O ardil sinistro nas redes

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O ardil sinistro nas redes: todo mundo agora pode parecer rico e bonito

As redes sociais assumiram tamanho protagonismo na construção da nossa sociedade, substituindo o debate público pelo debate enclausurado entre membros já convertidos, que é tempo de reagir criticamente.

 

Em Emílio ou da educação, o filósofo francês Rousseau ensina ao jovem Emílio que falar de si é vulgar. Madame de Sévigné e Whoopi Goldberg também acham. Mas não é isso o que prega o manual do influencer de sucesso em redes sociais.

Do outro lado da cerca, seguidores gostam da falta de vergonha. Que ninguém venha com filosofias, análises e, muito menos, poesia. Quem bebe o sangue dos exibidos se inspira nas narrativas autobiográficas do dia a dia.

O conteúdo-astro das redes, portanto – porque arregimenta seguidores e engajamentos eufóricos –, é a futricagem pessoal temperada de muitas mentiras e fabricações. A vida dos ricos e famosos sempre fascinou; a diferença, agora, é que todo mundo pode parecer rico e famoso: é só escolher o ângulo, ter uma ring light (a partir de R$ 15,00 nos melhores marketplaces) e gostar de pose.

Cale-se, não é o seu lugar de fala

Mas também é possível que isso ocorra por causa de uma interpretação equivocada de “lugar de fala”. Segundo esse entendimento precipitado (“cale-se, esse não é seu lugar de fala!”), só pode falar sobre determinado assunto quem o estiver vivenciando como personagem central no contexto. O perspectivismo, no entanto, nunca pretendeu inibir qualquer fala, mas, sim, ressaltar a importância de sempre identificar de que lugar a pessoa fala e, principalmente, dar voz para quem tem lugares de fala distintos (de diferentes tipos de opressão).

É claro que cada um é livre para lidar com sua própria miséria como quiser. Exibi-la ou escondê-la é uma questão de gosto (ou mau gosto). Nenhum lugar de fala sacraliza o que se fala. Menos nas redes sociais, em que o exibicionismo justifica qualquer bobagem ou desvio (“é minha experiência, então ‘pronto-falei’”).

As redes sociais são um banco de dados fascinante sobre o egoísmo. Rousseau não conheceu esse palanque nem suas versões presenciais, que são nossos eventos, conferências e outros palcos em que o “eu soberano” se manifesta com todas as vergonhas de fora. Na época do filósofo, só havia observação vivida, mas ele já tinha sacado que o individualismo é uma merda.

A merda é quando a experiência individual é instrumentalizada para manipular opiniões. O difícil é quando as visões do mundo, da sociedade e do outro derivam exclusivamente da irradiação mesquinha do umbigo. Esse estratagema, anabolizado pelo palco fácil das redes (e o fomento comercial da influencer society), castra o contraditório.

Quando a experiência individual inicia a narrativa, a defesa das causas, por mais nobres e necessárias que sejam, vira um ringue cheio de ódios e ressentimentos, sem complexidade e maniqueísta. Quando o “eu” destrona o lugar de fala do “outro”, por qualquer que seja a deriva identitária, perdemos para sempre a busca pelo bem de todas as pessoas. É pelo próprio bem e pelo bem do seu grupo de iguais que os influenciadores falam, e não pelo bem de todas as pessoas. É assim para qualquer assunto: da moda mais prosaica à defesa de interesses comunitários, da cria de gatos à escolha de candidatos a cargos eletivos.

As redes sociais eram a promessa de um ambiente democrático e livre, bem como de uma aldeia global sem divisões e com espaço para criar relações de intercâmbio socioculturais. Uma promessa de construção de um coletivo humanista que acolheria diferenças para edificar – pela miscigenação pacífica e pelas respeitosas visões de mundo – um futuro mais justo. Mas as redes sociais e suas vis explorações se tornaram o ardil moderno de uma visão de mundo desenterrada dos escombros das correntes totalitárias mais primitivas.

Indícios

Talvez ainda seja cedo para fazer um balanço – entre ganhos e perdas – da revolução provocada pelas redes, mas os indícios são de mais egoísmo, mais divisão entre perspectivas distintas, mais separação entre mundos diferentes e mais acirramento de irreconciliáveis disputas de pontos de vista. A bagunça é grande e muito perversa (ainda?).

Como dizia o grande poeta martinicano Aimé Césaire, a luta contra o antissemitismo não é a luta dos judeus: é a luta da humanidade inteira. A luta contra o racismo não é a luta dos negros: é a luta dos judeus, dos uigures, dos palestinos, dos mundurucus, dos brancos com ou sem privilégios de classe, de todos os gêneros, de todas as identidades.

Rousseau, autor do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, teria muito a falar sobre o estado atual da sociedade e o sub (ou será supra?) mundo das redes. Seria um crítico lúcido das bolhas identitárias que essas redes cultivaram e ficaria fascinado com o individualismo exponencial da era moderna. E, como em seu tempo, seria perseguido (ou cancelado) por publicar pensamentos livres e sem amarras ideológicas.

As redes sociais assumiram tamanho protagonismo na construção da nossa sociedade, substituindo o debate público pelo debate enclausurado entre membros já convertidos, que é tempo de reagir criticamente. Já é tempo de se perguntar por que pessoas outrora abertas abraçam teses “complotistas” como se fossem dogmas divinos. Já é tempo de se preocupar sobre o modo como estamos preparando filhas e filhos, pois os muros estão cada vez mais altos, e os bunkers virtuais, mais impermeáveis, pouco diversos e tristemente furiosos. [Webinsider]

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Fernand Alphen (@Alphen) é publicitário. Mantém o Fernand Alphen's Blog.

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