro. Dos mais de cinquenta professores inscritos naquele curso, na segunda semana sobraram pouco mais de vinte.

O uso daquele teclado era tudo o que se tinha. Não havia ainda mouse ou mesmo setas. Quando se escrevia um programa, qualquer erro só poderia ser corrigido fazendo o computador entrar em modo de edição. Foi nesta época, que nós, estudantes, fomos orientados a comprar um livro com uma lista enorme de comandos, como <Control + C> (copiar), <Control + V> (colar), <Control + H> (retroceder e apagar um caractere), e assim por diante.

O vício no uso desses comandos do CP/M obrigou a Microsoft a mantê-los em todos os seus sistemas operacionais, desde o DOS até o Windows de hoje:

Como se pode perceber, valeu a pena toda aquela decoreba de comandos. Ainda na década de 1990, eu encontrei colegas e alunos no laboratório que não conheciam nenhum deles, e alguns me perguntavam como eu conseguia acionar comandos sem precisar entrar em menu nenhum!

Do CP/M ao DOS

Gary Kildall teria sido o pai do MS-DOS, mas o destino lhe reservou surpresas. O seu envolvimento com a IBM foi tumultuado e complicado. A história está contada com detalhes em vários sites e vídeos, por isso não adianta ficar recontando tudo.

O que para mim foi, até hoje, muito importante, sob o ponto de vista operacional, foi o fato de que o MS-DOS, idealizado para a plataforma IBM, é totalmente compatível com o CP/M, permitindo desde logo rodar programas escritos para este sistema em ambiente DOS.

Nos seus últimos anos de vida, Kildall acusou Bill Gates de ter oferecido um DOS com comandos internos do CP/M, uma cópia pura e simples, e se não foi, é de se estranhar que os mesmos comandos funcionassem em ambos os sistemas operacionais.

Quando eu migrei, no início de 1990, do MSX-DOS para o MS-DOS, nenhum conhecimento foi perdido, por causa disso, e todos os arquivos em formato de texto (ASCII) corretamente lidos pelos drives de disquete da época! O MSX-DOS era um sistema operacional congênere do MS-DOS, mas com um menor número de comandos.

Quando o Windows foi lançado, a Microsoft obrigou o usuário a dar partida no computador pelo DOS, para só depois, através do comando “<win>” fazer o Windows rodar.

Isto durou até o Windows 3.0 e 3.1 (1990 – 1994), com o DOS sempre evoluindo de versão no background. Com a chegada do Windows 95 e subsequentes, o DOS passou a rodar exclusivamente no background. Até hoje, é possível rodar comandos em ambiente DOS, a partir ao applet Terminal (Windows PowerShell), como se vê no Windows 11:

A linha do prompt do MS-DOS, neste caso, é C:\Users\Paulo Roberto Elias> e o comando a seguir (ping) destacado em amarelo. Se alguém digitar exit na linha do prompt, o Terminal fecha.

O que Gary Kildall poderia ter sido, mas não foi

Gary Kildall era, segundo seus conhecidos, um intelectual que amava esportes, um espírito livre e com mentalidade aberta. Aparentemente, ele não tinha tino comercial, tanto assim que a parte administrativa da Digital Research ficava por conta da sua mulher.

Infelizmente, ele morreu jovem, aos 52 anos, vítima de um acidente, com suspeita não confirmada de infarto do miocárdio.

Historiadores comentam que Kildall poderia ter sido o que foi Bill Gates para a IBM. Mesmo assim, é bastante provável que ele não teria se envolvido em todas as trapaças atribuídas ao dono da Microsoft. Gates não enxergou o potencial da Internet e da vida on-line. O Internet Explorer só foi incluído como parte do sistema operacional no Windows 95, mas depois de ele ter visto o enorme sucesso do Netscape, distribuído em disquete, nas capas de revistas. Posteriormente, Gates foi acusado de sabotar o Netscape, ao incluir o Internet Explorer como parte casada do Windows, não precisando ser fornecido em outra mídia.

Bill Gates também foi acusado de roubar os princípios do primeiro sistema operacional com interface gráfica da Apple, os incluindo no desenvolvimento do Windows. Mas, neste aspecto, ele não estava sozinho, porque Steve Jobs havia copiado o sistema desenvolvido no Xerox Parc, uso do mouse, etc., antes de comercializá-lo na forma de um computador da Apple.

Esse mundo da informática foi recheado de acusações sobre roubos, alguns jovens empresários fazerem fortunas sem serem merecedores das mesmas. Vários grupos de programadores resistiram ao monopólio da Microsoft e de empresas similares, e o fazem até hoje. A distribuição pirata de programas e/ou o craqueamento das proteções de instalação dos sistemas operacionais e programas pagos continua até hoje.

Quanto ao CP/M ele se encaixou no mesmo escopo das cópias ou clones das plataformas IBM. Mas, ironicamente, foi este tipo de cópia que difundiu o uso da microinformática no mundo todo.

Quem quiser conhecer Gary Gildall é só acessar no YouTube os vídeos do antigo programa Computer Chronicles, do qual ele fez parte. [Webinsider]

 

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A influência e a evolução do processador de texto

Instalação e manutenção de um sistema operacional moderno

A evolução da plataforma IBM no computador pessoal

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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2 respostas

  1. Ótimo artigo! Só para já começar com “nem todo estudante de ciência da computação”, haha, conheço o Gary Kildall, mas de um jeito diferente, ele apresentou as primeiras temporadas do Computer Chronicles ao lado do Stewart Cheifet. Quando os episódios desde o início da década de 80 foram publicados no YouTube eu acabei maratonando todos. Só depois entendi a importância de Gary Kildall, ele era um curioso da tecnologia, e não tinha preconceitos, realmente um entusiasta da computação, visionário, por isso acredito que tinha pouco espaço e interesse na parte comercial. Mas sem dúvidas era um gênio!

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