O assassinato do áudio de alta resolução

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O som de alta resolução deveria ser o sonho de qualquer audiófilo, mas o abandono de formatos de qualidade mostra o contrário

O som dos serviços de streaming que prometem qualidade não irá chegar ao nível dos formatos como DAD e HDAD. E se chegarem, quem de fato vai dar valor a isso?

 

No âmbito dos meus conhecidos eu não vejo mais ninguém se interessar em ouvir música a não ser por streaming. Só o Spotify, por exemplo, já está a cerca de 15 anos no ar, e não vai parar tão cedo, imagino. Até no ambiente do Android Auto, sistema que é acionado pelo telefone celular dentro do carro, o Spotify está lá.

Em toda a minha modesta experiência de vida como entusiasta do áudio, eu sempre notei que o hobby de montar ou comprar equipamentos de bom nível sempre esteve no lado de uma meia dúzia de dois ou três. O áudio esotérico de alto custo sempre existiu e de tempos para cá ficou restrito àqueles que insistem em só tocar elepês. Os preços dos toca-discos e cápsulas esotéricas passa fácil de alguns milhares de dólares, estando somente ao alcance dos financeiramente privilegiados.

A eletrônica mais moderna, por sorte de quem gosta de ouvir música, não é esotérica, mas se alguém quiser adquirir um bom A/V receiver de pelo menos 9 canais vai ter que desembolsar de 9 mil reais para cima. Então, fica patente que o áudio de alta resolução (conhecido como “Hi-Res Audio”) continuará na posse de um nicho de apreciadores de filmes em disco ou música com suporte de qualidade.

E, apesar dos pesares, o áudio de alta resolução está aí, sobrevivendo com a ajuda de um respirador artificial, dentro de algum CTI, caso contrário ele tende a sumir mais ainda.

Eu venho observando que é no mínimo irônico que a eletrônica tenha levado a termo decodificadores de áudio digital de incrível resolução, muitos deles na faixa dos 32 bits, algo impensável anos atrás, e, no entanto, uma parte da comunidade mundial de audiófilos continua ouvindo música sem aceitar qualquer formato de som digital.

É também interessante notar que é somente a indústria fonográfica e a do áudio de alta resolução que é atingida. Historicamente, o cinema sempre se esmerou em dar a quem ouve o melhor som possível. Até mesmo no filme Fantasia, de 1940, os sistemas de gravação e reprodução do som estereofônico atingiram generosos 10 kHz, apesar das limitações dos formatos daquela época. O cinema também se adiantou no uso de filmes 35 mm magnéticos multicanal, e logo depois inovou com as bandas magnéticas de alta fidelidade impressas diretamente nas películas de 35 e 70 mm.

Em comparação, o áudio fonográfico ficou restrito a apenas 2 canais, na maioria das gravações, tendo sido este o principal alvo dos selos de audiófilos. Na década de 1950, foi sugerida a adoção do playback com 3 canais para a reprodução dentro de casa, a partir de fita magnética, mas o formato foi rejeitado, e na década de 1970, o som quadrafônico em elepê foi lançado, as gravações anteriores remixadas para este formato, adaptável inclusive às transmissões por rádio FM (aqui nós tivemos o da Rádio Transamérica), e nem assim o áudio multicanal foi aceito. Ainda é possível sim ouvir discos quadrafônicos, graças à iniciativa de selos independentes, como o Dutton Vocalion, cujo proprietário ele mesmo resgata as matrizes e as transporta para discos SACD.

Quando o áudio multicanal, agora no formato 5.1, foi lançado, muitos audiófilos não só não aderiram, como reclamaram das mixagens. Eu estava no extinto fórum Home Theater Talk, onde o simpático proprietário e moderador das discussões declarou que “não queria ouvir o som dos instrumentos saindo do seu traseiro”, traduzindo aproximadamente a frase, sem mencionar o palavrão dito on line na época.

O preconceito contra o áudio multicanal não é unânime, porque muitas mixagens usam os canais surround esquerdo e direito apenas para aumentar a ambiência e/ou para aumentar o espaço de palco sonoro dos canais da frente, fazendo com que instrumentos que iriam tocar nos extremos dos canais frontais passem a ser ouvidos além desses canais, mais para a esquerda e mais para a direita, sem serem notados nos canais surround. O aumento do palco sonoro frontal per se já é um avanço considerável, mas nunca deixou, que eu tenha visto, de ser igualmente contestado pelos adeptos radicais do som de 2 canais, considerado como o formato correto para a gravação e audição de música.

Nem sempre o áudio digital avançado é melhor

Um amigo me emprestou a versão em SACD do icônico álbum Jazz At The Pawnshop, durante anos referência de reprodução com ambiência insuperável. Eu já havia ouvido o mesmo disco, só quem em prensagem da FIM, versão XRCD 20 K2 Super Coding. Para esta versão da FIM, a fita master original das sessões de gravação (2 canais gravados com um deck Nagra) já havia sido revista pelo técnico de gravação Gert Palmcrantz. Esta revisão inclui detalhes que o disco original não tem, mas em termos sonoros a diferença é mínima. O XRCD de Jazz At The Pawnshop soa, para mim, melhor do que o SACD. Quem me emprestou achava a mesma coisa. E aqui nós estamos nos referindo ao processo de masterização, e não ao formato do codec.

Em outro momento, eu ouvi o som do SACD da tecnicamente bem feita gravação de 1974 “Misty”, do selo Three Blind Mice, com o trio do pianista japonês Tsuyoshi Yamamoto. O respectivo CD, lançado anos antes, foi masterizado com critério, a partir das fitas das sessões originais. O resultado é simplesmente soberbo, e o SACD não acrescenta nada. Pessoalmente, eu prefiro o som do CD.

A praticidade dos serviços de streaming faz o público em geral se importar menos com o áudio de alta resolução

Mas, como é que pode isso? Sem querer entrar no debate DSD versus PCM, eu prefiro me deter no fato singular de que estamos, em ambos os casos citados acima, lidando com fitas magnéticas da década de 1970.

E, sendo assim, o CD, que tem uma faixa espectral plana de 0 a 22 kHz, e dinâmica de 90 dB, pode perfeitamente capturar o som de um material magnético desta época, o qual poderia ter, otimistamente, dinâmica em torno de 70 dB, mas com muito boa vontade. Fora do âmbito das gravações de música erudita, a dinâmica é normalmente muito pequena, portanto, os 90 dB do CD dificilmente serão alcançados!

Nestes dois casos citados acima, é a captura do som em si que faz a diferença, a mídia digital propriamente dita nem tanto! Se considerarmos, por exemplo, as gravações de rock progressivo ou qualquer outra coisa popular gravada para as massas, a dinâmica da gravação costuma ser muito baixa. Assim, qualquer remasterização digital superior a 44.1 kHz e 16 bits, pode não fazer diferença alguma.

Formatos abandonados

É incrível como formatos em CD foram largados de lado ao longo dos anos. O HDCD (High Definition Compatible Digital) foi lançado nos anos de 1990 pela Pacific Microsonics. Anos depois, a Microsoft modificou o Windows Media Player para decodificar HDCDs, mas ficou por isso mesmo.

Ainda na década de 1990 algumas gravadoras, como a Chesky Records, embarcaram no formato DAD (Digital Audio Disc), que é um DVD de camada simples, com áudio masterizado em 96 kHz e 24 bits, de 2 canais. O formato foi depois ampliado para HDAD, com áudio em 192 kHz e 24 bits. O selo Classic Records lançou muitos discos em HDAD, com criteriosa masterização. Qualquer DVD Player mais recente reproduz este tipo de disco, mas o formato não foi para a frente. Ainda existem discos à venda, só que com preços elevados!

A Classic Records lançou a trilha sonora do filme Casino Royale, composta por Burt Bacharach, em DVD de dupla face, uma delas DAD e a outra HDAD. O selo enfatiza que a masterização foi feita a partir das fitas originais do estúdio da Colgems. Ouvindo ambas as versões, é difícil distinguir a diferença entre 96 e 192 kHz. Aliás, o disco original foi considerado um dos dez melhores elepês de todos os tempos, segundo a revista The Absolute Sound, não entendi até hoje por que motivo. Uma edição prévia em CD da Varèse Sarabande apresenta uma qualidade sonora que não deixa a desejar, se comparada com o disco da Classic Records.

Formatos de masterização proprietários estão por aí, tentando apresentar alguma diferença, como, por exemplo, o Super Bit Mapping (SBM) da Sony, lançado em CDs de catálogo. Já o XRCD (Extended Resolution Compact Disc), inventado pela JVC, trouxe resultados bastante interessantes.

Vários desses formatos prometem fundos e mundos. Na patente do XRCD, a diferença estaria também na estamparia, supostamente melhor elaborada. Não é diferente da proposta feita antes, com a fabricação de CDs banhados a ouro. Soam diferentes, por causa disso?

Essencialmente, a melhoria da remasterização é sugerida pela conversão do áudio analógico das fitas originais em PCM a 20 bits, que é depois reduzido obrigatoriamente para 16 bits, não importa o nome técnico que se dê a esta conversão. Na imagem abaixo, se pode ver o CD banhado a ouro, masterizado com um processo chamado pela Sheffield Lab de Ultra Matrix Processing, de 20 para 16 bits:

A gravação original feita pela Sheffield Lab foi projetada para um disco de corte direto, formato no qual o estúdio foi “pioneiro”. A captura foi feita com apenas um microfone estéreo (técnica minimalista), dentro do estúdio da MGM. Na época, uma fita de referência foi também gravada, e foi a partir dela que o CD foi masterizado.

20 ou 24 bits, usados nas remasterizações de originais analógicos, serviram como atrativos para aqueles audiófilos que não repudiaram o som digital. Se faz alguma diferença na qualidade do som o usuário final nunca vai saber, porque ele ou ela não estavam presentes na comparação dos resultados.

DVD-Audio e SACD são hoje destinados a um nicho, com um leve indício de sobrevivência para o SACD, ainda lançado por selos especializados. O CD com som DTS (chamado de DTS Music Disc) precedeu a ambos os formatos. Na realidade, o DTS para cinema é gravado até hoje em um ou mais discos CD-ROM, portanto seguindo as especificações do CD convencional, principalmente no que tange ao bitrate sem compressão do formato.

Quando o CD com DTS foi lançado, prometendo compatibilidade, muita gente se surpreendeu com um ruído no lugar da música. Isto acontecia porque o usuário final reproduzia o disco pela saída analógica do player e assim o codec do DTS não encontrava o decodificador DTS, que seria necessário para a correta reprodução do seu formato de 5.1 canais. Por causa disso, e para aplacar a revolta dos consumidores, a DTS colocou um aviso para a reprodução, na capa dos discos:

O CD com DTS incorporou o formato ES 6.1 Surround, tanto matricial quanto discreto, exibindo um som de alta qualidade.

O som dos serviços de streaming que prometem qualidade, acredito eu que nunca irá chegar ao nível dos DAD ou HDAD da vida, ou mesmo do som 5.1 dos formatos acima mencionados. E se chegassem, quem de fato iria dar valor a isso?

O som de alta resolução deveria ser o sonho de qualquer audiófilo, mas o abandono virtual de todos esses formatos poderá estar provando o contrário faz tempo! [Webinsider]

 

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Fantasound de Walt Disney e o estéreo no cinema

 

A ressurreição do som quadrafônico

 

SACD Quadrafônico!

 

Lidando com audiófilos e suas esquisitisses

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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2 respostas

  1. Olá Paulo, pois é…
    Eu posso afirmar quem são os responsáveis por isso. A própria mídia, e a indústria. No caso da mídia, ela tem incentivado com matérias, tanto na tv como no rádio e internet, o uso de plataformas de áudio (podcast) ou de vídeo (streaming), por meio de aplicativos. Já a indústria tirando de linha de fabricação aparelhos de midia ótica, e paralelo a isso tentando fazer pegar o precursor do áudio analógico que é o vinil, mas… Salvo raras excessões, são aparelhos muito ruins (vitrolinhas) e com entrada para pen-drive para reprodução de arquivos digitais. Um baita contrasenso. Sabe Paulo esses dias conversando com meu enteado, falei sobre o que era o áudio analógico, e que somente as pessoas mais antigas (de mais idade), saberão o que foi essa era da verdadeira essência do áudio. Mas pelo andar da carroagem, isso irá morrer conosco…

    1. Oi, Rogério,

      Obrigado pelo seu comentário. Dias atrás eu entrei em contado com o Robert Witrak, que abriu, anos atrás, o site High Definition Tape Transfers, que começou de forma um pouco amadora, mas que chegou a um nível de alta qualidade. Eu tive a chance de oferecer algumas pequenas colaborações sobre gravações de Jazz com ele, mas já estava afastado havia um bom tempo. Neste meu último contato, o Bob me mandou um download da gravação Audio Fidelity Satchmo Plays King Oliver, ao qual eu fiquei muito grato. Ele vem usando fitas de 15 ips com 2 canais para a transcrição a DSD e depois PCM. A minha versão foi a de 96/24 PCM. Eu tenho a última versão em CD com todas as sessões deste disco, mas o download do Bob superou fácil.

      Anos atrás, este mesmo disco iria sair em SACD pela Analogue Productions, mas, por qualquer motivo, nunca saiu. O catálogo da Audio Fidelity ficou na mão de uma herdeira do Sydney Frey, se não me engano, e volta e meia explorado por alguém. Existem empresas capazes de conseguir cópias de fitas master em 15 ips, como aquela da HDTT.

      Mas, como se vê, tem sido uma luta inglória conseguir material de bom nível, resgatado em edições de alta resolução. Eu sei que o esforço do Robert Witrak tem sido grande. Neste meu último contato ele comenta, com toda a razão, que o maior problema do áudio de alta definição é a maneira como uma fita master é transcrita, independente da qualidade do material usado.

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