Longe demais

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Fomos longe demais com as crises existenciais sinceras, verdadeiras, profundas, dramáticas.

Longe demais

O ócio criativo foi longe demais. O direito à preguiça também. Exageramos no palanque, na verborragia, na opinião precoce. Também fomos longe demais com a autoanálise, com o “eu me conheço, preciso cuidar de mim”, com o “me moment”, com a indulgência compensatória e com a indulgência da indulgência. Longe demais com as crises existenciais sinceras, verdadeiras, profundas, dramáticas.

No fundo, tudo foi longe demais. Inclusive dizer que fomos longe demais (concordo com você, Tati Bernardi).

Pode ser fim de ano – como se o espírito do tempo ligasse para os calendários do ócio, da preguiça e da opinião –, e estamos cansados de reivindicar. Reivindicar o quê? Que estamos exaustos. Dizer que estamos exaustos foi longe demais. E não sei vocês, mas eu estou exausto da palavra “exausto”.

Trabalhar; ganhar dinheiro; ir à análise, à fisioterapia e à massagem; fazer meditação, yoga e rolfing; não comer glúten, nem pimenta-do-reino, nem salmão chileno – aliás, simplesmente não comer; beber água com pH alto ou baixo; comer “local”, orgânico, “avocado”, e não abacate, ghee ao invés de manteiga, nozes e shakes amazônicos; nunca usar poliéster, só algodão natural, reciclado e de roupa revitalizada; zerar sua impressão de carbono; fazer curso sobre a rivalidade de Kant e Schopenhauer, quem sabe um doutorado ou um mestrado em ESG, neocolonialismo ou pandiversidade; fazer botox e implante, branquear os dentes ou ser o louco do checkup; adotar um cachorro abandonado, ter três gatos e só um filho; escolher uma escola Montessori ou Waldorf, mas internacional e que, de preferência, mal tenha aula de português e ensine mandarim, a língua do futuro; escolher o roteiro off de Veneza; esquiar em uma anti-Aspen; ir para uma Bahia “off-jardins”; criar comitês, ser conselheiro ou, melhor, advisor, ou, melhor ainda, pro bono; integrar grupos de afinidade ou de networking; falar com propriedade sobre a causa indígena, palestina, quilombola; defender o direito a uma morte suave de animais de abate, mas militar no Instagram contra o consumo de carne, a pesca predatória e a monocultura; acreditar em todos os deuses, todos os santos; ser animista ou budista ou teosófico; consumir microdoses de cogumelos; frequentar ayahuasca butique ou terreiros gentrificados; colecionar plumária, estandartes de vudu haitiano ou street art engajada. Longe demais.

Mas, acima de tudo, falar, postar e exibir tudo isso deixa todo mundo exausto e meio chato. [Webinsider]

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Propaganda é para dizer

Fernand Alphen (@Alphen) é publicitário. Mantém o Fernand Alphen's Blog.

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